O Estatuto do Desarmamento e o excesso de criminalização
Desde dezembro de 2003 o comércio legal de armas de fogo no Brasil é regulado pela lei 10.826/03, porém, ademais dessa função reguladora, a referida norma legal é, acima de tudo, uma legislação penal que tipifica crimes e define penas relacionadas ao uso de armas. Atualmente, tal legislação já figura como a quarta principal causa de encarceramento no Brasil, atrás apenas dos crimes de tráfico de drogas, roubo e homicídio.
Evidentemente, a legislação penal deve tratar do uso inadequado de armas de fogo, sem cair, contudo, num "punitivismo" exagerado que, na prática, em nada contribui para a alegada "paz social". É preciso que se compreenda que a maioria dos crimes previstos no Estatuto do Desarmamento enquadra-se nos chamados crimes de perigo abstrato, ou seja, grosso modo, trata-se da possibilidade de um crime maior ser cometido. Assim, a legislação vigente optou por criminalizar a posse de munição mesmo desacompanhada da arma de fogo. Tal postura leva em consideração o fato de que a referida munição "poderia", eventualmente, ser empregada na prática de outro crime e é exatamente esse o debate que a sociedade brasileira precisa fazer: devemos punir a mera possibilidade ou o delito efetivamente praticado?
Felizmente, o Judiciário tem adotado uma postura muito mais razoável e racional no que concerne a aplicação da norma legal em tela. A título de exemplo, tanto STJ quanto STF, já decidiram pela ausência de crime em casos de posse de munição desacompanhada da arma de fogo; na prática, tal entendimento significa que, a depender de cada caso, inexiste crime para quem, eventualmente, tenha no interior de sua residência pequena quantidade de munição, em não havendo provas que o acusado(a) integra organização criminosa, aplica-se o princípio da insignificância ao crime previsto no artigo 12 do Estatuto.
Para além dessas questões, é sabido que a lei 10.826/03 tornou o acesso legal às armas de fogo um privilégio de quem possui condições financeiras de arcar com a burocracia estatal. A mera obrigatoriedade da renovação periódica do registro de arma exclusivamente nas delegacias da Polícia Federal foi, sem dúvida, um dos fatores da drástica queda no número de armas legalizadas no país. Não é a toa que em 2010 o Sinarm (Sistema Nacional de Armas) da Polícia Federal contabilizava 8.974.456 armas legalizadas e no início de 2018 esse número era de apenas 646.127, resultando assim, mais de 8 milhões de armas em situação irregular. Não obstante, a própria instrução normativa 023/2005 da PF parece ter sido pensada apenas para os grandes centros urbanos, note-se que o artigo 32 da citada norma determinava: "O interessado em adquirir munição deverá comparecer a uma Delegacia de Defesa Institucional - DELINST centralizada em Superintendência Regional, ou a uma Delegacia de Polícia Federal e protocolizar requerimento de Autorização para Compra de Munição, mediante formulário padrão - Anexo VI."; certamente a redação da citada regra desconsiderou o indivíduo que mora a 700 Km de uma DPF, aliás, nunca é demais lembrar que existem 121 delegacias da Polícia Federal em um país de mais de 5.570 municípios.
Ninguém, em sã consciência, discorda do fato de que o país necessita de uma regulação responsável do comércio legal de armas de fogo, bem como da existência de uma legislação penal que puna os crimes efetivamente praticados com armas. Contudo, o Estatuto do Desarmamento se tornou obsoleto para ambas as questões. É essencial que tenhamos uma legislação clara que evite ao máximo os exageros na aplicação da lei. O inciso III do artigo 16 do Estatuto talvez seja o exemplo mais gritante: o que de fato significa "artefato explosivo ou incendiário"? Quem compra uma garrafa de álcool e uma caixa de fósforos poderia ser enquadrado em tal artigo? Para os que vêem exagero nessa indagação, devem lembrar-se da prisão de um jovem carioca, detido com base nesse mesmo artigo, por conta de uma garrafa de água sanitária e outra de desinfetante.
Prof. Dr. Josué Berlesi, historiador, docente na UFPA.