O intelectual raivoso
Mário Maestri (*) Brasil, março de 2005.
Ele é agressivo, prepotente, escandaloso. Sem qualquer pudor, anuncia absurdos inomináveis, sempre conservadores, é claro. Faz apologia da desigualdade, da desumanidade, da riqueza escandalosa, do ódio aos pobres e da opressão dos fracos. Defende os crimes ambientais, a inferioridade da mulher, a superioridade do capitalismo, a violência imperialista. Ataca a educação sexual, o compromisso social e, sobretudo, tudo que é público. Nada lhe é mais bonito que o privado.
Ele se esforça para escrever bem, em forma displicente ou rebuscada, pousando de homem de cultura, absolutamente despreocupado com a mesma, coisa que já superou, pois própria ao esquerdista anacrônico. É invariavelmente repetitivo e, sobretudo, superficial, limitando-se a escavar no âmago do que há de pior no senso comum, para vendê-lo, estilizado, como visão inovadora de mundo.
Obrigado a reapresentar sempre o mesmo conteúdo rasteiro, empreende eterna fuga en avant, como uma espécie de dependente químico forçado pela abstinência à busca da dose diária de forma e de argumento escandalosos, sem a qual não consegue manter-se de pé, na crista da onda midiática. Viciado pelo sucesso fácil, de enfant-terrible da cultura, migra sem volta para a histrionice trivial.
Publicista de aluguel
Elevado pela força dos veículos de divulgação que freqüenta e das classes proprietárias que defende, torna-se publicista excelente de aluguel, do tipo usa-se e bota-se fora. Mais comumente incapaz de produção cultural de vida mesmo breve, desaparece ao interromper os serviços prestados, sem deixar traços culturais ou artísticos. É como se recebesse tudo no ato.
Não é produto dos novos tempos neoliberais, apesar de ser um seu importante registro. Com a avalanche direitista, abandonou o bas-fond cultural em que vegetava como desprestigiado estipendiado dos poderosos, jamais levado a sério, jamais se levando a sério - quem se lembra dos Ibrahin Sued e dos Flávio Cavalcante da vida? - para conquistar a áurea de intelectual transgressor.
Por seu sucesso e precocidade, Paulo Francis é paradigma do intelectual raivoso no Brasil. Nobilitado pela resistência pasquinesca permitida pela ditadura, apoiado em cultura trotskista obtida folheando os Profetas de Deutcher, pousou de intelectual esquerdista para, nos anos 1980, quando a partida parecia perdida para sempre, passar de mala e cuia à apologia neoliberal, onde sua essência e seu estilo de pensador vulgar encontraram o material e a forma que lhes correspondiam.
Um poço de mediocridade
Apesar de sua sacralização midiática, jamais conseguiu retirar do anonimato a produção ficcional com que pretendia conquistar a absolvição do pecado consciente de pensador mercenário. Cabeça de Papel (1977) e Cabeça de Negro (1979) consagraram-se como ficção pobre de escritor de pretensão imensas e recursos minúsculos. Sua ensaística escorreu pelo ralo do esquecimento merecido com singular velocidade. Com tanto, jamais se fez tão pouco.
Paulo Francis não inventou o gênero, foi apenas a expressão de mais sucesso de espécie que se reproduziu como micose em pé de atleta quando do tropeção histórico do mundo do trabalho, da razão e da racionalidade. Jornalistas, historiadores, intelectuais e farsantes de variado coturno foram acolhidos, de braços abertos, pela grande mídia brasileira e mundial, voltada desbragadamente à formação das consciências, em lugar da informação da opinião.
O intelectual raivoso é praga mundial que golpeou igualmente o mundo acadêmico, onde filósofos, historiadores e cientistas sociais como Furet, Fukuyama, Henry-Lévy, Stéphane Courtois trocaram a credibilidade pela grande difusão midiática e editorial, produzindo para tal apologias já senis no momento do nascimento, como O fim da história, O livro negro do comunismo, Pensar a revolução francesa.
Metáfora macabra
Hoje, no Brasil, centenas de ideólogos praticam, em forma permanente ou episódica, profissional ou aficionada, essa espécie de jornalismo cultural marrom, dignificados pelo espaço cativo que ocupam na melhor mídia, nacional e regional, retribuição pelo estupro sem pudor da mais comum inteligência, em reafirmação plena do dito cínico de que "é dando que se recebe".
Ainda que totalmente descartável, o intelectual raivoso não é jamais biodegradável. Verdadeira metáfora ambulante, materializa no fel que destila a feiúra e a violência do mundo que proclama, onde a esperança, a solidariedade e a igualdade são palavras e idéias nefandas, acusadas de corromper o próprio ar em que reverberam, sempre cintilantes, ainda que desmaiadas e estranguladas.
Na sua progressão arrastada, o intelectual raivoso deixa atrás de si o rastro pútrido da reafirmação das visões culturais obscurantistas ensejadas por ordem capitalista que, em estágio senil consolidado, propõe apenas a inevitabilidade da miséria, da desigualdade, do egoísmo, do individualismo, da fome, da guerra e da morte. É cadáver que se crê vivo, rondando pelo mundo, aos gritos, na vã tentativa de assombrar a vida.
(*) Mário Maestri, 70, é historiador. E-mail: maestri1789@gmail.com