Trump recua no Irã. Enquanto isso, Bolsonaro perde a guerra do milho
Mário Maestri
Durante o G20, o general Heleno, ministro-chefe do poderoso Gabinete de Segurança Institucional da Presidência declarou que o Brasil não tem "inimizadade" ou "rivalidade" com o Irã e que a política externa brasileira é pragmática. Sem aviso prévio, em 19 de julho, a Petrobrás negou-se a vender combustível a dois navios iranianos atracados, desde inícios de junho, no porto de Paranaguá. O Brasil vende sobretudo grandes quantidades de milho, de soja e de carne e compra principalmente uréia do Irã.
Domingo, 21 de julho, Bolsonaro esclareceu que a decisão de negar a venda de combustível fora ordem sua, ao declarar, em oração desalinhada, que "estamos [o governo brasileiro] alinhados à política deles [dos Estados Unidos]." Ou seja, alinhados ao bloqueio imposto, arbitrariamente, pelos USA, a uma infinidade de produtos do export-import iraniano. O Brasil, como Estado independente, afirma obedecer apenas às sanções ditadas pela ONU. Não é porque um vizinho forte proíbe que nosso vizinho fraco receba visitas que devemos obedecer, ainda mais quando temos bons negócios com ele! O paradoxal é que Bolsonaro atacou o milho nacional, e não o Irã, que compra um quinto das exportações nacionais do cereal. O superávit comercial brasileiro com o Irã é de mais de dois bilhões de dólares.
Bolsonaro ocupa-se em presentear o filho número 3 com a embaixada nos Estados Unidos. Portanto, são compreensíveis as razões do afago expontâneo e excessivo a Trump. O milho, a carga do torna-viagem dos navios iranianos, sequer faz parte do rol dos produtos que os USA proíbem discricionariamente que o Irã receba. Imediatamente, Toffoli, o presidente chapa-branca do STF, com seu general-assessor por detrás da poltrona, e Raquel Dodge, a procuradora da República que rasteja para manter sua sinecura, apoiaram o ato bolsonarista de subserviência nacional voluntária. Muito logo, em 25 de julho, Toffoli voltaria atrás - certamente sob o peso da pressão do agro-negócio, dos generais que mando no governo e do próprio Irã.
Tratou-se de um outro golpe contra apoiadores incondicionais de Bolsonaro - o agro-negócio. Pouco após a posse, o segundo governo golpista engoliu a seco suas declarações desastradas contra a China, que acusou de "comprar o Brasil", e contra as sensibilidades dos países islâmicos, quando da promessa de transferir a embaixada do Brasil para Jerusalém. Essas declarações ameaçavam as exportações milionárias sobretudo de soja e ferro para o Império do Meio e de frango, para os países muçulmanos. O Irã compra muito milho, soja e carne do Brasil, e seu embaixador lembrou, no dia 27, que os produtos podem ser adquiridos facilmente em outros mercados. Efetivamente, comprar é fácil, vender, nem tanto. As associações de produtores de milho e de cereais se moveram imediatamente para salvar a lavoura do desatino bolsonariano.
Igualmente grave, o intedicto político fracassado à exportação de grãos para o Irã sinaliza que a mesma proibição pode ser feita em relação à China, quanto a soja, ferro, etc., por determinação estadunidense. O que certamente contribuirá para previsíveis medidas precaucionais chinesas. Com um capitão abobalhado no leme, o agro-negócio vai ser obrigado a dormir com doses de elefante de Rivotril, já que, ao acordar, podem ficar sabendo que um imenso mercado consumidor brasileiro foi ameaçado por uma outra declaração ideológica amalucada.
***
A guerra do milho do capitão começou devido à forte movimentação no Estreito de Ormuz, onde analistas chegaram a apontar perigo de guerra localizada iminente, se não mundial, com o uso de armas atômicas. Não nos parece o caso. Trump não deseja choque militar direto e amplo com o Irã, quando as eleições se aproximam, já que prometeu retirar o país dos conflitos que se perpetuam naquelas regiões e não entrar em nenhum outro. Ainda que alguns falcões com os quais é obrigado a coabitar apontem nesse sentido, como é o caso de Mike Pompeo, Secretário de Estado, ex-diretor da CIA, expressão do complexo militar estadunidense, dos interesses petrolíferos, da extrema-direita republicana, de Israel e da Arábia Saudita.
Nesse momento, é o Irã que tenciona as relações com os Estados Unidos, até as bordas da ruptura. Porém, com cuidado, para não ultrapassá-la. E faz isso para sobreviver.
Em verdade, os USA e Israel querem implodir e não explodir o Irã.
Em 2018, Trump denunciou o acordo sobre o programa nuclear iraniano promovido por Barak Obama, em 2015, tendo como patrocinadores a Alemanha, a França, a Inglaterra, a China, os Estados Unidos e a Rússia. Aquele acordo congelara o programa nuclear iraniano, pusera fim às sanções ao país, permitira forte retomada da economia iraniana. O acordo foi duramente atacado por Israel.
Agora, Trump exige o obtido pelo antecessor, em 2015, por Barak Obama, e a interrupção da produção de mísseis de precisão e cruzeiro que o Irã desova aos milhares, cada vez mais avançados, com a ajuda discreta da Coréia do Norte, da China, da Rússia. Com eles, o Irã procura defender-se do poder nuclear de Israel e do poderoso e avançado armamento estadunidense.
Os mísseis iranianos podem atingir as bases yankees na região e os navios da marinha estadunidense navegando nos canais dos golfos Omã e Pérsico, muito próximos do litoral iraniano. As águas daqueles golfos são muito rasas. Os mísseis iranianos podem eventualmente portar ogivas tradicionais, químicas, biológicas ou "sujas" - material radioativo disperso por explosivo. Sem os mísseis, o Irã é um país indefeso, já que sua aviação e marinha são totalmente defasadas, à exceção de pequenas lanchas, submarinos, drones, etc., produzidos no país.
As amplas e arbitrárias sanções do imperialismo estadunidense ao comércio internacional iraniano, com destaque para o petróleo, colocaram o país de joelhos, causando seríssimas dificuldades para sua população de setenta milhões de habitantes. Após o início dessa última agressão econômica, em 2018, a economia iraniana recuou em quase 4% e pode encolher ainda 6% nesse ano, com aumento do desemprego e da inflação.
A França, a Inglaterra e a Alemanha descumpriram a promessa de criar as condições para o Irã contornar o veto trumpeano às suas exportações, devido à ruptura unilateral pelos USA do acordo de 2015, no qual essas nações participaram, apoiaram e se opuseram a sua denúncia. A China tem elevado fortemente as importações de petróleo iraniano e, segundo parece, fornecido armas modernas ao país, ao igual que a Rússia, que vendeu poderosas baterias S-300 e acaba de colocar à disposição, caso o Irã deseje, as baterias antiaéreas S-400, as mais avançadas do mundo, e não muito caras.
No Irã, subsistem segmentos das classes dominantes e médias que sonham com uma reformatação pró-ocidental do pais. O apoio popular ao governo decaiu desde a introdução de medidas liberais e privatistas. O projeto imperialista é uma "revolução de veludo" ou golpe pró-ocidental no regime. Necessitando pôr fim ou aliviar a "guerra econômica" estadunidense que estrangula o país, o Irã pressiona Trump sobretudo no relativo ao enriquecimento de urânio e quanto ao estreito de Ormuz. Pressiona também na Síria, Líbano, Palestrina, Yemen.
O Irã pressiona os USA no relativo à produção de urânio. Com a denúncia, em 2018, do acordo nuclear "Barak Obama", de 2015, o Irã já superou o limite de trezentos quilos de urânio enriquecido, em início de junho, com um enriquecimento de 4,5%, sugerindo a possibilidade de aumentá-lo para 20%. Para produzir uma bomba atômica é necessário um enriquecimento a 90%. Porém, o próprio urânio empobrecido, sub-produto da produção do enriquecimento do urânio, tem importante uso militar. Aumentando a produção, o país fica nas condições de produzir bombas "sujas", ou seja, nas quais explosivos tradicionais espalhem matéria radioativa, com capacidade de cobrir até cinquenta quilômetros quadrados, com perdas principalmente econômicas.
Sobretudo, o Irã ameaça o imperialismo estadunidense de interromper o tráfego no Estreito de Ormuz. Ligando os golfos Pérsico e de Omã, o estreito é a passagem necessária de em torno a um terço da produção de gás e petróleo mundial, enquanto não se aprontam oleodutos alternativos em direção ao oceano Índico e mares Vermelho e Mediterrâneo, desejados pelos Estados Unidos. Seu ponto mais estreito é de 54 km. Porém, ele é navegável apenas em canal de uns três quilômetros, em águas territoriais do Irã e de Omã, que concedem o direito de navegação pacífica, por decisão nacional. A interrupção da navegação no estreito de Ormuz ensejaria forte elevação do preço do petróleo, com resultados contraditórios através do mundo, e um forte golpe na economia mundial.
O Irã pressiona Trump e os Estados Unidos igualmente com as tropas que mantém na Síria; com o apoio militar indireto aos rebeldes huti no Yemen; com as fortes alianças e milícias aliadas no Iraque; com o Hezbollah do Líbano e, até mesmo, com o apoio concedido ao Hamas, sunita, da Palestina. Sobretudo, não pode deixar que a agressão econômica geral estadunidense se mantenha, semi-congelada, até uma eventual exaustão do país e desorganização social.
