Grupo armado ataca comunidade indígena um dia após reuniões do Ministério da Justiça com indígenas e fazendeiros para tentar solucionar conflitos em Mato Grosso do Sul. Na TI Ñande Ru Marangatu, alvo de ataque no dia 29, famílias Guarani Kaiowá ainda estão vulneráveis
Na noite desta quinta-feira (3/9), outra comunidade Guarani Kaiowá foi atacada por fazendeiros: a área conhecida como Guyra Kambi'y, na Terra Indígena (TI) Panambi-Lagoa Rica, entre os municípios de Douradina e Itaporã (MS). A área fica a cerca de 200 quilômetros da TI Ñande Ru Marangatu, em Antônio João, fronteira com o Paraguai, onde Simião Vilhalva Guarani Kaiowa foi assassinado e outros indígenas foram feridos, no sábado (29/8) (veja de fotos abaixo).
Em Guyra Kambi'y, os indígenas notificaram a Fundação Nacional do Índio (Funai) tão logo caminhonetes e um grupo armado aproximaram-se de seu território tradicional, em tempo hábil para que o órgão indigenista acionasse a Polícia Federal. Os policiais teriam negado atendimento, segundo informações do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
A comunidade teria sido alvo de tiros, precisou correr para o mato e o acampamento em que estavam os quase 100 indígenas, metade dos quais crianças e adolescentes, teria sido queimado, ainda de acordo com o Cimi. A informação até agora é que os índios afastaram-se do local ocupado originalmente, mas mantêm a decisão de continuar na terra e que os fazendeiros também pretendem expulsá-los por conta própria. O risco de um novo ataque aos índios, portanto, é alto.
Organizações indígenas e indigenistas denunciam que o governo está sendo omisso em garantir a segurança dos índios e exigem que forças policiais sejam deslocadas para impedir novos ataques nas áreas mais críticas do Mato Grosso do Sul. A preocupação é ainda maior às vésperas do feriado de 7/9, o que poderia facilitar a ação dos fazendeiros.
O ataque desta quinta aconteceu um dia após reunião convocada pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, para discutir soluções para os conflitos fundiários na região sul do Mato Grosso do Sul. Na tarde de quarta (2/9), em Campo Grande, lideranças indígenas e fazendeiros reuniram-se com Cardozo e representantes do Ministério Público Federal (MPF), Conselho Nacional de Justiça (CNJ), governo do estado, Polícia Federal e Exército.
O governo limitou-se a propor a retomada das "mesas de diálogo" entre indígenas e proprietários rurais e a escolha de cinco terras indígenas prioritárias a serem regularizadas. Trata-se da mesma proposta feita em 2013, quando dos conflitos na TI Buriti, em Sidrolândia, e do assassinato do indígena Oziel Terena (saiba mais). De lá para cá, nenhuma a discussão de uma saída para os conflitos
Caso a proposta seja aceita, as terras eleitas não poderão ser objeto de retomadas por parte dos indígenas ou de ações de reintegração de posse por parte dos fazendeiros. Segundo informações da organização Aty Guasu, as lideranças indígenas irão se reunir entre os dias 5 e 6/9, na TI Ñande Ru Marangatu - alvo de ataques no último sábado - para avaliar a proposta (veja nota da Aty Guasu).
Durante a reunião em Campo Grande, Cardozo criticou a estratégia de judicialização dos processos de demarcação por parte dos proprietários e também afirmou que foi um erro não ter iniciado mesas de diálogo em torno de outras terras em litígio já em 2013.
Vulnerabilidade
Na TI Ñande Ru Marangatu, a situação da comunidade indígena ainda é de grande vulnerabilidade, apesar da presença da Força Nacional, do Exército e do Departamento de Operações de Fronteira (DOF), vinculado à Secretaria de Segurança do Mato Grosso do Sul. Segundo a professora indígena Inaye Gomes Lopes, os mais de 2 mil indígenas que estão nas áreas reocupadas da TI enfrentam dificuldades para conseguir alimentos e continuam sofrendo ameaças.
