Para que ocorra a necessária ruptura com o padrão econômico de produção global, primeiramente é preciso admitir que há uma finitude física da Terra que não pode suportar o atual modelo de civilização dominante, cujo traço marcante se apoia numa extensiva produção para atender um consumo excessivo.
Marcus Eduardo de Oliveira
Sem essa admissão não se criam possibilidades mínimas para a mudança; essa última, por sua vez, é uma situação exigida frente ao esgotamento dos principais serviços ecossistêmicos e do desequilíbrio das condições climáticas, impostas justamente em larga medida pelo modo de produzir das economias globais.
É de bom tom entender que qualquer mudança de modelo econômico - caso ocorra - somente terá validade, e se perpetuará, se todos juntos construirmos uma civilização global baseada em princípios que condicionam à humanidade a viver em paz, praticando valores diferentes da lógica mercantil que tem dominado a cena econômica nos últimos séculos.
Essa lógica, é importante frisar, foi fundada desde que o homem, no século XV, a partir da modernidade (Renascimento), passou a ocupar o centro do universo e, desde então, fez da aquisição material argumento central para a busca de progresso pessoal.
Sendo uma ambição natural de todos, o ato de viver em paz, por sua vez, somente logrará êxito se parte considerável da humanidade, especialmente os 16% da população mundial mais ricos que consomem 78% de toda a produção global, abandonar a visão comum de que o consumismo per si proporciona possibilidades de autorrealização individual.
Concomitante a isso, é necessário ainda, por parte de todos - principalmente dos que estão na parte de baixo da pirâmide social - a defesa de um modelo de economia e produção industrial que priorize e coloque em evidência a ciência e a técnica voltadas ao serviço de projetos que cuidem do meio ambiente e do bem-estar das comunidades mais carentes.
Portanto, a condição ampla para se viver em paz, em toda a plenitude que essa situação denota, quer seja no lar, no ambiente de trabalho, no seio familiar e na vida comunitária, acrescido da urgentíssima necessidade de nos sentirmos acolhidos por um meio ambiente equilibrado e sustentável, em que as condições de vida prospere sem sobressaltos, são aspirações imanentes de parte considerável da sociedade que sabe, na medida do possível, o valor moral que carrega a famosa Regra de Ouro dos valores universais: "Não faça aos outros o que você não quer que seja feito a você".
Por isso, a agressão disferida pela ação antrópica dos consumistas vorazes sobre o meio ambiente, por exemplo, precisa ser entendida, antes de qualquer outra coisa, como uma agressão à própria vida humana, uma vez que isso se volta para a própria humanidade, afetando ricos e pobres, desenvolvidos ou não, daí a importância de se resgatar a Regra de Ouro mencionada.
É fato inexorável que, se desejamos ter uma vida boa e tranquila, com nuances de paz e serenidade, valores esses tão caros aos que cultuam a vida em toda plenitude, não podemos aceitar que nossos pares continuem a agredir a natureza, seus recursos e sua rica biodiversidade, uma vez que isso, no futuro, se voltará contra todos nós.
Isso não quer dizer, contudo, um tratamento de vingança da natureza para conosco, ao contrário: a natureza não é - e nunca foi - vingativa, ela apenas responde, na mesma medida, ao tratamento recebido.
Portanto, não podemos perder de vista que, para cada ação sempre haverá uma reação. Desse modo, se o atual desequilíbrio ambiental, aquecimento global, buraco na camada de ozônio, esgotamento de serviços ecossistêmicos e a degradação sistemática do meio ambiente tem colocado a vida humana em situação de risco, foi o próprio estilo de vida dos homens da modernidade - consumista e perdulário - que criou tal situação.
Em linhas gerais, é preciso destacar que toda e qualquer enfermidade tem uma causa originária, quase sempre relacionada a desvios de conduta. Entretanto, para todo mal há de se buscar a cura.
Todo organismo vivo - a Terra, as pessoas - necessita de cuidado. Olhando com certa atenção para a filologia, temos uma observação importante feita por Leonardo Boff, baseando-se em Martin Heidegger, que vale resgatar aqui.
Escreve Boff que "em latim, donde se derivam as línguas latinas e o português, cuidado significa Cura. Cura é um dos sinônimos eruditos de cuidado, utilizado na tradução do famoso Ser e Tempo, de Martin Heidegger. Em seu sentido mais antigo, cura se escrevia em latim coera e se usava em um contexto de relações humanas de amor e de amizade. Cura queria expressar a atitude de cuidado, de desvelo, de preocupação e de inquietação pelo objeto ou pela pessoa amada. Outros derivam cuidado de cogitare-cogitatus e de sua corruptela coyedar, coidar, cuidar. O sentido de cogitare-cogitatus é o mesmo de cura: cogitar e pensar na outra pessoa, colocar a atenção nela, mostrar interesse por ela e revelar uma atitude de desvelo, até de preocupação por ela".
Assim, reforçando esse ponto, se nosso planeta está doente, ele precisa urgentemente de cuidado para então ser curado. Se a humanidade, de modo análogo, também se encontra enferma diante de tantas injustiças sociais que clamam por soluções, é urgente e imprescindível promover o alvorecer de um renascimento que inaugure no indivíduo, primeiramente, a preocupação em cuidar da natureza, da qual ele - homem - depende inexoravelmente para sua sobrevivência, pois assim, direta e indiretamente, estará cuidando de si próprio.
Essa "cura" do planeta e também das pessoas, aos meus olhos, passa pela mudança desse jeito consumista que tanto mal tem feito à biosfera, esfoliada pela ganância produtiva de um sistema econômico que busca na política de crescimento seus resultados em termos de lucros.
Se o planeta está doente, nós também nos encontramos assim, uma vez que não estamos apenas de passagem pela natureza, somos, antes, a própria natureza que em nós se manifesta de diversas formas.
As pontuais palavras do cacique Seatlle, proferidas em 1854, em direção ao governante norte-americano, de tão propagadas ao longo do tempo se tornaram quase senso comum, por isso se afirmam sempre atuais, embora já conte mais de 160 anos: "De uma coisa sabemos. A terra não pertence ao homem: é o homem que pertence à terra, disso temos certeza. Todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma família. Tudo está relacionado entre si. Tudo quanto agride a terra, agride os filhos da terra. Não foi o homem quem teceu a trama da vida: ele é meramente um fio da mesma. Tudo o que ele fizer à trama, a si próprio fará".
Marcus Eduardo de Oliveira é economista e ativista ambiental
prof.marcuseduardo@bol.com.br