por Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais
A esquerda fiel ao status quo reprova as manifestações atuais, algo que só interessa a quem não deseja ver as lutas se fortalecerem
Os protestos de junho tiraram alguns conservadores do armário, mas eles já estavam instalados no Congresso, na oposição e nos discursos moralistas antipolítica e anticotas
Por Josué Medeiros/Carta Capital
As comemorações de eventos históricos influenciam na reflexão e na práxis, posto que a memória jamais se converte em elemento estático. Lembrar é ao mesmo tempo fazer/agir, e é assim que devemos celebrar os dois anos das jornadas de junho. Entre 13 e 20 de junho de 2013 o Brasil foi sacudido pelo terremoto das manifestações que inundaram as ruas de jovens, milhões com múltiplas bandeiras, diversas identidades, contra tudo e contra todos. O terremoto foi tão poderoso que produziu impactos duradouros na esquerda brasileira. Partidos e sindicatos sem saber se colocar nos protestos. Movimentos/campanhas de tipo novo, muitos dos quais já existiam, se consolidaram enquanto protagonistas. “Movimento Passe Livre” em São Paulo. “Ocupe Estelita” em Recife. “Cadê o Amarildo?” no Rio de Janeiro. “Fora Lacerda” em Belo Horizonte. Transporte, Moradia, Violência e Representação. As pautas da esquerda articuladas na ideia do Direito à Cidade.
Revoltas Globais
O mesmo terremoto atinge o mundo em meio a um capitalismo em crise, com suas desigualdades crescentes, crise econômica e também política da democracia representativa sem respostas. Seu epicentro é cronológico, no ano de 2011. Em janeiro, a Praça Tahrir foi o território da juventude egípcia assolada pelo desemprego e em luta por democracia, no ponto alto da Primavera Árabe, que começou em dezembro de 2010 na Tunísia e que atingiu dezenas de países; em Nova Iorque, a capital financeira do planeta, o Occupy Wall Street ganhou vida em setembro, movimento dos 99% da sociedade versus o 1% que se apropria de tudo; em maio ocorreu o 15 - M na Espanha, movimento dos Indignados contra a austeridade fiscal, em assembleias contínuas nas praças.
No Chile, a partir de maio, o movimento estudantil em marcha - como fizera em 2006 na Revolução dos Pinguins - pela educação pública; na Rússia, em dezembro, as oposições ao governo Putin protagonizaram os maiores protestos desde o fim da URSS; e na Grécia, também contra austeridade fiscal, desde dezembro de 2010, e com mais força durante 2011 inteiro, nos protestos que paralisaram o país. Todos esses processos se estenderam no tempo, adentrando 2012. E em 2013 a Turquia viveu seu abalo sísmico, com o movimento do Parque Taksim, enfrentamento pela preservação de uma área verde no meio da cidade global e contra um governo centralizador.
Pra que servem as revoltas?
A pergunta soa (ou deveria soar) estranha. A revolta contra as opressões é algo instintivo para a esquerda. Tal questionamento, contudo, é presença constante nos debates sobre as jornadas de junho e sobre as revoltas globais. Argumenta-se, com frequência, que a direita - nacional, vide as recentes manifestações pela saída da mandatária, ou internacional, personificada nos EUA - foi quem “se deu bem”. Muitas das revoltas foram derrotadas, o quadro posterior aos protestos mais instável e perigoso do que a estabilidade anterior.
Ora, Marx se deixou afetar pelas revoltas, mesmo que as considerasse derrotadas de partida. Seu “olhar social” começou, inclusive, com sua revolta diante da criminalização por parte do Estado do costume milenar dos pobres de colher lenha no bosque. O resultado trágico da Comuna de Paris de 1871 e da Revolução Russa de 1905, com a repressão que se seguiu, fortalecimento da direita, prisões, exílios, ou mesmo seu caráter explosivo inicial, espontâneo, nada disso impediu Marx, Lênin, Trotsky e Rosa de saudar as lutas, se engajar nelas, denunciar a violência opressora.
Por que então olhar com reprovação para as atuais revoltas? Trata-se da repetição de um comportamento de uma esquerda do status quo, algo que se reitera cada vez que novas lutas explodem.
