PESSOAS NÃO SÃO COISAS
Na sua trilogia sobre a Alemanha nazista, O Terceiro Reich, Richard Evans usa centenas de páginas para descrever o que foram os campos de concentração e extermínio que o regime hitlerista espalhou pela Alemanha e principalmente na Polônia conquistada militarmente.
Para realizar a gigantesca tarefa de exterminar milhões de pessoas em cerca de cinco anos, além de toda uma tecnologia (câmaras de gás e fornos crematórios, principalmente) foi preciso transformar os executores dessa torpe tarefa em seres insensíveis ao sofrimento e dor que causavam aos seus semelhantes.
Embora entre esses algozes houvesse uma boa parcela de sádicos, que se satisfaziam com seu trabalho medonho, havia outros também, que se dividiam entre a brutalidade de suas atividades e um lado, quase normal, quando eram apenas soldados saudosos da família.
O comandante do Auschvitz, Rudolf Hoss, tinha uma típica casa alemã, com jardim e bichos de estimação dentro do campo, onde vivia com sua mulher e filhos, atendido por empregados, prisioneiros do campo, que breve seriam mais alguns números da estatística dos mortos.
Na descrição que faz dessa vida familiar, frau Hoss só se queixa do cheiro da carne humana queimada nos fornos crematórios, que, conforme a direção do vento, a obrigava a fechar portas e janelas da casa.
São esses dados quase banais -Hanna Arendt é autora da célebre definição da banalidade do mal para a prática dos nazistas - que nos espantam mais do que a crueldade aberta dos campos de extermínio.
Preocupado em dar aos seus leitores toda a dimensão dessa tragédia, Evans acumula dados, detalhes, números, estatísticas e um sem número de informações sobre o que ocorria nos grandes campos de extermínio, principalmente Auschwitz e Birkenau.
Ele escreve que os prisioneiros eram objetos, mas o termo não dá a dimensão do que isso significa.
Os objetos, muitas vezes, são importantes para nós e são tratados até com carinho.
Os prisioneiros eram mais que objetos.
Eram coisas.
A coisificação das pessoas foi que permitiu aos nazistas a montagem desse circo de horrores.
Os que morriam, inicialmente nos fuzilamentos e depois quando esse método se revelou pouco eficiente e caro, nas câmaras de gás, eram talvez mais felizes (se é possível falar dessa maneira) dos que serviam de cobaias para experiências pseudamente científicas, ou os que foram postos a caminhar por centenas de quilômetros, sem alimentos e quase nus em meio ao rigoroso inverno do leste europeu, se exaurindo até chegar à morte.
Só pensando nas pessoas como coisas, que governos ditatoriais e mesmo aparentemente democráticos conseguem executar seus projetos, as vezes tão malignos como foi o projeto de extermínio de populações inteiras de Adolf Hitler.
A transferência em massa de milhares de pessoas na Rússia de Stalin, para a execução de um plano de crescimento a qualquer custo, causando como conseqüência milhares de mortos pela fome, só foi possível porque ele pensava em pessoas como coisas.
Só pensando nas pessoas como se fossem coisas, foi possível ao Presidente Roosevelt, condenar cerca de 120 mil pessoas de ascendência japonesa, a maioria nascida nos Estados Unidos, a viver em campos de concentração, com cercas de arame farpado e guardados por militares armados com ordem de abater quem tentasse fugir.
Esses campos, criados após o ataque japonês a Pearl Harbor, se espalharam pelos estados de Arizona, Califórnia, Wyoming, Idaho, Utah e Arkansas e estiveram ativos até 1948. Além dos nipo-americanos, estes campos receberam também 2.264 descendentes de japoneses vindos do Peru (a maioria) Bolívia, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá e Venezuela.
Durante a guerra, 800 japoneses foram trocados por americanos feitos prisioneiros pelo Japão e mais tarde, no final do conflito, 900 dos internados nos campos de concentração, foram deportados para o Japão, como se fossem coisas.
Quando Israel expulsa os palestinos das terras que ocupavam a centenas de anos e constrói um muro em torno de suas propriedades, numa política clara de apartheid, repetindo o que os brancos fizeram contra os negros na África do Sul, está também pensando nessas pessoas como coisas.
Quando o Bolsonaro ameaça tirar direitos históricos conquistados pelos trabalhadores brasileiros, está também pensando neles como coisas e não como seres humanos.
Então, é preciso repetir mil vezes, essa obviedade: não somos coisas e sim seres humanos
Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS