Cristina resiste contra golpistas apoiados pelos EUA

O ambiente político que impera nesses primeiros dias de março evoca a atmosfera do tango Verano Porteño, em que Piazzolla mescla uma sonoridade encrespada com uma melodia densa.

Os últimos dias de estio têm sido tórridos, com temperaturas superiores aos 30 graus, podendo alcançar os 35 graus quando alguém caminha pelas estreitas ruas do centro, próximas à Casa Rosada, o palácio de onde despacha a Chefe de Estado.

A morte do procurador Alberto Nisman, cujo corpo foi encontrado com um tiro na cabeça, é o pretexto em que se apoiam os neogolpistas interessados em incendiar o cenário.

Quando faltam 7 meses para o fim de seu segundo mandato, Cristina é objeto de uma campanha destituinte lançada pela oposição direitista e pela imprensa local, ambas respaldadas pelos principais grupos internacionais de notícias, com a CNN na vanguarda. E por trás de tudo isso, parece atuar o grande braço de Washington, interessado em fazer com que Cristina pague caro por sua aproximação com Irã, Venezuela e China.

Cristina não retrocede diante da estratégia incendiária de seus inimigos e promete enfrentá-los convocando os militantes, em boa parte os jovens, para “defender o projeto” iniciado em 2003 por seu marido, o falecido Néstor Kirchner, responsável pelo estreitamento das relações com o Brasil.

Fundamentalistas

Fanáticos, alguns inimigos do governo kirchnerista reconhecem que estão dispostos a prosseguir até um golpe branco, se com isso pudessem “defenestrar essa mulher de merda que está ocupando a Casa Rosada”, declara a senhora Beatriz Gimenez.

“Essa máfia bolivariana que está governando nosso país está acabando com tudo de bom que tivemos”, me diz uma indignadíssima Gimenez, que se apresenta como gerente de uma empresa de turismo na Avenida Santa Fe, situada no endinheirado bairro Norte, conhecido como um dos principais redutos do “anticristinismo”.

“Cristina está metida em tudo o que há de podre neste país. Eu tenho certeza de que ela mandou matar o procurador Alberto Nisman para calá-lo, foi um assassinato mafioso típico dos peronistas (seguidores do general Juan Perón). Essa gentalha tem que sair da (Casa) Rosada de qualquer jeito, porque na Argentina a maioria somos gente decente”, acrescenta.

De cabelo loiro e pele bronzeada – além de um botox que dá volume exagerado a seus lábios –, a senhora Gimenez dá por certo que o procurador Nisman “foi assassinado por gente a mando do governo”, apesar de os relatórios dos peritos da Corte Suprema não terem encontrado elementos para sustentar essa hipótese que, por ora, parece pouco crível.

As opiniões da senhora Gimenez, contaminadas pelo bombardeio de notícias falsas lançado pela imprensa tradicional, se repetem nos shoppings de alto padrão de consumo ou nos bares do aristocrático bairro da Recoleta, onde o mundo fala de política.

Espelho da Avenida Paulista

Aqui, na orla do Rio da Prata, a oposição ao kirchnerismo não emprega o termo “impeachment”, como fazem no Brasil os detratores da presidenta Dilma, mas querem que Cristina saia de qualquer modo, acusando-a pela morte do procurador Nisman – que em meados de janeiro apareceu morto com um tipo na cabeça em seu apartamento, em um episódio ainda não esclarecido, mas que poderia ter sido suicídio.

Milhares de portenhos – entre eles, a gerente Beatriz Gimenez – que participaram da passeata desestabilizadora do dia 18 de fevereiro, insultaram o governo e o grupo La Cámpora, formado por jovens quadros kirchneristas leais à mandatária e a uma gestão que culmina com os acordos estratégicos firmados com a China há um mês e com a reestatização das ferrovias, promulgada na primeira semana de março.

O que se viu na Avenida de Maio, em Buenos Aires, em fevereiro, tem muita semelhança com as manifestações da Avenida Paulista, onde senhoras bem vestidas e perfumadas escondem sua saudade pela ditadura que derrubou João Goulart em 1964.

A mobilização destituinte do mês passado que desembocou na histórica Praça de Maio foi encabeçada por um grupo de procuradores – entre os quais há vários com um passado ligado à ditadura militar que governou a Argentina entre 1976 e 1983, com um saldo de 30 mil mortos e desaparecidos.

Em que pese sua grande exposição, a mobilização de 18 de fevereiro não conseguiu convocar um número importante de trabalhadores organizados, nem moradores das favelas, nem jovens com menos de 25 anos, uma faixa etária na qual o kirchnerismo é forte.

Em contrapartida, o ato de respaldo ao governo, ocorrido em 1° de março, contou com a presença de uma maioria de jovens junto a quem marcharam cidadãos oriundos dos subúrbios pobres da Grande Buenos Aires.

Intromissão dos EUA e de Israel

O procurador Alberto Nisman, que era um assíduo visitante da embaixada dos EUA, segundo documentou o Wikileaks, morreu pouco depois de acusar Cristina Fernández de Kirchner, em uma entrevista exclusiva ao Grupo Clarín, de ter obstruído a investigação do atentado terrorista que matou 85 pessoas em 1994, em uma associação da comunidade judia.

Atuando como um bispo dentro do xadrez diplomático que há anos os Estados Unidos e a Argentina disputam, Nisman recebia ordens de seus chefes políticos nos Estados Unidos e, também não se descarta, em Israel.

