Sentem o perfume da cozinha chinesa?
30/10/2020, Pepe Escobar, Strategic Culture Foundation (Traduzido com autorização do autor)
Menos de uma semana antes de uma eleição presidencial crucialmente decisiva nos EUA, o verdadeiro coração da ação geopolítica e geoeconômica permanece virtualmente invisível para o mundo exterior.
Falamos do 5o Pleno do 19o Comitê Central do Partido Comunista Chinês (PCC) iniciado na 2a-feira passada, em Pequim.
O Pleno congrega os 200 membros - e outros 100 membros alternados - do mais alto corpo encarregado de tomar as decisões políticas do estado-civilização: equivalente, em termos da democracia liberal ocidental, ao Congresso Chinês.
As linhas gerais do que será o 14o Plano Quinquenal (2021-2025) serão anunciadas num Comunicado ao final da reunião do Pleno, na 5a-feira. Detalhes serão divulgados ao longo das próximas semanas. E tudo será formalizado depois de aprovado pelo Congresso Nacional do Povo (CNP), em março de 2021.
Para finalidades práticas, o que for divulgado no Comunicado deve ser lido como expressão do que a liderança da China realmente pensa.
Apresento-lhes o "sistema chinês"
O presidente Xi esteve ocupadíssimo, apresentando extenso relatório de trabalho; uma versão preliminar do 5o Plano Quinquenal; e o delineamento completo das principais metas da China até 2035.
Xi falou e deu grande destaque a uma estratégia de "dupla circulação" para a China: aprofundar o foco sobre a economia doméstica, ao mesmo tempo em que se equilibra esse foco, com o comércio e o investimento exteriores.
Na verdade, melhor definição para "estratégia de dupla circulação", mais bem traduzida do mandarim, é "dinâmica de duplo desenvolvimento". Nas palavras do próprio Xi, o objetivo aí é "facilitar uma melhor conectividade entre os mercados doméstico e exterior, para alcançar crescimento mais resiliente e sustentável".
Feito espetacular do qual já se tem notícia é que foi cumprida a meta de Xi para a China, de que o país em 2020 alcançasse o status de "sociedade moderadamente próspera". Apesar da pandemia de Covid-19, a pobreza extrema foi eliminada.
O próximo passo é enfrentar e resolver, para o longo prazo, as questões absolutamente críticas da crise do comércio global; da menor demanda de produtos chineses; e de graus variados de volatilidade causados pelo crescimento da China, que ninguém detém.
A prioridade chave para Pequim é a própria economia doméstica - ao lado de alcançar objetivos tecnológicos também chave, para reformar o desenvolvimento chinês de alta qualidade. Implica construir cadeias integradas de suprimento de alta qualidade. E há também a trilha tortuosa da implementação de necessárias reformas em várias instituições.
Crucial é que o Ministério da Indústria e da Tecnologia de Informação da China está "orientando" empresas a investir em tecnologia core: semicondutores, aplicações 5G, Internet das Coisas (ing. IoT), circuitos integrados, biomedicina.
Assim, se trata mesmo, outra vez, da Guerra dos Chips - que está no coração da Inteligência Artificial, do sistema 5G, da supercomputação, da computação quântica, da ciência da matéria, da biotecnologia, de novas fontes de energia para veículos de transporte e da ciência espacial.
A liderança chinesa sabe bem que as mais altas apostas giram em torno da tecnologia para a próxima geração de chips.
E entra em cena o conceito de sistema chinês: ou como combater, na "guerra fria iniciada pelos EUA no campo da alta tecnologia".
O "sistema chinês" foi desenvolvido por Ni Guangnan, especialista em Tecnologia da Informação. Visa a "substituir tecnologias norte-americanas em áreas-núcleo, dentre as quais a crucial infraestrutura de TI", da qual o sistema liderado pelos EUA tem o monopólio: o sistema IOE (sigla de uma rede de TI sustentada por três principais fornecedores, IBM, Intel e Oracle). Com servidores, bancos de dados e armazenamento autodesenvolvidos, o "sistema chinês" pode trabalhar com chipsets de mais baixo desempenho, sem ter de fabricar chips de 14 nanômetros (nm) ou de 7 nm - alvos prioritários dos ataques norte-americanos.
Várias estimativas na China concordam grosso modo em que ao final de 2020 a economia terá chegado a 72% do que é a economia dos EUA. O Conselho de Estado prevê que a economia chinesa superará a economia da União Europeia em 2027, e a dos EUA, em 2032.
Mas se se calcula pela PPC (Paridade do Poder de Compra), como ambos, FMI e a revista The Economist já admitiram, a China já é a maior economia do mundo.
O 5o Pleno reitera todos os objetivos já expostos em Made in China 2025. Mas há mais: a ênfase na "Visão 2035" - quando a China deve aparecer já posicionada como líder global no campo tecnológico.
A "Visão 2035" define o ponto médio entre onde estamos hoje e a meta final de 2049. À altura de 2035 a China deve ser nação socialista completamente modernizada e superpotência especialmente em ciência, tecnologia e Defesa.
Xi já dizia, nos idos de 2017, que a China "basicamente" completará a "modernização socialista" à altura de 2035. Para chegar até lá, o Politburo busca uma síntese extremamente ambiciosa de "escala, velocidade, qualidade, eficiência e segurança".
Para além de Vestfália
Apesar de o governo Trump estar engajado em ofensiva incansável desde maio de 2018, só desde julho de 2020 a liderança do PCC dedica-se consistentemente a preparar a China para o que prevê que seja luta longa e feroz com os EUA.
Essa evidência gerou algumas comparações com o que o Pequeno Timoneiro Xiaoping comentou, sobre Mao Zedong, em 1938. Naquela circunstância, Mao disse que a China devia pôr-se "primeiro na defensiva", enquanto acumula força suficiente para combater num impasse estratégico e eventualmente vencer em "guerra prolongada" contra a invasão japonesa.
Agora temos, outra vez uma estratégia weiqi (em mandarim; em japonês, mais conhecido no Brasil, é Jogo de Go [aprenda aqui]). Pequim só lançará sobre o tabuleiro o seu contragolpe concertado, quando já for capaz de superar o gap tecnológico e já tiver estabelecido as próprias cadeias globais e domésticas de suprimento independentes dos EUA.
Pequim precisará de uma ampla operação de Relações Públicas à moda 'soft power' para mostrar ao mundo que [como e o quanto] seu avanço no campo da ciência e da tecnologia visa ao bem global, para benefício de toda a humanidade e sem considerar limites nacionais. Exemplo de ação nesse sentido pode vir a ser a vacina chinesa anti-Covid-19.
Em recente podcast (a partir de 2h16'28") em que se discutia uma de minhas colunas recentes sobre o livro de Lanxin Xiang The Quest for Legitimacy in Chinese Politics, o professor brasileiro Elias Marco Khalil Jabbour, especialista em China, ofereceu formulação surpreendente.
Jabbour concorda com os principais especialistas chineses, ao argumentar que a China não atuará como "estado vestfaliano agressivo" [2h41'11]: "A subversão de Vestfália pela China adveio de a China, em 1949, ter incorporado a Revolução Russa. Dali em diante, a China está expondo uma ordem que pode subverter Vestfália."
O que temos aqui é o conhecido conceito da China de Xi - cuja melhor tradução parece ser "comunidade de futuro compartilhado para toda a humanidade" - lido como efetiva subversão de Vestfália, "subversão de dentro para fora".
Jabbour nos lembra de que Mao, ao dizer que só o socialismo pode salvar a China, fala de salvar a China, do Tratado de Vestfália, que facilitou o desmembramento da China durante o "século da humilhação."
Afinal, um casamento estratégico de Marx e Confúcio na China de Xi é mais que factível, transcendendo a geopolítica como a conhecemos, nascida como ideologia nacional na França, Alemanha e Grã-Bretanha.
É como se Xi tentasse, como Jabbour observou, "voltar ao marxismo original; como um hegelianismo de esquerda" [2h45'49], orientado para o internacionalismo e combinado com a ideia confuciana de tianxa, "tudo que há sob o céu". Eis a ideia máster por trás da "comunidade de futuro compartilhado para toda a humanidade."
Sempre se pode sonhar que outro mundo seja verdadeiramente possível: pensem num renascimento cultural da vasta maioria do Sul Global, numa frutífera fertilização cruzada das economias da China e da Ásia, com crescente luta pela descolonização da América Latina e com o peso da diáspora africana.
Mas antes, o plano chinês para o próximo quinquênio tem de começar a andar.*******
Foto: Por Gaurav, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2734778