Economia em Queda Livre na Bolívia

Com declarações desencontradas, governo nega a grave crise sentida por todos, de todas as classes sociais

A economia boliviana enfrenta crônica crise, sentida fortemente pelos cidadãos locais e reconhecida semanalmente por diversos organismos internacionais. O sentimento geral no país ao centro da América do Sul, é que a situação piora a cada dia: a vida tem estado extremamente difícil para os bolivianos como não se sentia há muitos anos, e talvez décadas.

Os preços dos produtos, desde os mais básicos, multiplicam-se enquanto há escassez de combustíveis e dólares. Devido a estes dois últimos fatos, no dia 10 de junho os transportadores declararam greve por tempo indeterminado com bloqueios de estradas e fechamento de fronteiras, em protesto contra o governo nacional.

Tragédia

Definir o que enfrenta hoje o país andino uma “tragédia” não seria exagero, mesmo que apenas do ponto de vista econômico – os problemas da Bolívia vão muto além dessa questão, levando os cidadãos a uma grande incerteza. Não é o que diz – quando diz algo sobre o problema – o governo de Luis Arce, do partido Movimento ao Socialismo (MAS). A isso se soma crise política com feroz disputa interna no partido governista, particularmente entre o presidente Arce e Evo Morales, e crise social com aumento vertiginoso da violência.

O governo nacional opta principalmente pela omissão através do silêncio, incomodando os cidadãos mesmo quando, muito raramente, reconhece que há “alguma coisa” que não funcionr bem na economia. Nas poucas vezes em que se atreve a contrariar a realidade dizendo que não há crise, agrava sua própria situação – a do governo e a da economia, que não vê saída já que não se enfrenta a crise.

Reconhecendo a crise

Há poucos dias reconheceu, finalmente, a crise dizendo que a economia está sendo sabotada por “rumores e confusão”. “Muitas forças externas e internas, sombrias e antipatrióticas, conspiram contra a integridade da pátria”, disse o presidente Luis Arce em 31 de maio. Se fosse verdade que “rumores e confusão” estão causando a atual crise, seria um reconhecimento de que a economia boliviana não é sólida – a segunda alternativa é verdadeira, neste caso.

Um pouco mais adiante, em 6 de junho a vice-ministra das Comunicações, Gabriela Alcón, negou que a economia enfrenta crise. “Nosso modelo econômico está funcionando para conter a inflação, e evitar que o impacto seja maior para a população”, afirmou a vice-ministra. E acrescentou: “Na Argentina o quilo de tomate está acima de 60 bolivianos, enquanto aqui está entre 15 e 19 bolivianos [11,60 e 14,70 reais]”.

Se a ideia do governo boliviano a esse respeito estivesse correta, a Suíça, o país com o custo de vida mais alto do mundo, seria considerada um fracasso crônico e a Bolívia, o país com um dos custos de vida mais baixos, seria um dos principais potências económicas do mundo. Este baixo jogo de palavras tem sido uma das marcas registradas do atual governo boliviano.

Manipulação

O grande absurdo deste dito poderia ser resumido na manipulação de informações por parte da vice-ministra da Comunicação, de forma simples ao demonstrar que os preços dos produtos bolivianos devem ser comparados com os preços desses mesmos produtos, internamente em relacao a determinado período, e não com os de nenhum outro país cuja realidade é diferente da Bolívia.

No caso específico do aumento do preço do tomate, observado de forma distorcida por Alcón mas que ilustra perfeitamente a situação da economia, há não mais de dois meses um quilo dessa mercadoria básica na mesa dos cidadãos custava de três (2,32 reais) a não mais que cinco bolivianos (3,87 reais). Logo saltou para oito bolivianos (6,19 reais) assustando as pessoas, para logo subir para dez até rapidamente chegar, há algumas semanas, entre os 15 e 19 bolivianos reconhecidos por Alcón – que elogia o fato porque na Argentina e em outras partes onde os bolivianos não vão fazer compras, e cujas realidades econômicas e sociais são diferentes das da Bolívia, o mesmo produto é mais caro.

“Há aumento de preços para alguns produtos, não de todos”, acrescentou Alcón, o que está muito distante da realidade: poucos produtos, muito poucos não têm sofrido aumento considerável de preços. Este tem sido o principal tema nas conversas dos bolivianos, preocupados com a situação. Pode-se dizer que o sentimento dos cidadãos em relação à economia, caminha ao pânico coletivo. E uma questão que predomina entre os bolivianos, entre silêncio e desinformação estatal, tem a ver principalmente com o que disse Gabriela Alcón: “que modelo econômico de governo?”. Não há rumo, não há enfrentamento da crise.