Essa relação do fiscal morto Nisman com Washington e Tel Aviv é algo que praticamente ninguém desconhece, e é até admitida implicitamente por alguns porta-vozes da direita, como a deputada Elisa Carrió.

Com seu tom provocador, similar ao da golpista venezuelana Maria Corina Machado (amiga de Aécio Neves), a opositora Carrió recomendou ao governo que solicite apoio à CIA e denunciou uma suposta conspiração de Venezuela e Irã para semear o terror na Argentina.

É claro que o governo argentino não seguiu os conselhos da legisladora, cujas declarações extravagantes não fazem inveja às do ex-militar e deputado carioca Jair Bolsonaro.

 

Em 8 de março, dia Internacional da Mulher, o ministro de Relações Exteriores Héctor Timmerman declarou que seu governo segue uma política exterior “independente” e considera que não é necessário “estar muito perto” da Casa Branca.

Em entrevista ao programa “60 minutos”, do canal norte-americano CBS, o ministro disse que “Washington estava sempre pressionando” o procurador Nisman para manipular a investigação do atentado contra a associação judia em 1994, a fim de culpar o governo do Irã.

Antes de falar no “60 minutos”, o chefe da política externa portenha havia solicitado aos governos de Barack Obama e Benjamin Netaniahu que não usassem o caso Nisman para intervir na política argentina, agravando o quadro desestabilizador construído pelas forças conservadoras.

“A Argentina não tem qualquer interesse estratégico, militar ou de inteligência no Oriente Médio. E observa com preocupação como alguns Estados intervêm em outros países para resolver suas disputas geopolíticas. Meu país rechaça essas ações e solicita que elas não ocorram em território argentino”.

Essa posição do titular do Palácio San Martin, sede do ministério de Relações Exteriores, recebeu enérgicas respostas das autoridades americanas e israelenses, que insistem em culpar o Irã pela matança de 85 pessoas em 1994, em Buenos Aires.

O próprio Netaniahu reiterou sua acusação ao Irã pelo massacre ao falar no Parlamento norte-americano no começo de março, o que foi entendido como uma advertência ao governo de Cristina, que acabará em 10 de dezembro.

O mensalão de Cristina

Em várias pesquisas, Cristina, eleita duas vezes e impedida constitucionalmente de tentar um terceiro mandato, conserva uma popularidade próxima aos 40%, bastante superior à de seus adversários políticos – como Mauricio Macri, prefeito de Buenos Aires e homem forte do clube Boca Juniors; e Sergio Massa, um ex-funcionário do governo de Néstor Kirchner que migrou para a oposição.

Mauricio Macri e Massa possivelmente serão candidatos nas eleições presidenciais do próximo dia 15 de outubro, quando o kirchnerismo se apresentará com um postulante ainda não definido. Este terá como principal capital o respaldo da mandatária.

É nesse contexto que a estratégia conservadora se apoia no desgaste da imagem presidencial, associando-a à morte do procurador Nisman e judicializando a campanha por meio de manobras de um importante grupo de juízes e procuradores que integram o “partido judicial”, segundo definição dada por Crisina.

Embora não escondam o fato de fazerem parte da ofensiva desestabilizadora, os procuradores são tratados como próceres pela imprensa, num roteiro em que são elevados à condição de heróis nacionais por sua obsessiva perseguição ao governo – imitando o ocorrido no Brasil, com o endeusamento do ministro Joaquim Barbosa durante o processo do mensalão.

Isso explica por que a multitudinária marcha opositora de fevereiro foi encabeçada por procuradores, por trás de quem caminham, semiocultos, os dirigentes da oposição, que ainda não tem uma estratégia comum para enfrentar o kirchnerismo nas eleições de outubro.

Podemos e Chomsky

Na segunda-feira, 9 de março, quando os EUA anunciavam represálias contra a Venezuela, um grupo de jovens defendiam o governo do presidente Nicolás Maduro em um café da rua Córdoba, próximo ao belíssimo Teatro Cervantes.

“Obama está tentando derrotar Maduro e Cristina ao mesmo tempo, para erradicar a chama latino-americana acendida por Kirchner, Chávez e Lula há 10 anos, quando eles sepultaram a Alca na reunião (Cúpula das Américas) de Mar del Plata”, afirma Guillermo Guisoni, um garoto de 18 anos que pretende cursar sociologia na Universidade de Buenos Aires.

Guillermo e dois amigos da mesma idade dizem que querem assistir ao Seminário Internacional pela Emancipação e a Igualdade, organizado pelo Ministério da Cultura e pela Secretaria do Pensamento Nacional, em que se reuniem algumas das cabeças mais prolíficas do pensamento político e da ação política. Representantes do partido espanhol Podemos, Noam Chomsky, o vice-presidente boliviano, Alvaro García Linera, Emir Sader, Ignacio Ramonet, o mexicano Cuauhtemoc Càrdenas e o italiano Gianni Vattimo estão entre os que dissertarão no Cervantes, uma joia arquitetônica construída à imagem e semelhança do Colégio San Idelfonso, na Espanha.

“Vamos chegar cedo ao Cervantes para ficar em primeiro na fila dos ingressos porque virá muita gente. E se não conseguirmos entrar, vamos ficar do lado de fora, vendo pelo telão”, conforma-se Guillermo, que em 15 de outubro votará pela primeira vez. “Em quem vai votar?”. “No candidato indicado por Cristina, é claro”, responde com segurança o garoto, enquanto seus companheiros sorriem com um gesto de aprovação.

Texto: / Postado em 19/03/2015 ás 09:52

 

 

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