Direto do céu
Morri e nessa condição, me dei conta exatamente do momento em que minha alma se despegou do corpo.
Quanto tempo levou?
Talvez minutos, horas, não sei.
Antes de mergulhar naquele longo túnel que me trouxe até este lugar sobre o qual pretendo falar um pouco, consegui ver que poucas pessoas choravam minha morte. Algumas lágrimas, aqui, um lamento ali e só.
Não haveria uma informação sobre minha morte na secção de necrológios de Zero Hora, mesmo sem retratinho, nem um voto de pesar na Câmara de Vereadores e o pior de tudo, não fariam, em minha homenagem, um minuto de silêncio em jogo do Inter no Beira Rio, mesmo que o time estivesse na série B.
Saí da vida, incógnito, como quando entrei.
Por isso mesmo fiquei surpreso quando fui informado que podia passar direto para o céu. Duplamente surpreso, diga-se de passagem, porque existia um céu e porque eu seria um dos seus hóspedes.
E como é o céu?
Não posso falar muito sobre isso porque tive de assinar um termo de confidencialidade, mas posso dizer que não é nenhuma Cancun, mas também não é uma Vila dos Papeleiros.
Sabendo valorizar certas coisas é até lugar bem interessante, embora também aqui não tenham chegado algumas conquistas sociais, até comuns na terra.
Por exemplo: jornadas de oito horas de trabalho, repouso remunerado e férias de trinta dias, nem pensar.
Nós as almas (algumas ainda são chamadas de penadas) ficamos à disposição em tempo integral para cumprir missões que a elite celestial costuma determinar.
Aliás, a divisão de classes aqui é muito rígida. O chamado círculo de poder, que nunca se mistura, é formado por aqueles caras que foram citados na Bíblia.
Citações na Bíblia são consideradas essenciais para sonhar com alguma ascensão social por aqui. Ser lembrado no Novo Testamento conta pontos, mas não é a mesma coisa do que ter aparecido no Velho Testamento.
Ontem (ou foi no século passado?) fui informado de que devo voltar à Terra em breve, comprovando que era verdade aquela história do Sérgio sobre reencarnações.
Não sei o que serei. Você não tem muitas opções: bicho ou ser humano, homem ou mulher. Eu vi que tinha uma vaga para um desses cachorrinhos de madame, tratados a pão de ló, mas um argentino (tem alguns aqui, mas poucos) se adiantou e pegou o lugar.
Escolhi uma vaga de homem, mas parece que é para viver como líder do tráfico numa vila popular de Gravataí, sinal de que não vou durar muito por ai, mas quando acabar, certamente vou sair em Zero Hora, obviamente na página policial.
Aguardem novas notícias minhas em breve.
Marino Boeira