Levar a sério o raciocínio do governo através do sua ministra das Comunicações, seria o mesmo que considerar que a economia boliviana é e sempre foi melhor que a do Japão, dos Estados Unidos e de todos os países da Europa onde não só o preco do tomate e de outrs alimentos, como também de qualquer outro tipo de produto é muitas vezes mais caro que neste país sul-americano.

A Suíça, que possui o custo de vida mais alto do mundo, segundo os padrões econômicos do governo da Bolívia seria, então, a pior economia mundial. Tentando aqui de novo, por vezes de maneira implícita e outras de maneira aberta desde que Evo Morales era presidente, passar a ideia de que a Bolíva é uma potência regional. Esta baixa jogatina de palavras tem sido uma das marcas registradas do atual governo boliviano.

Andando pelo centro de Santa Cruz de la Sierra, uma das mais nobre zonas da cidade mais rica da Bolívia, vê-se em tudo, nos mínimos detalhes, a extrema pobreza presente. Vê-se gente dormindo pelas ruas e buscando alimento no lixo, como em muitos anos não se via.

Nessa mesma cidade, o que sempre se repete: até para nascer, um grande drama. A Maternidade Percy Boland, principal de Santa Cruz que atende tanto mulheres da própria cidade quanto as vindas de outras cidades especificamente para este fim, tem capacidade para seis bebês mas, recentemente, abriga até 25. Em meados de maio, o pessoal médico da Maternidade recorreu a uma greve de 24 horas a fim de ressaltar a urgência de se resolver os problemas de sobrelotação.

Em plena missa na Catedral de Santa Cruz, domingo 9 de junho, o monsenhor René Leigue manifestou preocupação com a subida dos preços no país, ao mesmo tempo que culpou abertamente os políticos e a luta pelo poder. “Até onde vamos?”, questionou Leigue, dizendo ao governo: “encontrem solução. Quando se quer, sempre há solução. Quando não se quer, procura-se alguém para culpar e ninguém é responsável.”

No dia 12 de junho, ao anunciar a militarização das fronteiras para evitar o que descreveu “contrabando ao inverso” – de produtos bolivianos ao exterior, especialmente para a Argentina -, Luis Arce finalmente disse, publicamente, que há inflação apos negativa de longa-data, afirmando que isso se deve exatamente ao contrabando de produtos bolivianos.

“Instruímos as Forças Armadas para que contribua com o abastecimento, vocês verão nos postos de gasolina os militares. Nas fronteiras, estamos reforçando o controle militar para evitar que os alimentos que nós, bolivianos, produzimos com tanto esforço, saiam por mãos inescrupulosas que só buscam ganhos individuais, e não pensam nas necessidades coletivas”, disse Arce em entrevista coletiva em La Paz.

“O governo nacional tomou medidas e tomaremos todas as medidas necessárias para garantir que a cesta familiar, que os alimentos cheguem à nossa população e que possam ter acesso a eles”, afirmou Arce.

De certa forma tem razão ao dizer sobre “mãos inescrupulosas que só buscam ganhos individuais” como cidadão idealista, mas como presidente eleito pelo voto popular não pode contar e falar com base na espera da boa vontade do povo, mas deve implementar políticas eficazes, regras com supervisão sobre o que está intimamente relacionado com o enfrentamento à corrupção, algo que não existe minimamente na Bolívia, um dos países mais corruptos do mundo segundo indicadores internacionais.

Referindo-se à pandemia do coronavírus que, segundo ele agora, está fazendo sentir seus efeitos na atual crise econômica ao mesmo tempo que, fora país, o discurso presidencial muda completamente sobre a realidade interna, afirmou Arce:“sabemos que este problema da crise alimentar, mais cedo ou mais tarde, tinha de nos atingir e este é o momento. E não precisamos ter medo, temos que enfrentar isso”.

E muda o discurso sobre a realidade toda semana ou até diariamente, dentro da Bolívia. Às vezes, Arce também culpa a direita política boliviana e a ala do MAS leal a Evo Morales que, segundo o presidente, “sabotam a economia boliviana”. Realmente, ambos os setores unem-se no Congresso para vetar medidas propostas pelo governo.

Em abril, Arce disse que “o gás acabou” e que “não há de onde tirar dinheiro”. Uma dos maiores riquezas da Bolívia, o gás natural foi, durante anos, a principal fonte de renda do Estado. “O gás acabou. Estamos fazendo explorações novamente para ver se há mais gás. Não temos esses recursos e quando queremos emprestar, a direita e a ala evista nos negam a aprovação de créditos na Assembleia. Quando há demanda por mais obras, portanto, não há de onde tirar dinheiro”, afirmou o presidente boliviano, quem culpa seu antecessor Evo Morales na presidência, pelo que qualifica de má gestão do gás boliviano – este é mais um ponto que envolve forte troca de acusações entre Arce e Morales.

No entanto, o presidente boliviano afirmou no dia 7 deste mês, no fórum de São Petersburgo na Rússia, que há estabilidade económica na Bolívia e que o modelo económico atual “demonstrou a capacidade de reduzir níveis de pobreza”.

Segundo o site econômico Datamacro, os habitantes da Bolívia têm um padrão de vida muito baixo em relação aos 196 países do ranking do Produto Interno Bruto (PIB) per capita. Em relação ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), os bolivianos apresentam baixa qualidade de vida. “A Bolívia ocupa o 150º lugar entre 190 que compõem o ranking Doing Business, que classifica os países de acordo com a facilidade que oferecem para fazer negócios”, relata o Datamacro.

Em novembro de 2022, o Banco Mundial observou que a pobreza na Bolívia tinha crescido 8 por cento entre 2011 e aquele mesmo ano. Meses antes, em maio um estudo realizado pelo Centro Boliviano de Estudos para o Trabalho e o Desenvolvimento Agrário (Cedla) constatou que, em média, sete em cada dez domicílios na Bolívia são multidimensionalmente pobres.

Pobreza multidimensional

A pobreza multidimensional não se refere apenas à pobreza monetária relacionada a rendimentos insuficientes, mas também leva em conta o “acesso desigual aos recursos, monetários ou não, a serviços, proteção social, o acesso ao poder, e a voz ou segurança humana, entre outros aspectos”, segundo o Cedla.

Neste ano, o próprio Cedla informou, na publicação Economia do Tráfico de Drogas: Desinstitucionalização e Políticas na Bolívia, que a produção de cocaína injeta anualmente mais de 800 milhões de dólares na economia boliviana, cujo PIB em 2023 foi de 45.464 milhões de dólares.

As receitas das exportações de cocaína podem ser comparadas com até 41 por cento (2,88 mil milhões de dólares) das exportações legais registadas em 2020 (6,974 mil milhões de dólares). “O tráfico de drogas, junto com outras atividades ilícitas como o contrabando e a mineração ilegal, são o que mantém a economia boliviana com certa estabilidade”, segundo Carlos Arze Vargas, pesquisador do Cedla.

Dizer que a economia boliviana é movida pela cocaína e pelo contrabando não é exagero, pelo contrário: trata-se de algo conhecido, dito em todos os lugares nos mais diversos segmentos sociais do país andino. A droga e seus negócios obscuros são fortemente sentidos no cotidiano do país localizado no centro da América do Sul.

Em outubro de 2021, o jornal brasileiro O Estado de S. Paulo publicou ampla reportagem intitulada PCC [Primeiro Comando da Capital, organização criminosa de São Paulo, Brasil] Cresce na Bolívia, Novo Abrigo do ‘Narcosul’, Cartel Internacional de Drogas. Investigadores da Polícia Federal brasileira que investigam o cartel chamaram a Bolívia de santuário do tráfico de cocaína.

Naquela época, o governo boliviano afirmou que iria processar o jornal paulista por calúnia: a reportagem afirmava que a Bolívia já é o santuário regional do tráfico de cocaína. O governo boliviano nunca processou o jornal brasileiro, e o tempo apenas mostrou que o meio de comunica do país vizinho estava certo – o que não surpreende na Bolívia, a ninguem.

A presença de muitos membros do PCC, principalmente em Santa Cruz de la Sierra, tornou-se desde então pública no país andino, exatamente como descreveu a reportagem de O Estado. E a produção de folhas de coca – princplamente em Chapare, de onde mais sai a droga – só cresceu na Bolívia, o que é reconhecido ano após ano até pela ONU.

Para ter-se ideia de como a cocaína está enraizada na vida da sociedade boliviana, há mais de dois anos entre Evo Morales e aquele governo, acusações de envolvimento no negócio da cocaína, uma denunciando veementemente o outro: ambos os lados estão corretos em suas acusações.

A área onde Morales mora e tem seu reduto eleitoral em Vila Tunari, Chapare, no departamento de Cochabamba, exatamente onde as folhas de coca são mais plantadas na Bolívia, é epicentro da produção de cocaína. Desde que era presidente, a polícia boliviana não entra naquela área. Fontes policiais deste repórter confirmaram a informação sobre o impedimento de acesso a Chapare, garantindo também que o ex-presidente está realmente envolvido no tráfico de drogas.

Um desses oficiais, afiliado ao próprio MAS de Morales, confidenciou a este jornalista que “o grande erro de Evo foi envolver-se com o negócio da cocaína, quando se tornou presidente”. Na verdade, toda a Polícia Boliviana tem certeza de que Evo Morales é o comandante da produção e do tráfico de cocaína em Chapare.

Aida Levi, ex-esposa de Roberto Suárez, falecido narcotraficante mais poderoso da história da Bolívia, escreveu o livro O Rei da Cocaína (referência ao ex-cônjuge): nesta publicação, descreve como era viver ao lado de um traficante de cocaína, do que ela apenas se inteirou anos depois do envolvimento do ex-esposo com aquele negócio.

Nesse livro, Aida revela que todos os lados da política nacional, empresários de alto escalão, a Polícia em geral e funcionários públicos estavam envolvidos no negócio da cocaína. Enquanto a popularidade de Suárez apenas crescia entre os bolivianos, as pessoas o amavam calorosamente, admiravam-no e viam o tráfico de cocaína como esperança para tirar a Bolívia da miséria. Onde quer que Suárez estivesse, era acompanhado por multidões de admiradores com profundo afeto por ele principalmente em sua região, o departamento de Beni.

Segundo a autora, até a cúpula da Igreja Católica recebia dinheiro dos traficantes de drogas. Internacionalmente, especificando fatos, datas e locais dos acontecimentos como do início ao fim da obra, revela que a CIA, o FBI e até Fidel Castro estavam envolvidos no tráfico de cocaína.

No que diz respeito ao contrabando, recente estudo nacional confirmou o que tem sido verdade para a questão da cocaína durante décadas entre os bolivianos: 48 por cento dos cidadãos na Bolívia acreditam que o contrabando é necessário, pois segundo eles contribui para a riqueza do país. Hoje já não se diz tão abertamente quanto antes, principalmente na década de 80, mas sempre se acreditou na Bolívia que a cocaína desempenha papel importante para tirar o país da miséria.

Como consequência disso tudo, os jovens do país têm estado cada vez mais pessimistas quanto ao futuro, não acreditando que com esforço e virtudes possam ter uma vida melhor: recente reportagem do jornal El Deber de Santa Crus de la Sierra, com entrevistas com jovens estudantes, revelou que o estudo e os talentos não têm sido realmente o caminho para um futuro promissor em um dos países mais corruptos da América Latina.

Um dos entrevistados disse que “a meritocracia na Bolívia não existe. Não importa quem tem a nota mais alta ou é o mais inteligente. “Se você não tem alguém para ‘apontar o dedo’, não chega a lugar nenhum.” Nas próprias universidades bolivianas, a corrupção é endémica.

Economicamente enquanto a Bolívia é, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o país com mais trabalho informal em todo o mundo com 84,9 por cento da força de trabalho, segundo dados oficiais fornecidos pelo Estado boliviano (o número é certamente maior, considerando que antes da pandemia a percentagem de trabalhadores era de 80 por cento, e a Bolívia está muito longe de ter se recuperado de seus efeitos, como o próprio presidente reconhece agora, para justificar seus fracassos).

Na América Latina e no Caribe, 53,7 por cento da força de trabalho está no setor informal de acordo com os dados mais recentes, de 2022. Na Bolívia, grande parte dos trabalhadores informais, talvez a maioria anda pelas ruas vendendo ou revendendo produtos (sucos, sorvetes, doces, frutas, produtos domésticos, etc.). Fernando Romero, presidente do Colégio de Economistas de Tarija, estima que a população com emprego formal e de qualidade na Bolívia representa apenas cerca de 5 por cento de toda a força de trabalho do país.

Em encontro com o presidente paraguaio, Santiago Peña, em Asución, no dia 13 de junho, Arce voltou a mudar de discurso, ao mesmo tempo em que elogiava a economia da Bolívia: “As duas economias mais dinâmicas [boliviana e paraguaia] e as que mais crescem no a região”.

Carlos Gustavo Machicado, graduado em Economia pela Universidade Católica da Bolívia, prognostica que “uma crise na balança de pagamentos se aproxima, como em 1982”. Naquela época, a Bolívia entrou em um longo ciclo de hiperinflação, e profunda miséria.

Este cenário sombrio hoje é agravado pelo fato de que, entre janeiro e março deste 2024, foram registados 272 conflitos sociais em todo o país, por parte de diferentes setores sociais através de bloqueios de estradas, marchas, greves, entre outras acções de protesto. Somando-se a isso a violência que cresce assustadoramente por toda a parte, junto da corrupção galopante nos mais diversos segmentos da sociedade – na Bolívia a regra é corromper até para o sistema de Justiça. Tudo isto sob um governo passivo, que parece quase que completamente inerte.

No dia 11 deste mês, o Banco Mundial publicou seu relatório sobre Perspectivas Econômicas Mundiais, correspondente a Junho de 2024, no qual a previsão para a Bolívia estima um crescimento do PIB em 1,4 por cento para este ano. É 0,1 por cento inferior ao estimado em janeiro, mas igual ao estimado em abril. Para o ano de 2025 e 2026, estima-se que o país cresça 1,5 por cento.

 


Author`s name
Edu Montesanti