Retratos do Camarada Alfonso Cano (II)

Retratos do Camarada Alfonso Cano (II)

Escrito por Gabriel Ángel

Viviana Hernández: Não recordo haver escutado a alguém tantas vezes que todos os seres humanos éramos iguais

Meu encontro com o camarada Alfonso teve lugar quando eu tinha quatro anos de estar em fileiras. E começou de um modo vergonhoso para mim. Tinha sido enviada à sua unidade dentro de uma companhia que se transladou do Guaviare à zona de La Uribe, a área do velho acampamento de La Caucha. Ninguém me havia dito a respeito, assim que levei uma enorme surpresa quando me foi comunicado que devia arrumar minhas coisas porque meu destino era o acampamento do Camarada Alfonso. Não o conhecia, assim que achar-me inesperadamente ante esse homem de estatura alta, barba longa e óculos grandes, sério e com aspecto de intelectual, me desconcertou por completo. Mais ainda quando me perguntou se era boa datilógrafa, porque o camarada Raúl Reyes me havia remetido a sua unidade para que fizesse as vezes de sua secretária pessoal.

Eu, a duras penas, havia cursado a metade do segundo ano primário. Assim que, tive que explicar-lhe, não tinha a menor ideia de como se manejava uma máquina de escrever. Na realidade minha primeira entrevista com ele se limitou a contar-lhe a história de minha vida. Meu pai tinha sido um homem de concepções machistas, desses que consideravam que a suas filhas mulheres não tinham por que dar-lhes educação. Em seu parecer, aos quatorze anos iria conseguir um marido com o qual organizaria daí em diante minha vida e portanto qualquer gasto em estudos seria inútil. Mamãe faleceu quando eu era muito pequena e fui criada por meus padrinhos de batismo, num lar no qual os filhos deles sempre me viram como uma estranha, numa espécie de história parecida com a do conto da gata borralheira, ainda que sem príncipe azul que redimisse minha vida.

Aos seis anos, cansada de humilhações, supliquei a papai que me levasse com ele. Porém ele tinha então outra mulher e vários filhos, uma das quais se aliou com minha madrasta para tornar-me a vida impossível. Sempre achavam o modo de que papai me castigasse, e este não tinha condescendências na hora de me dar frequentes surras. Por isso fugi de casa uns dois anos depois, até que minha madrinha voltou a me encontrar com a intenção de fazer-me regressar a casa de papai. A questão se solucionou com meu translado a Bogotá, onde comecei a trabalhar em casas de família, como criada, exercendo, apesar de minha pouca idade, todos os trabalhos domésticos que me impunham. Quando tinha quatorze anos, pedi umas férias e voltei à área de Miravalles, em Lejanías, Meta, de onde havia saído anos atrás. Nessa época meu pai tinha morrido. Por meus irmãos me informei sobre a guerrilha, garotos e garotas das FARC que frequentavam a habitação. Meu destino se tornava cinzento, assim que minha decisão final foi pedir o ingresso nas fileiras. Após uma série de peripécias fui levada com um grupo grande para a área das frentes Primeira e Sétima, no Guaviare, onde recebi meus primeiros cursos políticos e militares e onde me fiz guerrilheira para o resto de minha vida.

Aquilo teve lugar no ano de 1982. Vários anos depois chegou lá o Camarada Raúl Reyes, com um plano de reestruturação da força guerrilheira. Da Primeira e Sétima surgiram várias frentes, colunas e companhias. Fui incorporada a uma destas últimas, que de imediato se preparou para deslocar-se para outra área. 

Foram três meses completos de caminhadas longuíssimas, o que se chama uma marcha guerrilheira de verdade, uma experiência inesquecível. Devo dizer que aquele homem sério escutou toda minha história com enorme interesse, e que desde esse preciso momento tive ideia de sua extraordinária condição humana. Não manifestou a menor inconformidade pelo fato de que não tivesse os conhecimentos que esperava. Aos poucos dias comecei a trabalhar com sua rancheira pessoal, revezando-me com Disney nessa tarefa e começando a conhecer de perto a personalidade desse camarada com quem trabalhei durante 24 anos contínuos. 

