Dissolução do Universalismo Liberal

Dissolução do Universalismo Liberal

31/8/2020, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation




Por muito tempo, vilas e cidades da Europa (e o resto do mundo) cresceram organicamente em torno das necessidades sociais, econômicas e políticas do povo. O resultado foram as bem conhecidas e muito amadas formas das antigas cidades, vilas e vilarejos, construídos de madeira, tijolos ou em pedra. Esse padrão permaneceu inalterado durante séculos. Então sobrevieram as duas 'Guerras Mundiais'.

Com elas veio o impulso globalista liberal inicial e, concomitantemente, o insosso, desaculturado, 'estilo internacionalista' de arquitetura (primeiro a surgir à frente na corrida que hoje prossegue como política para apagar identidades e gêneros). Os dois impulsos estavam conectados: ambos brotavam de um mesmo sentimento popular (compreensível), de "Guerras Nunca Mais".

A partir do século 19, os liberais pensaram que, apagados os grandes regimes imperiais europeus; apagado o nacionalismo; apagada a noção de 'pertencimento' cultural, todos viveríamos lado a lado, em paz, e realizaríamos nosso destino de modo produtivo e utópico.

O liberalismo europeu 'ocidental' tornou-se, como se viu, moeda - retórica e literalmente -, tornou-se dólar, e a arquitetura internacionalista assumiu uma espécie de homogeneidade, de amorfismo universalista apropriado, que parecia subscrever os ditames do liberalismo sobre a convergência e o cosmopolitismo humanos. Mas foi explicitamente concebido como ferramenta para drenar do mundo a cultura - como conjunto de costumes, como modo de ser, vale dizer, como valor, apenas porque a cultura é seu próprio valor.

Todos os aeroportos do mundo tornaram-se idênticos. Hotéis e centros comerciais tornaram-se a tal ponto 'universais' - que era difícil recordar em que cidade estava um ou outro aeroporto. Todos passaram a aceitar dólares. Eram os tais 'bens' que chegaram juntos com uma moeda global e uma 'narrativa' global. A sensação era de que o etos do Iluminismo estaria trazendo a semente de algo realmente universal.

OK, mas foi ilusão - todo aquele estar globalmente em qualquer lugar, em vez de estar em um lugar, foi alarme falso. Não foi absolutamente universalismo - como adiante se esclareceu: não passou de surto momentâneo de eurocentrismo.

Hoje, com o soft power dos EUA já colapsado, e a sociedade norte-americana despedaçada por fissuras internas, já não se sustenta, sequer, a ilusão de algum universalismo. O sombrio 'segredo' do liberalismo está exposto: seus fundamentos só conseguem projeção como projeto universal, se e somente se são impostos pela força.

Nos tempos de J.S. Mill, a ideia de que o liberalismo seria civilizacional atendeu bem à necessidade de que a Europa padecia, de validação colonialista. E Mill reconheceu isso tacitamente, ao validar o assassinato de populações nativas nos EUA - declaradas populações não produtivas.

Agora, com o liberalismo já amplamente compreendido como "O Deus que Fracassou" [ing. The God that Failed] outros estados adiantam-se e oferecem-se, eles mesmos,  como outros estados separados, igualmente 'civilizacionais'. Rejeitam o modelo do estado-nação ocidental. E como estados-de-civilização, estão organizados em torno da cultura, não da política.

Conectado a uma civilização, a função principal do estado é proteger uma específica tradição cultural. O alcance do estado-de-civilização recobre todas as regiões onde aquela cultura é dominante.

O que quero dizer com isso? Muitas coisas que pareciam sólidas, e separadas, foram de fato interconectadas (e mantidas unidas por artes da grande ilusão): o Dólar, o Grande Reset de Davos, o sistema monetário - e sim - até nossa arquitetura descarnada e nosso descarnado design de interiores contemporâneos - são evidências, todas essas de um mundo des-culturado.

O ponto relevante é que o liberalismo ocidental é hoje não fungível (só apropriado a certos estados nos EUA e a alguns círculos europeus). Poderosa dinâmica centrífuga está em ação. E a evidência de que o liberalismo perdeu seu pilar de poder (a força dos EUA), e consequentemente a fungibilidade, deixa a Europa nua.

As moedas digitais simplesmente acelerarão a força centrífuga - partindo em pedaços as moedas e os sistemas monetários que conhecíamos. O Fed estuda uma moeda digital; a China tem uma moeda digital do Banco Central [ing. Central Bank Digital Currency, CBDC], e Rússia, Irã, o Reino Unido e a Itália já planejam também as respectivas CBDCs. 'Davos', claro, também quer moeda digital para o projeto daquela tecnocracia deles, explicitamente não liberal.

Em reunião de embaixadores franceses, o presidente Macron comentou que China, Rússia e Índia não seriam meramente rivais econômicos, mas "genuínos estados-civilização (...) que não só quebraram nossa ordem internacional; e assumiram papel chave na ordem econômica, mas também, e vigorosamente  remodelaram a ordem política e o pensamento político que a acompanha, de modo muito mais inspirado que nós."

Alertando o público presente de que "Sabemos que as civilizações estão desaparecendo; também os países. A Europa desaparecerá", Macron elogiou os projetos civilizacionais de Rússia e Hungria, os quais "têm vitalidade cultural, civilizacional, que é uma inspiração", e declarou que a missão da França - seu destino histórico - seria guiar a Europa rumo a uma renovação civilizacional, forjando "narrativa coletiva e imaginação coletiva. Eis porque creio profundamente que esse é nosso projeto e deve ser abraçado como projeto de civilização europeia".

A 'velha ilusão liberal' não pode ser estendida - não só porque o poder dos EUA está-se desgastando, mas, isso sim, porque os valores que lhe foram essenciais estão sendo radicalizados, viraram de pernas para cima, e converteram-se nas espadas com as quais empalar os liberais norte-americanos e europeus clássicos (e os Cristãos Conservadores dos EUA).

Agora, é a geração mais jovem dos liberais recém acordados que dizem, aos berros, não só que o velho paradigma liberal é ilusório, mas que jamais foi coisa alguma que uma 'capa' para ocultar a opressão - fosse doméstica, ou colonial, racista ou imperial, nódoa moral que só será limpa, se for redimida.

De certo modo, essas gerações recém chegadas parafraseiam Samuel Huntington, que, em seu Choque de Civilizações, afirmou que "o conceito de civilização única universal ajuda a justificar a dominação cultural, pelo ocidente, de outras sociedades; e a necessidade nessas sociedades de macaquear práticas e instituições ocidentais." Universalismo é a ideologia do Ocidente para confrontar outras culturas. Naturalmente, todos, fora do ocidente, argumentou Huntington, devem ver como ameaça a ideia de um mundo uno.

Com a 'grande ilusão já explodida' e nada de substantivo para pôr em lugar dela, nenhuma nova Ordem Europeia pode ser formulada com coerência. Mesmo assim, Macron está tentando atrair a Europa para a futura 'era dos impérios'. Mas já não é viável, agora, para a Europa, substituir o constructo dos EUA pós-guerra: o imperium norte-americano pós-guerra era mantido, por baixo, pela força militar e financeira. Mas a Europa deliberadamente evitou usar a força bruta; em vez disso, tentou um 'novo imperialismo liberal' (na análise de Robert Cooper).

É possível até que o projeto europeu tenha, antes, encontrado abrigo sob as asas da força bruta dos EUA, como adjunto da missão da civilização norte-americana, mas isso também é passado: Trump declarou a Europa inimiga dos EUA, como a China. Os EUA já não são o 'tio' benevolente, sempre pronto a acionar seu hard power, cada vez que a Europa metia-se em confusão.

