Imperialismo norte-americano e sua forma superior neofascista

Imperialismo norte-americano e sua forma superior neofascista

  

A história da democracia norte-americana é a história de sua negação através da afirmação da mais selvagem das selvagens versões do capitalismo

  

Roberto Bueno

Professor universitário. Doutor em Filosofia do Direito (UFPR). Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC). Especialista em Direito Constitucional e Ciência Política (Centro de Estudios Políticos y Constitucionales / Madrid). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito (UnB) (2016-2019). Pós-Doutor em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM).

 

 

A história da democracia norte-americana é a história de sua negação através da afirmação da mais selvagem das selvagens versões do capitalismo cujas consequências se espraiam no planeta à luz do imperialismo. A hegemonia norte-americana revelou progressivamente todo o seu potencial daninho nas últimas décadas. A América Latina sentiu esta realidade muito duramente, pois sucessivos governos populares legitimamente eleitos foram apeados do poder e sucedidos por meros títeres do império, logo dedicados a realizar políticas públicas autoritárias, política econômica expropriatória das riquezas dos países e, não raro, implementando ditaduras que organizaram as suas forças militares como mera guarda pretoriana do império comprometidas a verter o sangue de seus compatriotas como se não houvesse amanhã.

 

A cartilha do domínio imperial prevê a concretização de projeto de destruição aos países-alvo, logo sucedidos por ampla liberalização de mercados para que as grandes corporações ocupem o território para as atividades de "reconstrução", como foi o notável caso do Iraque e as normas econômicas impostas pelas forças armadas norte-americanas durante a sua ocupação. Em caso de domínio sem a presença militar física e organizada através das atividades de inteligência são mobilizados os organismos internacionais. Sucede a provocação da quebra econômica dos países-alvo o "socorro" econômico dos organismos internacionais cujas administrações são sequestradas pelas indicações norte-americanas. Afinadas com os interesses de quem os indicou, os executivos elaboram e aplicam as famosas condicionalidades para que os empréstimos sejam concedidos, que inexoravelmente favorecem os interesses das corporações norte-americanas e as perspectivas geopolíticas do império.

 

O império impõe sua estratégia de domínio quer pela (a) guerra aberta, cada vez mais por "procuração" e não sob bandeira própria, (b) por movimentos de sabotagem, chantagem, cooptação e inteligência, (c) pacientemente infiltrando agentes para obter fins a longo prazo, (d) sequestrando atores centrais dos países-alvo para condicionar decisões estratégicas ou, ainda, (e) manipulando, cooptando ou construindo lideranças artificiais internas nos países-alvo. Em todas estas circunstâncias a tecnologia é aplicada de forma intensa, e mesmo o modelo de guerra aberta vai sendo progressivamente alterado. Este é cenário divorciado do horizonte democrático.

 

A necessidade de legitimação da política imperialista é ancorada na retórica da democracia e dos direitos humanos, cuja proteção seria o alvo de suas múltiplas intervenções nas mais diversas latitudes do planeta deslocando-se do marco de iniciativas políticas multilateralistas. Para a mobilização da opinião pública interna norte-americana são brandidos motivos de "segurança nacional", apontando para a amplificação do medo e do pavor como prenúncio do terror para legitimar políticas genocidas. Esta é retórica que serve para ocultar o plano da realidade como espesso véu em dia de sol.

 

Este movimento de ocultação é central para regime cujos fins são genocidas. A cobertura do plano da realidade serve para pavimentar e facilitar o cumprimento dos objetivos econômicos e/ou geopolíticos-militares do império tanto no plano interno quanto em suas intervenções internacionais. O JPMorgan Chase nem a BlackRock estão interessados na condição de vida das massas de imigrantes assim como tampouco os Rockfeller ou os controladores do BNP Paribas perdem seu sono com o tráfico de armas e as mais brutais consequências que disto derivam para as sociedades que são desestabilizadas por seu emprego, pois o negócio do complexo militar depende justamente de acionar a roda da morte e não da enferrujada alavanca dos direitos humanos. A América Latina conhece as consequências da benevolência discursiva da oligarquia imperial e seus sócios coloniais locais.