"Os produtores rurais colocaram a população do município contra os povos indígenas mesmo. A gente não está conseguindo comprar alimentação e está se virando como pode", conta. Ela informa que as forças de segurança continuam concentradas na sede das fazendas e acompanham a circulação dos proprietários.
A comunidade indígena deixou, no dia 22/8, a aldeia de 600 hectares em que aguardava, há mais de dez anos, a solução do processo judicial que suspendeu a homologação da TI Ñande Ru Marangatu no Supremo Tribunal Federal (STF) para reocupar parte dela. Agora depende da ajuda da Funai para conseguir alimentos e lona para manter seus acampamentos. Algumas famílias continuam desabrigadas.
Em entrevista, o chefe da Coordenação Regional em Ponta Porã da Funai, Elder Ribas, informa que cerca de 60 kg de alimentos foram entregues de forma emergencial aos Guarani Kaiowá em Ñande Ru Marangatu na semana após o ataque. A partir da próxima semana, cada uma das famílias passará a receber duas cestas básicas por mês, além de alimentos arrecadados por campanhas da sociedade civil. Segundo Ribas, a atuação das forças de segurança foi discutida ontem (3/9), em Campo Grande, tendo em vista que até o momento elas estão apenas trabalhando pela garantia da lei e da ordem - e não na assistência aos indígenas.
Assassinato
Inaye Lopes conta ainda que, no momento do assassinato de Simião Vilhalva, a Força Nacional já estava presente na Terra Indígena, mas concentrava-se em torno da sede da Fazenda Barra, um dos focos de ataque dos fazendeiros. "Na Fazenda Barra houve muitos feridos: crianças, jovens adultos. Mas não houve mortes. Mas, nesse momento, também, os mesmos capangas, junto com fazendeiros e políticos que estavam com eles, partiram para outra fazenda [Fronteira] e começaram a atirar nos indígenas", explica Lopes.
Simião foi alvejado enquanto tentava localizar mulher e filho, em meio aos ataques na Fazenda Fronteira. "Quando os fazendeiros chegaram e deram tiros, o filho dele desmaiou. Nesse momento, a esposa [de Simeão] pegou o filho e fugiu para o mato. Ele desceu para ir atrás da esposa e do filho na beira do rio, onde um capanga dos fazendeiros atirou", lembra Lopes, que foi uma das primeiras pessoas a encontrar o corpo de Simeão. O sepultamento ocorreu na segunda-feira (30/8).
Até o momento, foi apontado um suspeito do assassinato, mas ele não foi preso. A principal testemunha não foi ouvida e a perícia ainda não foi concluída.
Lopes relata que, além de capangas e fazendeiros, estavam presentes durante os ataques vereadores da cidade de Antônio João, o vice-prefeito do município, Antônio César Flores, e o deputado federal Luiz Henrique Mandetta. "Ele [Mandetta] estava junto com os fazendeiros, de frente para os indígenas", denuncia a professora. Em nota pública divulgada ontem, organizações indígenas e indigenistas, entre elas o ISA, exigem a investigação participação dos parlamentares nesses eventos.
Indenização
Questionada sobre a proposta ruralista de estabelecer indenizações em dinheiro aos proprietários de títulos de boa-fé que incidam sobre terras indígenas, Lopes afirma que pode ser uma solução, desde que a violência de fato acabe. "A gente não quer mais ver nossas crianças serem recebidas por bala. Então que se resolva. Que seja assim. Se é pra resolver o problema e a gente não ser mais assassinado, eu sou totalmente a favor".
Já Ribas, da Funai, avalia que, nos termos do atual texto da PEC 71/2011 [saiba mais], a proposta não tem viabilidade econômica. "A gente acha que ela vai ser inviável. Vai travar do mesmo jeito, porque, do ponto de vista prático, obriga a pagar em dinheiro - e o governo não vai ter condições de pagar".
"A gente vai permanecer firme. A gente quer que justiça seja feita, porque ele não merecia estar morto ali. O Simião perdeu a vida dele. O Dorvalino Rocha perdeu a vida dele por causa da terra Ñande Ru Marangatu. Os fazendeiros podem matar um, mas eles nunca vão exterminar as pessoas. Eles acham que matando índio vão resolver. Não. Matou um, levantam dez, vinte", diz Lopes.
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