A democracia europeia e a democracia venezuelana
Ter uma organização como a União Europeia a tecer considerações sobre a democraticidade da República Bolivariana da Venezuela permite corrigir a sentença tradicionalmente atribuída a Einstein de que há apenas duas coisas infinitas, o universo e a estupidez humana.
Por João Vilela
Ter uma organização como a União Europeia a tecer considerações sobre a democraticidade da República Bolivariana da Venezuela permite corrigir a sentença tradicionalmente atribuída a Einstein de que há apenas duas coisas infinitas, o universo e a estupidez humana. Cumpre acrescentar à lista uma terceira, a falta de noção dos políticos europeus. E tal como Einstein, também só tenho dúvidas sobre a primeira.
A União Europeia tem dúvidas sobre a democraticidade da eleição de Maduro? Eu tenho certezas sobre a democraticidade de órgãos como o BCE, a Comissão, e o Eurogrupo - é zero, e não obstante tomam decisões sobre actos de soberania dos Estados-membros ao ponto de lhes quererem rever e aprovar os orçamentos. A União Europeia tem dúvidas sobre o processo constituinte de 2017? Eu tenho certezas de que o Tratado de Lisboa foi a forma de aprovar na secretaria o que já tinha sido derrotado nas urnas nos referendos holandês e francês, e bem me lembro do scaremongering que foi feito para que na Irlanda, onde o povo "votou mal" à primeira, se impusesse um segundo escrutínio a contento de Berlim. A União Europeia acha que Maduro recorre à violência contra os opositores políticos? A União Europeia foi um nenúfar de delicadeza no trato com o Governo de Tsipras quando ele levantou as primeiríssimas dúvidas (aliás vacilantes e cobardolas) sobre as regras europeias. E está a sê-lo com a condução das negociações do Brexit, como se vê.
A pretensão colonialista de dar lições de democracia ao hemisfério sul vinda de uma organização transnacional com este currículo só não faz rir porque, antes disso, enoja. A UE que impôs os Governos não-eleitos de Papademos na Grécia e Monti na Itália, acha que pode fala de democracia a quem? A organização que tem um parlamento, único órgão eleito directamente pelos cidadãos dos Estados-membros, onde os deputados não têm poder de iniciativa legislativa nem voto na matéria em nenhum assunto relevante, tem o quê a dizer sobre a democracia venezuelana? O que seria um processo democrático para o socialismo ser licitamente aplicado na Venezuela, o processo de aprovação de Maastricht?
Quanto mais o assunto é democracia, mais as instituições europeias deviam fazer silêncio. Seja pelas suas práticas, seja pela duplicidade inqualificável com que no mesmo dia admoestam Maduro de manhã, almoçam com os genocidas de Israel, lancham com os assassinos dos Rohyngia na Birmânia, jantam com os ocupantes do Sahara Ocidental em Marrocos, e dormem com os financiadores do wahabismo na corte saudita. A União Europeia tinha bem mais a aprender sobre democracia com Maduro do que tem para lhe ensinar.
A esquerda, evidentemente, tremendo de medo de não ser aceite como respeitável à luz do tribunal da burguesia, enfileirou, salvo assinaláveis excepções, seja pela condenação pura e simples do "ditador" Maduro, seja pela outra forma - e mais cobarde - de subordinação à agenda burguesa que é no auge da confrontação entre o imperialismo e a resistência querer conservar a neutralidade e tecer juízos morais equidistantes sobre os actores do conflito. Quando o que lhe cabia era a defesa, por dever internacionalista, de um povo que luta pela liberdade. Era a condenação, sem rodeios nem meias palavras, de quem prega democracia para a colónia e pratica a ditadura na casa grande. Era, em suma, a coragem de quem quer romper e transformar, ao invés do comodismo, cheio aliás de um racismo chauvinista cada vez pior disfarçado. É triste ao que alguns se prestam para não correrem o risco de perder as boas graças do patronato. Quando o tão vituperado Putin consegue ter actos de verticalidade que o Pedro Filipe Soares não consegue acompanhar, esta esquerda torna ainda mais claro que não serve para nada.