As greves do ABC em 1978, que produziram Lula como líder nacional, foram mal vistas por uma esquerda temerosa de que os novos conflitos atrasassem a abertura que já era lenta. Lula foi acusado de servir à CIA, e nisso se encontra com os black blocks que foram acusados também de serem financiados por forças externas. O mesmo já havia ocorrido com os movimentos anti-globalização do final dos 90, com seu grito de “um outro mundo é possível”, criticados por não dizer que mundo era esse.
Todo movimento político pode e deve ser criticado. A interdição do debate, do momento necessário de apontar os erros, só interessa a quem não quer que as lutas se fortaleçam. Pode-se criticar legitimando os protestos, ou condenando-os a priori.
As jornadas marcaram o retorno de uma concepção voluntarista da política, na qual a ação direta de minorias substitui a necessária busca por constituir maiorias. Pequenos grupos acreditam que pelo exemplo enérgico é possível transformar a realidade contra o entendimento majoritário das esquerdas de que a auto-organização das classes subalternas é condição para a sua emancipação, e que a ação direta inconsequente atrapalha na disputa de hegemonia.
Há um debate a ser feito sem dúvida. Contudo, é um debate capenga se não se reconhece que “junho” recolocou na ordem do dia o momento da participação, quebrou em alguma medida as barreiras entre governantes e governados, como tão bem fizera o PT nos anos 1980 e 1990, algo que foi perdido desde que o partido conquistou a presidência. O fato é que as críticas à ação das minorias têm servido, infelizmente, para que boa parte das esquerdas sigam presas aos modos de representação do Estado e das eleições, ou dos seus partidos-guias e suas doutrinas plenas de certeza, sem se abrir de fato para os modos de apresentação – do fazer – trazidos por uma nova geração política.
Respondendo à pergunta insistente e mal colocada, conquistas e direitos só vêm das lutas, e nisso as revoltas podem ajudar mesmo que sejam inicialmente espontâneas, ingênuas, “sem direção”, “apropriadas pela direita”. A Grécia é palco hoje da principal batalha internacional contra o capitalismo financeiro, na luta do Syriza contra o ajuste fiscal. A Espanha tem tudo para reproduzir tal batalha com o Podemos e as plataformas cidadãs, e já é palco de um novo municipalismo radical que pode requalificar o direito à cidade e a própria política. No Chile, a representação se renovou, as lideranças dos protestos e a esquerda “radical” estão no parlamento, a agenda reformista ganha força inédita desde a queda de Pinochet. Na Turquia, as esquerdas que agora se encontram em rede no partido curdo venceram a cláusula de barreira e entraram no parlamento pela primeira vez.
Junho está sendo
O Brasil também já acumula vitórias desde junho de 2013. Mais Médicos, destinação das verbas do pré-sal à saúde e educação, Marco Civil da Internet, a renovação do municipalismo com a gestão de Haddad na prefeitura de São Paulo. A própria vitória de Dilma no 2º turno em 2014 se alimentou dessa energia. Ao mesmo tempo, a ofensiva do ódio conservador, o protagonismo de Eduardo Cunha e sua agenda de ataque aos direitos, as grandes manifestações de março contra a mandatária brasileira alimentam o olhar crítico sobre as jornadas.
Estamos no centro do processo político e social que ajuda a explicar as jornadas de junho. Os governos petistas retomaram o desenvolvimento, e com isso uma nova sociedade emerge, com novas dinâmicas de classe, novas identidades, novos desejos e novas opiniões políticas. Mas ainda se trata de capitalismo com suas desigualdades e contradições, a mais forte delas na questão urbana, com as cidades cada vez mais mercantilizadas. De todo esse caldo de cultura emerge a revolta. Junho explodiu mesmo sem o Brasil viver uma crise econômica, como era o caso dos EUA, Espanha, Grécia, primavera árabe. Nesse momento em que começamos a sentir os efeitos de uma recessão, com aumento do desemprego, queda na renda das famílias, a tragédia da austeridade, é preciso estar atento, na expectativa de novas revoltas.
O mesmo pode ser dito em escala global. O capital segue sua marcha rumo ao império da desigualdade. As pessoas não aceitam isso passivamente. Novas revoltas virão e vão assustar as elites uma vez mais. Às esquerdas cabe apoiar as lutas, os protestos, se colocar ao lado dos oprimidos, contra as violências estatais e do capital.
*Josué Medeiros é professor de Ciência Política membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.
Foto: Protestos (Veronica Manevy)