E falar simplesmente de valores europeus pressupostos universais (tolerância, liberdade para viver como cada um bem entenda, direitos humanos, etc.) é, essencialmente, se alinhar com a negação do estado-civilização, como disse Huntington. Esses valores afirmam, isso sim, a liberdade para tentar diferentes modos de vida que certamente andarão no contrapelo das tapeçarias antigas e suas narrativas morais e sua prática cultural que destaca o curso da vida humana vivida dentro de uma comunidade viva.

Por exemplo, os chineses priorizam assumidamente valores confucianos e a ênfase na estabilidade e na harmonia sociais, como valores superiores às ditas 'liberdade' e autonomia individual ocidentais.

Esses 'euro-valores' como tais não oferecem definição do que seja 'o bem' da comunidade, o que quase todos os estados-civilizações oferecem. Podem até, vagamente, ser vistos como sistema operacional, mas o liberalismo (em sua modalidade contemporânea admitidamente distorcida) não chega a ser sistema civilizacional. No máximo, foi convertido num menu de estilos de vida opcionais, a ser contraposto às escolhas e a estilos de vida não ocidentais.

Macron diz aos europeus que assumam por raiz seu pertencimento ao Iluminismo - embora, como o Secretário de Estado dos Assuntos Europeus entre 2013 e 2015 Bruno Maçães observou em recente ensaio, tenham sido precisamente as aspirações globalizantes do liberalismo que separaram o Ocidente e a Europa, de suas próprias respectivas raízes culturais.

Diferente do que fazem outros estados europeus (como a Rússia) Macron mete um telhado de vidro sobre seu 'voltar às origens' culturais prospectivo: por que teria de se limitar ao Iluminismo? Por que deixar de lado todo o Renascimento? Por que a Europa tanto exalta Carlos Magno, mas nem tenta recorrer a passado mais remoto? Claro que havia valores europeus bem antes de os francos iniciarem sua 'guerra cultural' para expurgar sistematicamente valores europeus anteriores. Limitar a busca ao Iluminismo não é absolutamente recorrer ao passado.

Não. A liderança europeia está de tal forma alienada das próprias tradições que elas já são quase com certeza, irrecuperáveis. Líderes políticos não dão sinal de terem respostas para o dilema proposto por Macron, da ascensão de estados-civilizações (que não impliquem recorrer a um imperium europeu reduzido a alguns poucos adereços de tecnocracia totalitária soft à la Davos). De fato, parecem nem se dar conta - mesmo hoje - das ramificações mais amplas da implosão do liberalismo universal, reduzido a umas poucas 'ilhotas' isoladas de aderentes, em pano de fundo soberanista.

Existe Europa, hoje, como entidade coerente e limitada? Nem os gregos nem os europeus do século 16 viam-se a si mesmos como 'ocidentais', termo que só surge no final do século 18. O mundo antigo não conheceu coisa alguma semelhante a 'espécie humana'. Havia assírios, gregos, egípcios, persas e assim por diante, mas com certeza não havia 'humanidade' até - adivinhem! - até o Iluminismo, é claro.

"Sociedades ocidentais sacrificaram as próprias específicas culturas, em nome de um projeto universal' - Maçães observa. "Ninguém mais consegue, hoje, encontrar a tapeçaria antiga de tradições e costumes antigos, ou qualquer visão da boa vida naquelas sociedades".

Nossa fé ingênua, de que o liberalismo, derivado de tradições políticas e culturais do Norte da Europa, conquistaria o mundo... jaz hoje por terra, em cacos. E são estados-civilizações não liberais da Eurásia que, orgulhosamente nos desafiam e ameaçam nos engolir inteiros.

Em que pé fica a Europa em tudo isso, e o que fazer do liberalismo? "Agora que sacrificamos nossas próprias tradições culturais para criar um padrão universal para todo o planeta" - pergunta Maçães, "será que alguém espera que sejamos os únicos a adotar o tal padrão universal?!"*******

Foto: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/7b/Fusilamiento_de_Torrijos_%28Gisbert%29.jpg

 


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey