Desde maio, José Gomes Guajajara não pode deixar sua aldeia na Terra Indígena Araribóia, no Maranhão. É marcado para morrer pelos madeireiros da área, uma retaliação pelo trabalho de proteção territorial dos Agentes Indígenas Ambientais da Araribóia. José é um dos 120 agentes que circulam pela TI na busca por invasores, tentando manter de pé a única floresta que restou dessa zona do Maranhão. Uma função que cabe ao Estado e seus órgãos de fiscalização foi na prática assumida pelos próprios índigenas. A reação dos madeireiros tem sido violenta.
Em outubro, a invasão e degradação florestal explodiram na terra do povo Guajajara. Sistema de monitoramento por satélites criado pelo ISA detectou um crescimento de 196% no número de alertas de exploração madeireira em relação à setembro. Os dados são preocupantes. As imagens indicam que, em outubro, foram abertos 23,4 km de pequenas estradas usadas para o roubo de madeira, conhecidos por ramais. Ao todo, são 1.150,32 km de ramais, incidindo em 20,45% do território. A expansão das vias madeireiras está ocorrendo nas regiões de cabeceira do lago Branco, um importante recurso hídrico para a TI e local onde habitam indígenas isolados da etnia Awá-Guajá - que optaram por ter pouco ou nenhum contato com outros indígenas e não indígenas. Veja aqui o boletim na íntegra.
Os boletins mensais de monitoramento da TI têm norteado as expedições dos Agentes Indígenas, que buscam levantar informações em campo sobre os pontos de exploração e abordar os madeireiros, apreendendo a madeira e expulsando os invasores. Nem sempre escapam ilesos.
"Por que nosso povo está sendo assassinado?", questiona José Guajajara. Desde 2006, foram 13 guajajaras mortos na Araribóia, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Três eram agentes ambientais indígenas, também conhecidos por guardiões da floresta: Alfonso, Acisio e Cantídio Guajajara. Segundo Auro Guajajara, junto ao corpo de Alfonso os madeireiros deixaram uma lista com os nomes dos outros agentes ameaçados, como um recado da violência futura. "Os caras (madeireiros) deixam claro: 'se eu ver o guardião eu vou matar'", relata José.
Segundo o agente ambiental Valim Guajajara, a estratégia de ação é combinada antes de cada operação. "Às vezes a gente dialoga com invasores", conta ele. Em outras, eles colocam os invasores no carro e os levam para fora da Terra Indígena. "Depois nós queimamos a madeira, para eles aprenderem a não ir mais na área da gente", diz.
O atual coordenador do grupo, Olímpio Guajajara afirma que os guardiões acabando cumprindo o papel do Estado. Em uma das ações, relata, 12 tratores madeireiros foram incinerados. "Numa aldeia chamada Cupim, também era uma rota de roubo de madeira, encontramos um trator de esteira e quatro caminhões. Não tivemos perdão", conta.
A Terra Indígena resguarda o que sobrou de mata na região. Do total de florestas remanescentes dos municípios do entorno, 72,4% encontra-se nas TIs Araribóia, Governador, Geralda/Toco Preto e Krikati. A madeira extraída alimenta serrarias e carvoarias, que impulsionam a economia local. Também são utilizadas para fazer as cercas das fazendas da região. Dados oficiais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que o Maranhão já desmatou 46% de sua cobertura florestal. Nos seis municípios no entorno da TI, esse número é ainda maior: 52,5%.
Isolados Awá-Guajá
Além de proteger a floresta, os agentes ambientais também tentam proteger os indígenas isolados que vivem no território. São grupos da etnia Awá-Guajá que tiveram pouco ou nenhum contato com outros povos indígenas e não indígenas, e tiram da floresta tudo que precisam para sobreviver: caça, água, frutos, mel etc.
Na Araribóia, já foram avistados algumas vezes pelos Guajajara. O relato dos guardiões é de que 60 Awá-Guajá, divididos em dois grupos, habitam a TI, sobretudo nas regiões mais centrais da terra, próximo às cabeceiras de rios e lagos.
Conforme a mata escasseia, seu modo de vida fica cada vez mais ameaçado. A presença constante dos madeireiros também amplia os riscos. O aumento da frequência dos registros e contatos mostra que eles já não têm mais pra onde fugir. "Nas fugas, eles deixam coisas importantes para trás", explicou, em seminário sobre o tema, o antropólogo Uirá Garcia, que pesquisa os Awá-Guajá e é professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Relatórios do Cimi denunciam que madeireiros queimaram e atropelaram pertences dos Awá Guajá. Uma criança com suspeitas de pertencer ao grupo dos isolados foi encontrada morta, segundo o Cimi.
"Às vezes pode ocorrer algum problema entre forças operacionais e madeireiros e eles (os isolados) estão nessa linha de tiro. Ou acontece alguma explosão (causada pelos madeireiros) e assusta eles", relata Auro Guajajara. Em agosto, os guardiões identificaram a presença de um grupo de isolados a 7 km de um barracão madeireiro.
A presença dos Awá-Guajá na Araribóia é antiga. "Eles estavam lá muito antes de eu ter nascido. O meu pai já falava (dos isolados). O meu pai era caçador, encontrava eles no mato e contava pra gente: tem parente brabo no mato", afirma Olímpio."Eu não acreditava mas eu mesmo vi os tapiris deles, fui na região onde eles estavam rodando, onde pegam água, fruta", conta.
Segundo Auro Guajajara, os madeireiros contratam pistoleiros para ficar na mata, prontos para atirar. Nas vilas madeireiras, circulam histórias de violência contra esses indígenas, mas não há investigação da polícia, nem mesmo a sua confirmação. "Se aparecer isolado ou não isolado, a ordem é clara: é para matar a pessoa. A gente não tem o aparato dos militares (para se defender). A gente age pela coragem e pela revolta de não aceitar mais essa organização", diz ele.
Há décadas os Guajajara da Araribóia pedem socorro ao Estado para a proteção dos Awá Guajá isolados. "Os mais velhos sempre pediam, o cacique finado Chicão, que mais pediu a proteção dos isolados pro governo, pra Funai, pro Ministério Público", explica Olímpio.
Sem respostas efetivas, a proteção dos isolados foi justamente uma das grandes motivações para o surgimento dos guardiões, em 2011. A outra grande motivação para a formação foi a morte do cacique Tomé Guajajara. Em 2007, Tomé expulsou um grupo de madeireiros que roubava a Araribóia. A retaliação aconteceu cerca de um mês depois: um grupo de homens armados invadiu a aldeia, entrou na casa de Tomé e o executou. Sua esposa Madalena Guajajara e seu filho foram baleados, mas sobreviveram. A execução chocou os Guajajara e, a partir daí, eles começaram a pensar uma ação estruturada para fiscalização e monitoramento do território.
Para Auro Guajajara, porém, falta apoio dos órgãos públicos e o que acontece no território é apenas a ponta do iceberg. "Tem toda uma organização, uma classe empresarial por trás do que acontece. Acabamos fazendo algo que é responsabilidade do estado e, por isso, temos nossas cabeças a prêmio", relata. Não à toa, Grajaú, município colado na Araribóia, é o maior produtor de carvão vegetal do Maranhão, respondendo por 11% da produção (18.068 toneladas), segundo dados oficiais do IBGE. Amarante é o 10o colocado, com 2.955 toneladas.
"Os índios estão fazendo o que está ao alcance deles para proteger suas terras. Mas seria necessária uma ação policial robusta do governo, incluindo inteligência, investigação, repressão e prevenção, para desbaratar as organizações criminosas que estão por trás dos crimes cometidos na Araribóia", avalia Márcio Santilli, sócio fundador do ISA.
Segundo Olímpio, graças ao trabalho dos guardiões, muitas estradas de fluxo de madeireiro hoje estão fechadas por mata novamente. Mas é um esforço constante. "Reconquistamos os espaços que estavam sendo invadidos pelos madeireiros, roubando a riqueza dos nossos filhos e dos nossos netos", diz.
São 518 anos de resistência. "Quando chegou o europeu começou um processo de extermínio para ocupar o Brasil. E a gente foi sobrevivendo, se salvando", afirma Zezico Rodrigues, historiador e diretor da escola da aldeia Zutiwa, na Araribóia.
"A floresta é muito importante para todos os seres. É através da floresta que nós respiramos, que ainda somos vivos até hoje", afirma José, ao explicar porque decidiu arriscar a vida para proteger seu território. "Me dá medo eu morrer na rua, na BR. Tenho medo de deixar minha família sem respostas. Isso me preocupa", relata. "Mas eu abracei essa causa porque desde quando o Brasil foi formado, que era o nosso território, muitos parentes foram assassinados. O que me inspira é isso aí", diz ele. "Se a nação indígena acabar, toda a nação irá junto. Toda a floresta, todos os animais, vão junto", conclui.
Clara Roman
ISA
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