Se há algo que me impressionou particularmente dele foi sua entrega à causa. Pouco a pouco fui tomando consciência de quem se tratava, era verdadeiramente um homem muito preparado, estudioso demais, com título universitário e de boa procedência social. Era desse tipo de pessoas que têm tudo na vida, uma família acomodada, avanços acadêmicos, um futuro pleno de êxitos e recompensas. Não era como alguém que se havia feito guerrilheira e revolucionária por conta de sua própria história, das coisas injustas que viveu desde menina em seu meio. Ele era dessas pessoas que amam ao gênero humano, que sofrem com as injustiças, com as violências que os poderosos exercem contra os humildes. Não tinha por que ter assumido o papel de rebelde nas montanhas, onde todo o passado fica para trás e a pessoa se submete a um modo de vida muito duro e difícil, que em nada se parece com a sua vida passada.  Porém não havia dúvida de que tinha verdadeira fé no que fazia, na luta das FARC, no futuro do povo colombiano.

Porém não era só isso. O Camarada era um homem muito sensível, preocupado sinceramente pelos demais, por suas tropas, pelo que sucedia a cada um e pelo modo de solucioná-lo da melhor maneira. Não recordo de ter escutado a alguém tantas vezes que todos os seres humanos éramos iguais, que todos éramos detentores dos mesmos direitos, que ninguém tinha por que se considerar ou comportar-se como mais que os demais. E o demonstrava nos fatos. Até os animais, e em geral a natureza, lhe inspiraram sempre o mais alto respeito e carinho.  

Aos poucos dias de estar desempenhando-me como sua rancheira, compreendi quanto lhe mortificava que seus alimentos fossem preparados num cassino especial. Para ele aquilo constituía uma afronta. Tinha que aceitar pois era uma ordem superior, uma decreto que se aplicava aos membros do Secretariado, por questões de segurança e saúde. Porém, que me consta, ele se aborrecia. Tanto assim que, quando se produziu a dispersão do Secretariado e ele começou a andar só com sua unidade, nunca mais voltou a funcionar um cassino especial para ele. Consumia os mesmos alimentos que os demais e preparados no cassino geral. E se o via feliz fazendo-o. Ninguém como ele para detestar qualquer tipo de privilégio. E essa era uma de suas preocupações nas palestras ao pessoal, nos planos de educação. Os guerrilheiros deviam se formar com esse critério.

Tampouco era amigo das ostentações de força. Sua unidade nunca passou de ser uma guerrilha, ou seja, de uns vinte e seis integrantes. Tinha sua própria argumentação para fundamentá-lo. E havia que ver o modo como se preocupava pela gente sob seu mando. Em sua unidade, com independência de suas responsabilidades e tarefas, ele quase que desempenhava cada uma das funções de seus subordinados. Estava pendente das atuações do oficial de serviço, do contabilista, do rancheiro, do enfermeiro, do intendente, dos secretários das células políticas. Havia que vê-lo chegar ao rancho todas as manhãs a revisar a preparação dos alimentos, a observar se estavam bem tampados e em seu ponto. Conhecia e exigia as medidas das porções, do sal, dos condimentos, do azeite, jamais permitia que se servisse uma comida que estivesse com excesso de sal, de azeite, esfumaçada ou queimada. Ordenava que fosse preparada de novo.

Era tanto seu zelo que costumava parar ao pé das louças na hora de servir as comidas, para cuidar com que as porções fossem distribuídas com critério equitativo. Não admitia trapaças ou vantagens a favor de alguém. Assim que se inteirava de que havia um guerrilheiro ou uma guerrilheira enfermos, se encaminhava para sua barraca visando verificar seu estado. Mas não por desconfiança e sim pela preocupação por sua saúde. Indagava ao doente por todos os seus sintomas e depois fazia acorrer a sua presença o enfermeiro, do qual recolhia suas opiniões sobre o caso e perguntava qual tratamento recomendava. Dava suas impressões, e finalmente os medicamentos a aplicar eram os que surgiam daquele intercâmbio de argumentos. 

O Camarada se preocupava especialmente pela formação ideológica e política do pessoal. Em seu parecer, o mais importante na educação do combatente eram as ideias revolucionárias que havia que meter-lhe na cabeça. Para ele, um guerrilheiro ou uma guerrilheira que não tivesse claro por que causa empunhava sua arma era uma pessoa que, assim como estava hoje disparando daqui para lá, no dia de amanhã facilmente podia estar disparando de lá para cá. Os secretários das células deviam entregar-lhe a cada oito dias seu plano de educação e horas culturais para a semana seguinte e ele o revisava com cuidado e se encarregava de aperfeiçoá-lo antes de sua aplicação. Uma vez chegou de translado um indiozinho que não sabia ler nem escrever. O Camarada traçou um plano para que aprendesse dentro dos meses seguintes e ele mesmo foi seu alfabetizador. Depois o nomeou como contador, pois já sabia escrever, somar e subtrair. Assim era o Camarada Alfonso. 

