Mídias Indígenas e Rádio Yandé: Teixeirão Bobalhão
A indescritível história da relação do coronel Jorge Teixeira com os índios e com a mídia e o making off de sua entrevista concedida em 1979 foram contados nesta quarta-feira (20) no SESC Consolação (SP), numa mesa com três jornalistas: Maria Alice Otre, professora de comunicação da Universidade de Marília: Renata Tupinambá, cofundadora da Rádio Iandé - a primeira emissora indígena online do país, e este colunista do Diário do Amazonas, ex-redator-chefe do Porantim, um jornal "em defesa da causa indígena".
por José Ribamar Bessa Freire(*)
Qual a imagem do índio desenhada ao longo dos anos pela grande mídia? Foi por não sair bem na foto que o movimento indígena criou vias alternativas? Essas perguntas alimentaram o Bate-papo sobre Mídias Indígenas programado dentro do evento Mídias Alternativas e Movimentos Sociais, organizado pelo SESC para discutir jornalismo, militância e direitos humanos com retrospectiva histórica desde os anos 70, envolvendo outras "minorias" que, por discordarem da cobertura da mídia hegemônica, criaram também canais próprios para se expressar nas redes sociais, blogs, portais, sites.
A flecha digital
A jornalista Maria Alice, pesquisadora no campo da comunicação popular, alternativa e comunitária, falou sobre a experiência da Ação de Jovens Indígenas (AJI) da Reserva de Dourados (MS), que abriga 15 mil índios Terena, Guarani e Kaiowá e edita o jornal AJIndo, com notícias sobre política indigenista, luta pela terra, violência dos fazendeiros, questões relativas à saúde e educação e o preconceito veiculado pela grande mídia.
Já Renata Tupinambá, roteirista especializada em etnomídia, começou com uma reza em sua língua e apresentou a programação da Rádio Yande ("nós" em tupi) criada em 2013, no Rio de Janeiro, por Anapuáka Muniz Tupinambá Hã Hã Hãe, gestor em marketing, e Denilson Baniwa, artista plástico e designer. A eles se juntaram, entre outros, além da própria Renata, a artista plástica Daiara Tukano, o professor de história Vavá Terena, o mestre em antropologia social Idjahuri Guaicuru/Terena e a professora Yakui Tupinambá, técnica em economia doméstica.
Eles são conhecidos como "indígenas em contexto urbano", porque saíram de suas aldeias para estudar e trabalhar na cidade. Usam a tecnologia como uma "flecha digital" disparada contra os preconceitos veiculados pela grande mídia. A webrádio, produzida apenas por índios, conta com 180 colaboradores e correspondentes, numa programação 24 horas, com música, entrevistas, depoimentos, poesias, denúncias e programas informativos. Acessada no site ou por aplicativo para celular, já ultrapassou a marca de 2 milhões de ouvintes em vários países.
A borduna impressa
O terceiro palestrante foi este locutor que vos fala, convidado para relatar a experiência de um jornal mensal criado em maio de 1978 pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI-Amazônia), em Manaus, com o nome de Porantim - uma borduna em forma de remo, com grafismos que contam os mitos de origem dos Sateré-Mawé. A edição dos primeiros números era mimeografada, mas mantinha uma rede de correspondentes nas aldeias, que enviavam notícias escritas até em papel de embrulho, entre os quais os próprios índios e os agentes de pastoral que atuavam em área indígena.
Foi um desses correspondentes que noticiou na edição mimeografada de julho de 1978 as mortes de mais de cem índios Yanomami, no rio Maiá, vitimados pela malária e tuberculose. Jornais de todo o país reproduziram a matéria na primeira página. O presidente da Funai, general Ismarth, considerou a cifra exagerada, da mesma forma que um ano depois, em agosto de 1979, negou a morte de 85 índios Deni, no rio Juruá. Por isso, o Porantim publicou lista nominal em matéria enviada da aldeia por Egon Dionísio, com os nomes dos mortos, cobrando políticas de saúde da Funai. O jornal, então, já era um tabloide impresso, com tiragem de 1.500 exemplares.
As vozes dos índios silenciadas pela mídia encontraram seu espaço. Cada edição ouvia sempre o "outro lado", publicando entrevistas com indígenas. Um deles foi o Ticuna Manuel, preso como estuprador, condenado pelas manchetes escandalosas dos jornais locais. Entrevistado na prisão pelo Porantim, foi verificado que a acusação não tinha qualquer fundamento. A outra entrevista exclusiva com Raoni, feita a quatro mãos com Paulo Suess, permitiu contextualizar a morte de 11 peões que derrubavam árvores em território indígena do Xingu a mando de fazendeiros.
O making off de várias matérias foi exposto no evento do SESC. O Porantim desenterrou, em 1979, a chacina de 40 índios Juma ocorrida em Tapauá, em abril de 1964. Jagunços comandados pelo prefeito local, com a participação de comerciantes e seringalistas tentaram apagar o crime. O trabalho de jornalismo investigativo de duas alunas do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Amazonas permitiu fazer cobranças à Polícia Federal, com a tomada de posição da OAB-AM.
O ex-bobalhão
Finalmente, durante a mesa sobre Mídias Indígenas emergiu a figura do coronel Jorge Teixeira, oficial paraquedista, criador do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS). Ex-prefeito de Manaus indicado pela ditadura para governar Rondônia, ele deu entrevista em 1979 a uma colunista social com declarações que hoje seriam consideradas crime de racismo:
- O pior mesmo são os índios. Tem a melhor terra, nada fazem, a não ser pescar e procriar. Uns bobalhões parasitas (...) Vou empurrá-los para a outra margem do rio".
Nosso valente jornal reproduziu trecho da entrevista com o título "Teixeirão Bobalhão". Acontece que o Porantim era órgão do CIMI, subordinado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que em reunião de sua Regional escalou o bispo de Parintins, dom Arcângelo Cerqua, para puxar as orelhas do redator chefe. Tivemos uma reunião debaixo de uma árvore no Centro de Treinamento Maromba:
- Meu filho, você acha que um jornal da Igreja pode desrespeitar um governador com esses termos ofensivos?
- Mas nós nem mencionamos a genitora do coronel!!! Só devolvemos a forma com que ele tratou os índios. Se foi ofensa, então ele ofendeu os índios - respondi.
O bispo sugeriu que eu me retratasse na edição seguinte. Redigi, então, a nota "Teixeirão, ex-bobalhão", que acabou não sendo publicada por ser considerada provocativa. Mas não deixava de ser uma retratação.
Espaço na mídia
Um exemplo da relação dos índios com a mídia foi apresentado no final. Um vereador do PFL de Chapecó (SC), em entrevista ao Diário do Iguaçu, em janeiro de 2001, chamou os índios de sujos e preguiçosos, condenou as cotas em universidades públicas e ameaçou:
- Já que índio quer terra, vou dar pra ele sete palmos de terra.
A matéria, que fazia apologia do crime, trazia charge na qual um índio fugia e deixava cair seu celular, o que "provava" ser "um falso índio". O Ministério Público Federal pediu indenização, que não foi concedida pelo Judiciário local. Os Kaingang recorreram. O processo se arrastou, mas o STJ, em sentença definitiva, decidiu, em 2016, que o jornal pagasse R$850.000,00 de indenização aos índios, o que significava a falência da empresa.
- Nós não queremos dinheiro. Queremos só que digam a verdade sobre nós - disse sabiamente o cacique Kaingang Idalino Fernandes, que assinou um acordo pelo qual o jornal, durante 5 anos, é obrigado a abrir um espaço semanal para os índios publicarem o seu ponto de vista, com total autonomia e sem censura, além de custear estudantes indígenas na Universidade de Chapecó. Aliás, todos os jornais do Brasil deviam conceder esse espaço.
(*)José Ribamar Bessa Freire, doutor em Letras, é professor da Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO e coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ. Foi professor em universidades peruanas e em cursos para professores indígenas. Publicou livros e artigos no Brasil e no exterior.