A criatividade da banda Nação Zumbi não sobreviveu à morte de Chico Science. É fácil perceber isso. Chico, aliás, era o cérebro da banda e todos aqueles caranguejos com cérebros. O catalisador. A catarse.
Clóvis Campêlo
A banda ainda insiste e existe, mas institucionalizou-se. Pratica o continuísmo sem evoluções. Ultimamente, anda até se dividindo, desentendendo-se. Depois de 30 anos de estrada, descobriram que um dos companheiros não tinha mais (ou nunca teve) profissionalismo e espírito de grupo. Escondia-se atrás da alfaia que deveria tocar, muito embora o som da banda tenha sumido. Consumido-se. Convenhamos: além dos Beatles, ninguém mais resiste a trinta anos de revoluções. E nunca mais a estrovenga girou, passando perto do meu pescoço.
Hoje, escuta-se fácil a trovoada dos tambores ocupando as esquinas do Recife. Em mais uma apropriação indébita, a classe média e a gringalhada tomou conta dos maracatus. Essa mesma classe média que alimentou e viabilizou a revolução dos mangues boys, sufoca o maracatu legítimo, o maracatu de raiz. Acelera o seu ritmo e o desassocia do fundo religioso que sempre nele existiu. Deus nos salve do dinheiro importante e necessário da classe média. O maracatu embranqueceu. Dói-nos até dizer que esse embranquecimento pode ter se iniciado com o mangue-beat (ou bit).
Deus me livre, também, de querer exercitar algum sentimento de culpa se a ordem sempre foi misturar tudo (Are you experience?). Nem mesmo alcancei dona Santa correndo da polícia no Pátio do Terço ou na Rua das Calçadas. Figura carismática e sintetizadora, como Chico também o foi. O que os diferenciava era a bagagem que cada um trazia. Os tempos também eram outros. E o produssumo ainda não queimava a bagagem.
Mas, que sou eu, um típico exemplar da classe média usurpadora, para querer exercitar o saudosismo? Reis mortos, reis postos! Quem imaginaria que aquele poste em frente a Escola dos Aprendizes Marinheiros, no caminho de Olinda, encerraria de forma abrupta e absurda uma revolução sonora? Ainda hoje quando passo por ali me arrepio de emoção e escuto o silêncio medonho e dramático da catástrofe. Bem ali, na beira do mangue, o sangue estancou na lama.
Chico Science morreu no dia 2 de fevereiro de 1997, uma sexta-feira, nos limites dos municípios de Olinda e Recife, às vésperas do carnaval e do Galo da Madrugada. No Recife, Lenine propôs que não houvesse mais carnaval nas cidades naquele ano. Impossível. Milhões de gritos primais represados em gargantas profundas aguardavam a sua liberação. O espetáculo não deveria e não poderia parar. Assim foi feito.
Em vida Chico gravou dois discos com a banda Nação Zumbi: Da Lama ao Caos e Afrociberdelia, ambos incluídos pela revista Rolling Stones entre os cem melhores discos da MPB em todos os tempos. Posteriormente, Chico seria colocado pela mesma revista entre os cem maiores artistas da música brasileira. Para mim, mais do que justo.
Dona Santa faleceu no Recife, em 1962, aos 85 anos. Filha e neta de africanos, nasceu no Pátio da Santa Cruz, no dia 25 de março de 1877. Foi rainha do Maracatu Nação Elefante por dezesseis anos, de 1947 até a sua morte.
Vida eterna ao rei e à rainha!
Recife, fevereiro 2016