 

As formas históricas adotadas para o exercício do domínio norte-americano são variadas. Múltiplos são os exemplos de opções de completo domínio de países estratégicos para os seus propósitos adotando os pretextos humanistas ou de segurança nacional, como foi o caso do Iraque, destruído e levado ao caos para ser ocupado e impor a venda de serviços de segurança e reconstrução. O império reitera movimentos de desorganização e desestabilização de países-alvo que avaliem ser ameaçadores dos interesses das grandes corporações, a exemplo do que ocorreu na América Latina com a Colômbia, a Bolívia e com o Brasil, plano que, malgrado a intensa mobilização de recursos, midiáticos, diplomáticos, financeiros e militares, não logram concretizar em território venezuelano. Em grande parte, isto se deve a consistente avaliação política de Chávez de que seria necessário reformar as instituições para que os interesses populares pudessem gozar do mais alto nível de proteção possível contra as tradicionais formas de domínio utilizadas pelo império. Este legado recebido por Maduro não oferece as ideais condições para a organização da resistência, potencializada pelo importante apoio derivado dos acordos de cooperação com a Rússia e a China.

 

A Venezuela vem obtendo êxito onde o Brasil e outros países latino-americanos falharam, em parte devido a imotivada desatenção à experiência histórica e menosprezo à importância da ideologia, que recomendavam expressamente a transformação de estruturas do Estado como única condição de manutenção do poder, algo agravado no caso brasileiro pela descoberta de relevantíssimas reservas petrolíferas, e a posição histórica da elite brasileira poderia ser medida tanto por suas práticas como, comparativamente, poderia ter sido analisado o nefasto papel da elite venezuelana nesta matéria da exploração petrolífera. Sob o cenário geopolítico internacional de pressão sobre o império era previsível que movimentos fossem realizados sobre o continente, embora pudessem ser nutridas dúvidas sobre a intensidade.

 

A história da política externa do império para a América Latina não suscita boas perspectivas quando se encontra pressão no tabuleiro geopolítico, tal como especialmente se encontra neste momento do ponto de vista econômico, quando a disputa foi decidida em favor da China e da Rússia, restando apenas por determinar a data de assinatura do atestado de defunção. Ao império pouco mais resta que minimizar prejuízos imediatos e postergar a data de oficialização da perda da supremacia.

 

Sob quaisquer conjunturas o império atuou de forma a garantir e expandir os seus interesses, mas modificando progressivamente as atividades de encobrimento de suas ações até alcançar práticas contraditórias com os fundamentos do direito internacional público. Paulatinamente a política externa norte-americana cedeu espaço à humilhação da hipocrisia por concepção política neofascista explosivamente aplicada por militarismo genocida. Realizou práticas diretamente através de seu corpo militar ou treinou forças militares leais para executar práticas de tortura e extermínio de opositores ao capitalismo, como foi o caso dos regimes militares em vigor na América Latina durante a década de 1970.

 

Em cenário geopolítico de decadência do império as ações protetivas de seus interesses começavam a sofrer flagrantes derrotas, tal como foi a recente ocorrência do caso de navios petroleiros iranianos carregados que finalmente atracaram em porto venezuelano sob guarda diplomática de russos e chineses e sob a "patrulha" de embarcações militares norte-americanas. Estas se ocuparam dos petroleiros pois navegavam sob bandeira de nação que o império classifica como comprometida com o terrorismo internacional, desprezando os responsáveis pelo assassinato do General Qassem Soleimani assim como também os assassinatos de diversas lideranças populares latino-americanas organizados por serviços de inteligência que nunca foram iranianos, chineses ou russos.

 

O emergente cenário internacional de retirada da supremacia imperial foi antecipado por diversos experientes e eruditos analistas, embora sob ângulos e formas diversas, dentre os quais Brzezinski e Huntington. Exemplo do novo tabuleiro que vai sendo desenhado foi o desfecho do caso Sírio, cuja pretensão imperialista apontava para a fragmentação do país, estratagema ao qual já haviam recorrido em outras circunstâncias. Assim, em reunião realizada em Viena no dia 20.10.2015 foram bloqueadas por Sergei Lavrov, Ministro para Assuntos Estrangeiros da Rússia, iniciativas norte-americanas para seccionar a Síria e extinguir as suas forças armadas. Na Síria como em outras intervenções mundo afora o argumento as armas marcham sob o pretexto de garantir a "democracia" ou restaurar a violação dos "direitos humanos". Esta é estratégia que já se mostra gasta e se torna cansativa, pois os EUA, assim como no Iraque estiveram à busca de petróleo, na Ucrânia estavam realmente à busca de objetivo geopolítico estratégico-militar, a saber, capturar Sebastopol, na península da Criméia.

 

Historicamente o império atuou segundo o signo da ousadia intervencionista,

evoluindo ao longo do tempo até atingir nível classificável como hegemonia predatória. Nesta vertente o conceito opõe-se ao sentido gramsciano, posto que eminentemente desestabilizador. A hegemonia predatória imperialista tornou-se insustentável nos dias correntes em face do casamento de seu ocaso econômico e da emergência imparável da China e da Rússia. Paradoxalmente, o império tende a ampliar radicalmente ações violentas explicitando e exportando o germe neofascista genocida que carrega em si, obscurecendo progressivamente a velha filiação de sua Constituição formal com os princípios fundadores e legitimadores de sua esfera política como a afirmação das liberdades, da democracia e, por conseguinte, do reconhecimento da soberania dos povos.

 

Materialmente a política interna e externa dos EUA está pautada pelos interesses profundos das grandes corporações, garantindo-os em suas dimensões comerciais, econômicas e financeiras através do complexo industrial-militar, que também é regiamente recompensado sob os benefícios repassados a militares ou ex-militares através de substanciosos contratos, estratégia aplicada para atores cooptados em forças militares auxiliares atuantes para o império como guarda pretoriana do império nos países-alvo. Para a mais precisa proteção destes interesses a política externa do império é configurada segundo a teoria do domínio do espectro total, orientando para absoluto controle de todas as áreas, figurativamente, terra, ar e mar, e assim, da ideologia à cultura, da mídia aos recursos naturais, das armas às comunicações. Para a realização destas últimas ocorre a concentração de todo as informações disponíveis no mundo digital em vastíssimos bancos de dados processados por potentes equipamentos orientados pela inteligência para a realização de atividades de chantagem para a proteção dos interesses das grandes corporações.

 

Este cenário pavimenta a via para a implementação da ditadura do capital financeiro transnacional, e para garanti-la mobiliza a pesada espada imperial que aciona o seu complexo industrial-militar, cuja manifestação hoje é menos percebida objetivamente pela cor dos equipamentos bélicos e das tropas, ou seja, pelo belicismo explícito, do que pelas atividades de inteligência, não menos destrutivas e sanguinárias. Tudo isto representa a franca ruptura com a tradição filosófica liberal brandida pela cultura norte-americana, que sofreu primeiro e paradoxal impacto com o apoio à União Soviética em seu triunfo na Segunda Grande Guerra Mundial, quando os EUA deglutiram e bem digeriram a cultura totalitária dos vencidos, e que foi sendo dissolvida em sua cultura e instituições ao longo do tempo, vindo a recrudescer após o ocaso do socialismo real, quando a mais selvagem das selvagens versões do capitalismo começou a apresentar as suas pretensões sem enfrentar eficientes muros de contenção ideológicos ou armados.

 

A impertinência do capital foi superada historicamente pela assunção de políticas genocidas a espaços que aspiravam consolidar a democracia, processo especialmente visível na América Latina. A contradição ínsita a este enfrentamento com o capital é radical e irreconciliável, pois a capital espiritual da América Latina é a carne de homens como Simón Bolívar (1783-1830) e José Martí (1853-1895), que irritam Wall Street e o Pentágono. A América Latina não mais suporta Washington, mas aponta para Moscou tanto quanto para Pequim, desenha horizonte de multilateralidade equilibrada sob o signo da soberania latina. É construção que carece da intensidade de Teerã mais do que de Ottawa, a quem tampouco desprezará; precisa mais dos bons dias de Nova Delhi e das riquezas de sua confusão urbana do que da arquitetura que oculta a gelidez ética da City de Londres; mais tempero de Bombaim e Luanda do que da tradição dos salões de Viena e Paris. O decadente império certamente não recebe com bons olhos iniciativas promotoras do desenvolvimento regional que apliquem as riquezas do continente em benefício de seu povo. Neste contexto a luta pela democracia popular no Brasil é luta pela retomada da soberania, e a luta por sua soberania não pode ser empreendida senão sob a articulação com a luta conjunta pela democracia e soberania da América Latina.

 

Foto: By Louis Dalrymple - This image is available from the United States Library of Congress's Prints and Photographs divisionunder the digital ID ppmsca.28668.This tag does not indicate the copyright status of the attached work. A normal copyright tag is still required. See Commons:Licensing for more information., Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=27478882

 


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey