Luta nos EUA rumo a um novo paradigma para a civilização

Luta nos EUA rumo a um novo paradigma para a civilização 

16/11/2020, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation


O corpo político dos EUA treme, agora que as eleições passaram. Explodem as insatisfações, em nossa modernidade iníqua super monetizada. O povo sente-se esmagado, sente amputada a própria humanidade:

Sou dos últimos anos da Geração X [nascidos entre 1965 e 1981] ... e cresci numa cidade de classe média. A vida era boa ... A nossa casa era modesta, mas viajávamos nas férias, tínhamos 2 carros ... Cresci pensando que ser norte-americana era o maior presente ... Já adulta, testemunhei a queda do mundo no qual cresci, direto para a total ruína. Vi como a nossa moeda e a nossa economia foram desavergonhadamente corrompidas sem redenção possível.

Vejo meu marido, trabalhador, levantar-se àquela hora i
mpiedosa todos os dias e voltar para casa com uma dor nas costas que rezamos que não piore, e que ele tenha tempo para chegar inteiro à velhice. Exceto sapatos, meias e roupa de baixo, quase tudo o que a minha família usa foi comprado usado. Saímos em férias uma vez, em 12 anos... Não temos telefones celulares... Quase nunca comemos fora. O que acabei de descrever é a vida com 60 mil dólares por ano sem fazer dívidas. Trabalhamos por conta própria. Trabalharemos até morrer, porque a Segurança Social que fomos forçados a pagar, também foi roubada, com o tapete que puxaram sob nossos pés.

Vi como o seguro-saúde da minha família foi arrancado de nós e destruído. Assisti ao processo de como a educação, que já era esquemática quando era criança, tornou uma piada de 'matemática' totalmente nada matemática, medalhas para qualquer um, e anti-norte-americanismo de autoamaldiçoamento. Minha família sofreu tremendo golpe financeiro quando tive de ficar em casa, para acompanhar nosso filho na 'home school'.

Sentei-me e segurei a minha língua, já que me chamavam de "deplorável", racista, xenófoba, idiota e até de "gente feia". Disseram que eu teria privilégios, e que tenho preconceitos e visão inerentemente enviesada por causa da cor da minha pele, e que meus amados marido e pai fazem parte de um patriarcado horrível. Nada disso é verdade, mas se me atrevo a dizer alguma coisa sobre o assunto, o que eu disser será usado como prova do meu racismo e estupidez de branca. Recentemente tenho observado pessoas que me odeiam e odeiam os meus - e clamam pela nossa destruição de forma flagrante e aberta, roubam-nos as eleições e depois nos asfixiam com bombas de gás - e nos disseram que tudo foi limpo e justo.

Para mim, chega. Não me peçam para jurar fidelidade à bandeira, nem para saudar soldados, nem para soltar fogos de artifício no dia 4 de julho. Vivemos numa piada doentia, distorcida, de partir o coração, num cadáver inchado e irreconhecível da república que já foi nossa.

Não estou sozinha. Não tenho certeza de como as coisas continuam a funcionar, quando milhões de cidadãos já não sentem qualquer lealdade a, nem esperam lealdade da, sociedade em que vivem. Fui criada para ser uma dama, e damas não gritam palavrões, mas fodam-se esses fodidos do inferno pelo que fizeram a mim, aos meus e ao meu país. Tudo o que nós, os norte-americanos Zé da Silva [orig. Joe Blow Americans] sempre quisemos foi um pedaço de terra para criar uma família, um emprego para pagar as contas e, pelo menos, alguma ilusão de liberdade. Pois isso, tão pouco, já foi demais para esses parasitas humanos. Exigem tudo, mente, corpo e alma. Malditos sejam. Malditos sejam todos eles.


Os EUA estremecem. Não é só 'política como sempre'. Sequer tem a ver com o presidente Trump (embora muitos dos que apoiam o Partido Republicano creiam que sim). Nem tem a ver exclusivamente com os EUA. Há momentos em que - coletivamente, bem como individualmente - as civilizações chegam a uma encruzilhada. A civilização norte-americana e ocidental chegou a esse ponto. Dois polos, as elites litorâneas e a terra central do interior dos EUA estão colidindo e as faíscas e farpas de metal retorcido que resultam dessa colisão frontal serão o fogaréu que levará uma civilização norte-americana 'vermelha' (Republicana) para outro patamar (dê no que dê).

Esses efeitos modelarão os EUA e também a Europa, onde as euro-elites frequentemente são pouco além de simulacros das tais 'elites litorâneas' dos EUA.

Não importa quem venha a ocupar a Casa Branca, os EUA estão agora irremediavelmente divididos. Como o historiador norte-americano Mike Vlahos escreveu: "Progressistas dedicam a vida a essa missão, ao mesmo tempo em que, com idêntica paixão, os Republicanos juram impedir que consigam. Assim se demarca o título, o estandarte e o enquadramento de cena de uma luta existencial. Transformação é a palavra de ordem em nosso campo de batalha nacional".

Norte-americanos de estados tradicionalmente Republicanos (orig. red states) - como se vê pelo excerto acima - veem a eleição como 'golpe' contra eles. Sentem que os norte-americanos brancos foram demonizados como racistas inatos, e (como seria de se esperar) sentem-se vulneráveis. Precisaram de longo tempo para perceber, mas agora 'entendem': pele branca é vista, por grande parte dos EUA Democratas (orig. Blue America) como "patologicamente" suprematista, e todo 'racismo' patológico tem de ser exorcizado, insistem os Democratas.

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O problema que os EUA enfrentam é que insiders da aliança Vale do Silício/Democratas saberão claramente que houve irregularidades nas eleições. (Distorções e tumultos em eleições nada têm de novo nos EUA, e ainda não se conhece a escala desse episódio mais recente). Mesmo assim, os EUA Republicanos já estão denunciando fraude. Está-se fixando uma narrativa. Biden enfrentará importante problema de legitimidade - não importa de que lado se leia o resultado.

Os membros do Eixo odeiam Trump e, em todos os casos, é provável que considerem legítimo qualquer ainda suposto 'roubo' eleitoral - para afinal se verem livres de Trump. É possível que a escala do apoio a Trump naqueles estados oscilantes crucialmente decisivos tenha colhido os Democratas com a guarda abaixada. Afinal, ante o fracasso da 'operação' Russiagate e depois do também fracasso da tentativa de impeachment atropelar por atos - nunca por palavras - a conversa diária sobre a democracia norte-americana pode ter parecido preço razoável a pagar. Qualquer coisa, para tirar Trump...

"Trump é racista e misógino. Será que não basta? E apontar fatos não é demonizar" - respondiam apoiadores dos Democratas. Em outras palavras, "como podem os eleitores ser tão idiotas a ponto de votar duas vezes em Trump?!" Qualquer 'pessoa racional' compreenderia que os últimos quatro anos foram anos de catástrofe - reagem apoiadores dos Democratas com ar de perplexidade.

Um professor de história numa prestigiada escola norte-americana sugere:


"Tenho resposta simples para esse [modo de pensar], que vem da observação racional de alunos adolescentes, a maioria dos quais de famílias ricas: As elites cosmopolitas da mídia e do meio acadêmico, como adolescentes 'destinados' à universidade e em plena crise de fim do colegial, que 'sabem tudo' do mundo, não conseguem compreender a estreiteza de sua própria visão de mundo; assim, não compreendem toda a complexidade da própria realidade.

A visão de mundo à qual me refiro recebe vários nomes - racionalismo, secularismo, humanismo etc. Essa visão brota do que chamo "o Mito do Iluminismo": a ideia de que teríamos chegado ao mundo moderno 'porque' liquidamos completamente toda religião, toda a tradição, todos os costumes. É a ideia de que a modernidade teria sido construída do zero, pela razão secularizada. Nos termos nada críticos do meu livro-texto de História Europeia para os 
Exames "AP": "[Os pensadores do Iluminismo] buscaram trazer a luz da razão para enfrentar as trevas do preconceito, de tradições antiquadas e da ignorância - desafiando valores tradicionais.

O que chama a atenção não é a certeza draconiana em si, mas o fato de os autores dessa lição - como meus alunos e os pesquisadores de pesquisas de opinião que previam que Trump sofreria uma carnificina eleitoral nessa eleição - tomarem [a carnificina prevista] como questão de fato, como se a carnificina 'prevista' fosse algum tipo de 'resistência' à historiografia impulsionada pela ideologia e aberta ao debate.

Quero dizer: os Democratas tentaram usar a luz da razão como apoio à escuridão do preconceito, a tradições ultrapassadas e à ignorância - ao desafiarem os valores tradicionais de eleitores de Trump nos EUA 'do interior', nos estados compreendidos entre costa (leste) e costa (oeste)".

Assim se vê por que, afinal de contas, a colisão é inevitável. Para a 'visão de época' (orig. al. Zeitgeist) do Partido Democrata, há fatos cuja verdade não se discute. E 'não arrastarão prisioneiros (vivos)' na missão de limpar os EUA de todo seu racismo sistêmico. Esses, para eles, seriam 'os fatos'. Como alerta o professor Vlahos: "Ao final desse longo jogo, o resultado buscado para o nosso futuro é uma civilização diferente".

Aí, pois, estão os principais fatores do iminente descarrilamento do trem. Primeiro - ao contrário do que a húbris faz crer - a eleição jamais tratou exclusivamente de Trump como indivíduo. O veneno Democrata alcançou muito mais pessoas que apenas Trump. 70 milhões de norte-americanos foram declarados vis, fanáticos, racistas, etc.

Dizer que 'temos de ouvir uns os outros' não fará desaparecer o que milhões já ouviram. É 'sossega-leão' ainda muito fraco. Esses eleitores Republicanos já estão 'armados e engatilhados'.

Segundo, a disputa em torno dos resultados da eleição abriu caminho para que a Casa Branca não só conteste alguns resultados eleitorais, mas também para que, como no caso da Pensilvânia, recorra à Suprema Corte em ações específicas por violação da Constituição em estados não autorizados pelos respectivos Legislativos, o que pode repercutir muito mais amplamente em toda a questão do voto pelo Correio.

E - além do mais - abre a possibilidade de persuadir legisladores estaduais Republicanos a selecionar delegados ao Colégio Eleitoral conforme as respectivas posições (no caso de serem persuadidos de que a votação num ou noutro respectivo estado tenha sido fraudada. Na maioria dos estados essa possibilidade é legal). Tudo isso pode terminar com o Congresso na posição de árbitro (se conseguir) do 20 de janeiro, ou levar ao melt-down do núcleo atômico da base Democrata, se Biden não tomar posse naquele dia.

Claro que, como todos sabemos, a 'lei' nunca é via garantida, mas, mesmo assim, o que a equipe de Giuliani está fazendo - advocacia à parte - é providenciar a 'implantação' pública de incontáveis irregularidades, improbabilidades estatísticas e desorganização dos Correios.

Parece que Trump e Giuliani serão autores da sua própria 'história revisionista' da eleição (independente do resultado dos procedimentos jurídicos). Isso, com certeza, é o motivo pelo qual o Vale do Silício tentou conter a alegação de fraude generalizada, preferindo a fraude específica. Com novos comícios, é quase certo que se aprofundará o fosso entre uma metade dos EUA e a outra.

Terceiro, o Vale do Silício, com os veículos da mídia de massas recolhendo as migalhas do banquete, suspendeu ou fechou sites que denunciaram fraude, declarando as denúncias sem qualquer fundamento. Mas aí está o busílis: por mais que os Democratas apresentem-se como progressistas em toda essa questão, e o Vale do Silício até faça toda a conversa das identidades e gêneros, 'Progressista' o Vale do Silício absolutamente não é.

Pense 'Davos': Biden, no caso de chegar à presidência, precisará de Republicanos moderados para aprovar o orçamento e os gastos, muito mais do que precisará dos grupos organizados (ing. caucus) da extrema-esquerda dos Democratas. Então? Ficaria com AOC e 'suas Quatro' do Congresso (orig. The Squad)? O governo de Biden, é claro, apoiará firmemente as Big Tech e o 'Re-set' - que não passa do velho universalismo milenarista em nova embalagem.

Resumo disso tudo é que os norte-americanos vivem - não só mergulhados nos próprios desencantos e descontentamentos -, mas, também em momento muito significativo: os EUA Republicanos despertaram para o veneno lançado contra eles. E o massacre comandado pelo Vale do Silício e pela mídia serviu para acentuar ainda mais o isolamento em que foram postos. Em crise, homens e mulheres procuram explicações - e soluções.

Suspeitamos que a 'Davos' coletivista não estará com eles - mais um nos três longos séculos de projetos globalistas milenaristas, todos os quais pareciam prometer, de início, um 'novo mundo, o qual contudo sempre acabou mal. Não. O mais provável é que vejamos 'libertarismo' Republicano versus 'coletivismo' Democrata. O isolamento social na pandemia de Covid-19 tornou ainda mais aguda essa divisão, a ponto de se ter tornado um ícone do que separa os EUA hoje.

Hoje, os EUA de ambas as 'costas', do Pacífico e do Atlântico, e as euro-elites tentam conter aquelas 'desordens', para que não descambem para a violência. Essas tensões, temem eles, ameaçam a sustentabilidade da noção de alguma humanidade global firmemente enraizada em 'valores' comuns, perseguindo um itinerário rumo a uma ordem e a uma governança globais.

Os EUA Republicanos - para sobreviverem - voltarão a se agarrar a velhos valores (como faz qualquer sociedade em crise), e tentarão extrair, do conto da própria erosão e do descaso de que foram vítimas, uma explicação - um conto, um romance, uma história - para seus sofrimentos presentes. Podem perceber que 'outros' valores, opostos ao coletivismo, sempre surgiram de camadas profundas da experiência e da história humana.

A maioria dos 'descontentes' de hoje jamais antes pensaram muito nos valores civilizacionais que agora buscam abraçar e renovar. Não faz diferença, o ponto não é esse; as sementes de um novo passo civilizacional estarão sendo implantadas em sua psique coletiva. Veremos para onde nos leva.*******

Foto: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f9/Declaration_of_Independence_%281819%29%2C_by_John_Trumbull.jpg

 


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey