Um Fórum Social Mundial, esvaziado de ideias, povos e luta, muda-se para Salvado
"É preciso parar de ver o Sul com os olhos do Norte. A atividade das organizações sociais não é para mostrar a miséria, mas para enfatizar a cooperação, a complementaridade, a solidariedade, valores difíceis de encontrar na informação do Norte. E esse é um problema ético", escreve Aram Aharonian, em artigo publicado por ALAI, 21-02-2108. A tradução é de André Langer.
Aram Aharonian é jornalista, comunicador, codiretor do Observatório Latino-Americano de Comunicação e Democracia e presidente da Fundação para a Integração Latino-Americana (FILA).
Eis o artigo.
O Fórum Social Mundial (FSM), que nasceu em 2001 - portanto, há 17 anos - com o objetivo de ser um ponto de encontro para os movimentos sociais contrários à globalização neoliberal e constituir-se em uma voz alternativa às diretrizes do Fórum Econômico Mundial de Davos, que continua a reunir anualmente empresários e líderes políticos do capitalismo hodierno.
Quando se anuncia para março um novo Fórum Social Mundial em Salvador (Bahia), que corre o risco de passar despercebido pelos cidadãos que se quer sensibilizar e mobilizar, poucos parecem assumir que o mundo mudou e o contexto em que emergiu é diferente do de hoje... embora a luta continue a ser a mesma.
A verdade é que em mais de quinze anos, o FSM não esteve isento de perigos, como a rotinização, a onguização, a cooptação, a burocratização, a falta de participação de movimentos sociais reais e a dispersão.
E hoje estamos pela crise sistêmica do capitalismo, com uma crise climática, política, social e alimentar sem precedentes, às portas da Quarta Revolução Industrial, ou seja, o efeito das novas tecnologias sobre os trabalhadores e a economia, assim como as notícias falsas (fake news), a pós-verdade e a inteligência artificial. De fato, em 2001, em Porto Alegre, não se falava sobre nada disso...
Rita Freire, uma das animadoras do FSM de Salvador, indica que esta edição, que conta com pouco tempo de preparação, poucos recursos - o apoio da Universidade Federal da Bahia e do Estado da Bahia - e está sendo organizada em uma situação nacional e internacional complexa, conta com a força e o entusiasmo dos seus organizadores com a convicção de que deixar de abrir o espaço do FSM para a resistência, seria abdicar do que afirmamos em 2001 em Porto Alegre. O problema é maior quando se acredita que o que falta são recursos, quando a verdadeira falta é de ideias.
Se no início do movimento anti-globalização predominavam as teses de "mudar o mundo sem tomar o poder" de Toni Negri e John Holloway, a realidade premente fez com que o cenário do debate político e estratégico mudasse substancialmente. Somente em 2007, em Belém do Pará, foi organizada a primeira demonstração coletiva de rejeição da crise sistêmica do capitalismo, destacando a necessidade de uma ruptura com o mesmo.
Nos últimos cinco anos, proliferou o debate - entre movimentistas "puros" (em geral aliados a posições da socialdemocracia europeia e da Igreja católica) e ativistas sociais e políticos - sobre o futuro do Fórum Social Mundial: que relação deve haver entre partidos políticos anticapitalistas e movimentos sociais? Que vínculos deve haver com os governos progressistas da região, que estratégia assumir em relação ao apelo de Hugo Chávez para promover uma Quinta Internacional?
O FSM foi ganhando progressivamente peso e influência? Certamente é hora de discutir uma atualização conforme os tempos, totalmente diferente de quando dois brasileiros pensaram na necessidade de um fórum anti-Davos. E Davos? Ah, do último Davos participaram mais chefes de Estado e primeiros-ministros do que da Assembleia Geral das Nações Unidas...
Além disso, aqueles movimentos sociais que levaram os nossos presidentes reformistas (de esquerda, revolucionários, como quisermos chamá-los) ao governo, já não estavam nas ruas para defendê-los quando foi preciso: seus dirigentes foram cooptados (e burocratizados) para tarefas do governo e os movimentos desmobilizados.
A verdade é que as questões cruciais já não são debatidas no Fórum Social Mundial, talvez porque ninguém tenha pensado em colocá-las em uma agenda com muita inclinação onguista e europeia. E se são discutidas, ficará entre os presentes, uma vez que não existe sistema de comunicação com aqueles que não estavam nesse preciso fórum.
Também não há maneira (nem estrutura) para fazer uma síntese dos painéis que tratam do mesmo tema. Em outras palavras, os participantes só têm acesso ao que aconteceu no painel em que estavam: as experiências, os debates, as ações, não são socializados (ou são feitos apenas para esse pequeno setor). Não são disponibilizados àqueles que lutam contra a realidade atual.
Os antes entusiastas e agora críticos da organização assinalam que a tarefa do FSM não é construir alternativas: é um espaço interno dos participantes, que se encontram com outros igualmente motivados e convencidos, e retornam à sociedade mais convencidos e mais informados sobre o mesmo.
Diante da crise, os desafios são apresentados como mais urgentes do que nunca. A escritora indiana Arundhati Roy, já na quarta edição do FSM em Mumbai (Índia) assinalou a necessidade de abandonar discursos pomposos, discussões intelectuais de café e debates triviais e "focar em alvos reais e infligir danos reais".
Atualmente, os movimentos sociais internacionais são incapazes de encontrar uma forma de conexão reticular que lhes permita atuar mais conjuntamente e têm dificuldades para estabelecer objetivos convergentes.
No início do milênio, o primeiro passo de muitos intelectuais e forças políticas e sociais foi definir o inimigo, a globalização, para, a partir daí, possibilitar que todos aqueles que lutavam contra o mesmo inimigo pudessem coordenar suas ações. Mas enquanto se conseguiu formar o movimento, este não coordenou lutas em escala mundial, como era de se esperar. Ele se conformou em ser um movimento de resistência, não de ação, sem muitas outras formas de luta além dos fóruns.
No entanto, hoje o FSM é uma fera domada (a imprensa hegemônica nem sequer o menciona), dispersa. A ofensiva ideológica da globalização continua, enquanto o chamado reformismo latino-americano segue discutindo a questão da tomada do poder.
Em boa parte dos movimentos que compõe o FSM, formou-se a ideia básica de que não se pode tratar de tomar o poder, mesmo quando na América Latina ficou demonstrado que, com o poder na mão, muito se pode obter em favor dos povos. Sem o poder, continuaremos falando, denunciando, lamentando... em uma boa oportunidade para nos encontrarmos com os amigos, às vezes às custas dos trabalhadores, dos camponeses, que custeiam a viagem dos delegados.
Muitas vezes, confunde-se a autogestão com desordem, com a falta mais elementar de organização. E com mesas autogestionadas onde são expostas apenas as experiências de cada um, onde não se pode falar de nível intelectual, de debate, de coordenação para a ação, nem da linha traçada (ou sugerida) por um comitê organizador, dotada de elementos políticos, intelectuais, de primeira grandeza, como aqueles dos primeiros anos do FSM.
A fórmula do espaço que cria o debate mais adequado e eficiente contra a globalização neoliberal (hoje superada pela Quarta Revolução Industrial e em meio à queda do multilateralismo) significa que é possível que, através da acumulação de todos os setores da sociedade civil e dos movimentos sociais, se chegue a criar ativistas com uma visão holística.
Mas, até agora, isso não acontece. Cada organização tem seu tema e nem aceita juntar-se em painéis. Isso cria uma fragmentação, uma pulverização e uma falta de ação global, que são negativas, aponta um dos fundadores do FSM.
Hoje, as antigas formas democráticas e republicanas são assediadas por populismos ultranacionalistas de direita, e acentua-se o autoritarismo e o processo de destituição na medida em que os direitos sociais conquistados são violados, os líderes progressistas e sociais são perseguidos, presos e assassinados, cresce a migração (mesmo entre os nossos países), a água e os alimentos estão em perigo, crescem a desigualdade e o aumento do desemprego, juntamente com a crise ecológica.
A agenda do fórum de Salvador parece desenhada por ONGs europeias (parecida com aquela que foi imposta durante a reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Buenos Aires, deixando de fora da discussão, por exemplo, a premente questão do Tratado de Livre Comércio da União Europeia-Mercosul). Eles, sempre vendendo espelhos.
As ações de muitas dessas organizações da chamada sociedade civil serviram para impor, em nome da democracia, governos de marionetes que facilitam o saque de suas riquezas nacionais por corporações transnacionais do Norte, serviram para atiçar conflitos étnicos para garantir políticas neocoloniais na África, e nos últimos anos ajudaram a desestabilizar as nações latino-americanas que buscam um futuro para seus cidadãos.
Os reveses do progressismo não supõem a extinção do processo: suas causas não cessaram e nem as indignações e as expectativas sociais que geram, e muito menos a urgência de encontrar soluções alternativas para os problemas reais da nossa região.
A secretaria do FSM, que antes facilitava o funcionamento do Conselho Internacional, foi transferida do Brasil para o Marrocos e, obviamente, a relação do Fórum com o Estado brasileiro foi congelada com a entrada do governo de fato liderado por Michel Temer. Para as organizações da Bahia, tem um valor particular o desejo de participar de um Fórum dedicado à resistência, assinala Rita Freire, uma das animadoras do FSM de Salvador.
Há questões muito atuais que devem ser discutidas em conjunto com os movimentos e as organizações sociais, como a luta contra a domesticação da mídia corporativa; as estratégias para influenciar e mudar sistemas e políticas de comunicação; a criação e a promoção de recursos alternativos, acrescenta Freire.
Isso nos obriga a entender os mecanismos de filtragem da internet, uma vez que a proteção de dados pessoais é absolutamente vulnerável. Trata-se de defender princípios para garantir a neutralidade da rede e da privacidade, que está sendo demolida nos Estados Unidos nos últimos meses. A Quarta Revolução Industrial é um debate que perpassa desde os meios de comunicação populares até os movimentos sindicais no FSM, disse da Suíça.
É preciso parar de ver o Sul com os olhos do Norte. A atividade das organizações sociais não é para mostrar a miséria, mas para enfatizar a cooperação, a complementaridade, a solidariedade, valores difíceis de encontrar na informação do Norte. E esse é um problema ético.
Mas a questão das mudanças climáticas parece não estar entre as prioridades dos organizadores. Como disse o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, o capitalismo jamais será verde, com exceção das notas de um dólar estadunidense. E o altermundismo?
Estamos em uma profunda crise de governabilidade, de derrota cultural e continuamos a reeditar um novo capítulo da resistência que já tem mais de 525 anos. Seria hora de passar da denúncia à etapa de construção das alternativas unitárias de luta. Do contrário, a questão de que outro mundo é possível (e necessário) será apenas mais um slogan atraente de tempos melhores.
A ideia de que o FSM não pode ganhar espaço internacionalmente, seguramente deleitará os donos do mundo, da confraria de Davos, Trump, Orban, os fanáticos do Brexit, Temer, Macri... e assim por diante.