O Irã retomou a estoque e enriquecimento de urânio, expande progressivamente a autoridade sobre suas águas territoriais no estreito de Ormuz; abateu drone yankee e afirmou que qualquer resposta estadunidense, mesmo de "mentirinha" - ataque missilístico a uma praia desértica, um quartel vazio, etc. -, seria considerada como ato de guerra, com contra-medidas na região e fora dela, o que fez Trump recuar na encenação de represália.
A crise USA-Irã agravou-se com o aprisionamento arbitrário de petroleira iraniana Grace 1, a pedido dos Estados Unidos, pelo governo inglês. O Irã respondeu com a detenção em suas águas territoriais do barco inglês Stena Impero, por desobedecer leis da navegação. A ação foi criticada pela França e Alemanha e justificada pela Rússia. A oposição trabalhista inglesa atacou o governo conservador por envolver-se em iniciativas nascidas da denúncia por Trump do acordo de 2015.
Os USA e Israel temem conflito geral com o Irã. A poderosa marinha estadunidense têm dificuldade em atacar o Irã nos canais estreitos das águas rasas dos golfos Pérsico e de Omã, a pouca distância das costas iranianas. Ataque aéreo e missilístico - apoiado ou não por Israel e a Arábia Saudita - arrasaria grande parte das infra-estruturas militares e civis iranianas. E receberia como resposta bombardeio de saturação de Israel, das bases militares USA da região, dos navios estadunidenses. Os dois mil soldados yankees postados na Síria e os cinco mil no Iraque seriam massacrados. As fronteiras de Israel poderiam ser atacadas por tropas sírias, iranianas, do Hezbollah libanês e do Hamas palestino.
Um conflito violento, de média duração, causaria enorme destruição ao Irã, perdas pesadas para os Estados Unidos e Israel, e não resolveria nada. A solução seria uma guerra total contra o Irã, com mobilização necessária de talvez mais de meio milhão de soldados, que exige longo tempo de preparação e recursos econômicos e políticos de que os USA não mais dispõem. Atualmente, Trump sequer consegue organizar aliança internacional para controlar o estreito de Ormuz. O uso da arma atômica tática seria uma solução, apesar do preço político interno e externo da opção. E determinaria resposta da Rússia, talvez apoiada pela China, que não podem permitir a destruição nuclear dos aliados, sob pena de serem varridas do cenário mundial.
A solução militar já foi jogada e perdida pelos Estados Unidos na Síria. Enorme tropeço agravado pelo deslocamento da Turquia em direção da Rússia.
Em dezesseis meses, Trump enfrentará as eleições presidenciais. Não pode ser arrastado em um conflito com perdas graves ou sem solução positiva, já que prometeu retirar o país dos conflitos em que foi envolvido e não criar nenhum outro. Um confronto sem graves desdobramentos, semanas antes das eleições, é, porém, uma política eleitoral que sempre conquistou resultados nos USA. Há poucos dias, a Câmara controlada pelos democratas aprovou emenda que proíbe Trump de atacar o Irã sem permissão do Congresso.
Sem alcançar resultados no relativo à China, à Venezuela e à Coréia do Norte, Trump concentrou a pressão no Irã. Exigiu o que o Irã não tem condições de conceder e se encontra, agora, no geral sem alternativas, já que não pode retroceder, nem atacar. A tendência é a provável liberação dos navios aprisionados, por um lado e o outro, sem maior distensão do conflito, com possível agravamento relativo nos próximos tempos, por parte do Irã, para levar Trump à mesa de negociação. A Inglaterra limitou sua resposta ao acompanhamento de navio de guerra dos seus petroleiros, na travessia do estreito de Ormuz. Os iranianos podem também moderar relativamente suas ações, esperando uma eventual vitória democrata e o retorno ao tratado de 2015. O que lhes garantiria a paz e o retorno da prosperidade, nem que fosse por algum tempo.
***
Paradoxalmente, a adesão voluntária fracassada de Bolsonaro ao bloqueio de Trump, com sua batalha do milho, debilita seu apoio entre o agro-negócio, seu antigo apoiador. E, uma eventual vitória democrata nas eleições presidenciais dos USA significaria, para ele e o bolsonarismo, um inferno astral sem fim. Já que apostaram todas suas fichas e as cuecas na vitória de Trump. Ao se alinhar, não à política "deles", mas à política "dele", de Trump.
Mário Maestri, 71, historiador. maestri1789@gmail.com. Comentário - 25/07/2019. quintas-feiras, 7:00. Duplo Expresso, coordenação e apresentação Romulus Maya. https://duploexpresso.com/?cat=5 [atualizado 27/07.]