Duas coisas sempre qualificou de sumamente importantes na criação da consciência de classe: a leitura de obras com característico conteúdo ideológico político ou histórico, assim como a apresentação de filmes de caráter formativo. Com os anos, se foi construindo na unidade um arquivo de cinema e documentários supremamente amplo, que ele se encarregou de distribuir a todas as unidades que dependiam diretamente de seu mando. O Camarada sustentava que os bons filmes contribuíam para ensinar ao combatente muitas coisas, a ampliar sua mente, suas perspectivas acerca do mundo e a experiência histórica da humanidade. Igualmente passava com os bons documentários, havia muito material para ajudar na preparação cultural, política e militar. Como coisa curiosa, era um devoto da música dos Beatles, que o apaixonava verdadeiramente e dos quais me fez conseguir diferentes vídeos e filmes para sua coleção pessoal.

Recordo  de ter-me separado do Camarada em poucas ocasiões. A primeira teve lugar quando se apresentou sua saída para Caracas e depois Tlaxcala, naquele processo de conversações de paz que se levou a cabo com o governo de César Gaviria Trujillo. As tropas do Camarada fomos distribuídas em várias unidades de ordem pública, encarregadas de enfrentar a arremetida da chamada guerra integral com a qual o ministro de Defesa de então assegurava que conseguiria acabar com a guerrilha ao término de dezoito meses. A mim me vincularam à unidade do Camarada Raúl Reyes, onde se trabalhava em propaganda audiovisual sobre nossa luta. Ali aprendi a manejar câmeras, a elaborar e editar vídeos e em geral a desenvolver-me nesse tipo de tarefas. Também terminei conseguindo um companheiro com o qual casar-me. Me sentia bem e feliz.

Ao regressar, o Camarada Alfonso recolheu todas as suas tropas distribuídas em distintas unidades. Quanto a mim, me fez saber que conhecia minha situação e acrescentou que eu podia ficar nessa unidade pelo tempo que considerasse. Que continuava pertencendo a sua unidade, porém que me deixava ali até quando eu considerasse chegado o momento de voltar com ele, quando seria bem recebida. O Camarada era assim, um homem supremamente bom, de coração excepcional, com quem se podia falar das coisas mais pessoais, encontrando sempre sua disposição favorável, uma pessoa realmente preocupada pela outra. Dessa maneira, a pessoa não tinha outro remédio senão querê-lo, profundamente, mais que a um pai, a um irmão ou a um filho. Posso dizer agora, transcorridos cinco anos de sua perda, superada por fim a época em que me era impossível falar dele sem lançar-me a chorar com um nó na garganta, que sua morte representou um golpe terrível para todos. Por um momento pareceu que o mundo se nos acabava.

O Camarada era um homem silencioso. Escutava o que alguém lhe dizia sem fazer o menor comentário a respeito, simplesmente perguntando que mais tinha a pessoa para lhe contar. Às vezes a pessoa acreditava que nem sequer lhe havia posto cuidado ao que lhe havia contado, que sua mente havia estado ocupada em assuntos muito mais importantes. Porém, sempre terminava surpreendendo ao interlocutor, quando passados dois ou três dias voltava a chamá-lo e lhe dava resposta exata à proposta ou à inquietação expressada, por pequena que fosse. Seus olhos e seu olhar eram profundos, penetrava na alma de seu interlocutor como se fosse um escâner, até conseguir auscultar a menor de suas inquietudes. Sabia, portanto, detectar as mentiras, detectar num piscar, no mais ligeiro gesto, que não se estava lhe dizendo a verdade.

Quando descobria, se irritava seriamente. Odiava que mentissem pra ele, isso, sim, que conseguia fazê-lo perder a paciência. Todos sabíamos, por isso, que o melhor com ele era andar sempre com a verdade nos lábios. Outra coisa que lhe resultava incompreensível e que odiava tanto como a mentira era a traição. O guerrilheiro, o miliciano, o militante de partido, simplesmente o amigo que se voltava contra a causa, que se punha a trabalhar com o inimigo pela razão que fosse, sempre lhe inspiraram o mais vivo dos desprezos. Havia que ver o modo como se expressava sobre eles.

Quando voltei a sua unidade, com pouco tempo me designou a cumprir tarefas fora, na cidade, em outros blocos e outras frentes, como seu correio e pessoa de total confiança. A mim pessoalmente isso me enchia de medo. E não só por mim mesma como também por ele. Me aterrorizava pensar que por uma fragilidade ou alguma irresponsabilidade de minha parte o Camarada fosse sofrer as consequências. Talvez por isso sempre fui muito cuidadosa e disciplinada. Durante os seguintes quinze anos que desempenhei a tarefa de ser seu contato pessoal com muitas pessoas em distintas partes do país, nem uma só vez cheguei a ser problema para o Camarada ou para as pessoas de sua confiança. Ele valorizava muito isso e, apesar de ouvir minhas preocupações, nunca me quis afastar dessa missão.

Durante os últimos tempos foi cada vez mais difícil cumpri-la. O cerco militar que foi se tecendo ao seu redor se tornava mês a mês mais angustioso. As operações militares, os desembarques, os bombardeios sobre toda essa zona sul do Tolima se converteram no pão de cada dia.

Eu me achava com ele na noite de 21 de agosto de 2010, quando fomos surpreendidos pelos aviões e as bombas que caíram com toda fúria sobre o acampamento que acabávamos de abandonar, localizado a uns 30 minutos do lugar onde pernoitávamos. Um informe de último momento havia feito o Camarada tomar a decisão de sair desse lugar de maneira imediata, no chamado Cañón de la Hacienda, na zona de Marquetalia. Depois do bombardeio se produziu o desembarque do Exército. O Camarada ainda andava com o Camarada Pablo Catatumbo, quem se encontrava lesado de um braço por causa de um acidente e sofria para se mover com agilidade.

Nos retiramos do lugar em plena escuridão e então me apercebi do sangue frio do Camarada Alfonso. Era certo que o Exército havia desembarcado talvez a menos de dois quilômetros de nós, porém isso era o de menos. Sabíamos bem que os fios que rodeavam o canhão pelo qual avançávamos estavam semeados de tropas inimigas desde tempo atrás, de maneira que a qualquer momento se poderia produzir um choque armado. Foram vários dias de marcha até nos fixarmos num lugar seguro. Porém devo dizer que nem uma só vez vi um gesto de obsessão ou de preocupação em torno do rosto do Camarada Alfonso. Sua calma, o controle de seus nervos era total. Inspirava e transmitia tranquilidade. Nesses momentos a pessoa pensava se não seria que o Camarada era ingênuo e não media com exatidão o perigo que nos rodeava, porém agora sei que não era assim. O Camarada simplesmente era consciente de que devia inspirar segurança na gente e fazia isso. Quando acreditávamos que ia ordenar que a metade do pessoal se entrincheirasse enquanto a outra metade dormia, para revezar-se a cada duas ou três horas, ele dispunha de uma guarda normal, o revezador e dois sentinelas. Recomendava muita disciplina e estar em constante vigilância, porém não exagerava nas medidas, sabia que a gente tinha que descansar e repor forças para o que pudesse suceder na manhã seguinte.

Depois dessa dura experiência se produziu a decisão de que ele e o Camarada Pablo se separassem. Se algo havia de suceder, não era conveniente que lhes passasse juntos. Aquela separação se tornou muito dolorosa para eles, assim como para todos os demais. Quanto a mim, o camarada dispôs que não voltasse a seu lado. Devia sair para um lugar seguro no qual permanecer, em contato radiofônico com ele por meio de Teófilo, e receber ali as missões que se me confiassem fora. Após regressar, devia empregar esse contato para fazer-lhe chegar minhas respostas. Assim trabalhamos até que se produziu sua morte. Durante esse interregno tive, pela primeira vez, problemas com minha segurança. Uma desertora, que tinha pertencido à unidade do Camarada, deu a informação ao inimigo acerca de mim e da natureza de minhas missões. Fui localizada em Bogotá e submetida a implacáveis seguimentos por parte dos serviços de inteligência. Graças ao apoio de muita gente consegui escapar dessa caçada e voltar ao campo, a um lugar seguro. Estava em busca de contato com a unidade do Camarada quando se produziu a notícia de sua morte, sem dúvida alguma a mais dolorosa e terrível que tenha recebido em toda minha vida. A Colômbia não tem ideia do extraordinário homem do qual foi privada.

Tradução: Joaquim Lisboa Neto

 


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