Des-Pensando o racismo colonial

Des-Pensando o racismo colonial

Di­ante dos úl­timos acon­te­ci­mentos ra­cistas no país - são muitos, não ele­gerei um único - creio que não é ino­por­tuno re­cu­perar uma dis­cussão pro­posta por Ella Shohat e Ro­bert Stam, em seu já an­tigo livro Crí­tica da Imagem Eu­ro­cên­trica (tra­dução de Marcos So­ares. São Paulo: Cosac Naify, 2006. O ori­ginal é de 1994). 

Por Cassiano Terra Rodrigues, no Correio da Cidadania


Nesse livro, o casal ataca o pro­blema de como os meios de co­mu­ni­cação em massa - a in­dús­tria cul­tural, ou do es­pe­tá­culo - afetam nossa vida, ou vice-versa. O livro ques­tiona pro­fun­da­mente as es­tru­turas de poder indo muito além da mera aná­lise de dis­curso, mas também mos­trando como se re­la­ci­onam ele­mentos dis­cur­sivos e ima­gens que sus­tentam esse poder e também emanam dele. Com isso, con­se­guem mos­trar como nosso ima­gi­nário foi ge­nui­na­mente co­lo­ni­zado, quer dizer, como nossa ma­neira de ver e de en­tender o mundo é for­ma­tada por ima­gens cha­madas de "eu­ro­cên­tricas". O prin­cipal agente dessa co­lo­ni­zação (como se fosse pre­ciso dizer) é o ci­nema. 

Pois bem. Já de início os termos da dis­cussão são co­lo­cados: não se trata de di­mi­nuir a Eu­ropa, mas de re­cusar o eu­ro­cen­trismo como uma forma de sim­pli­fi­cação da pró­pria Eu­ropa. Na imagem-eu­ro­cên­trica-de-mundo, "Eu­ropa" de­no­mina uma es­sência única e ho­mo­gênea, limpa de di­fe­renças e con­tra­di­ções, fonte ex­clu­siva da me­lhor cul­tura mun­dial. Essa falsa con­cepção ba­seia uma cons­trução ide­o­ló­gica (perdoe-me o leitor o termo ba­tido) do "oci­dente" como lugar de origem das grandes re­a­li­za­ções da hu­ma­ni­dade, oposto aos lu­gares "pri­mi­tivos", seja o ori­ente, pelos seus "mis­ti­cismos", seja o "ter­ceiro mundo", lugar sub­de­sen­vol­vido de cul­turas atra­sadas.  

Em ou­tras pa­la­vras, o livro ataca a ideia de que é pos­sível isolar as con­quistas no­bres da hu­ma­ni­dade - como a ci­ência ou o hu­ma­nismo - numa Eu­ropa ima­gi­nada, livre das de­fi­ci­ên­cias, reais ou ima­gi­ná­rias, que ca­rac­te­rizam os ou­tros lu­gares.  E isso é feito por meio de uma mi­ríade de exem­plos - cen­tenas de cenas de filmes e tre­chos de es­critos - im­pos­sível de re­pro­duzir ou re­sumir - exem­plos que re­sistem, de fato, a uma con­cepção geral in­te­gra­dora e que nos instam a mo­di­ficar como pen­samos e como agimos.

Essa imagem eu­ro­cên­trica não re­siste a per­guntas sim­ples. Por exemplo, como ex­plicar his­to­ri­ca­mente a for­mação da ri­queza econô­mica e do pro­gresso téc­nico em certos países da Eu­ropa e não em ou­tros? Como não falar nessa his­tória da es­cra­vidão de povos afri­canos, da ex­pro­pri­ação da terra dos in­dí­genas e do con­trole dos re­cursos na­tu­rais na Amé­rica? É mesmo pos­sível falar da tec­no­logia como uma in­venção eu­ro­peia? Não seria me­lhor falar de "aven­tura con­junta", sem es­quecer que a maior parte dos lu­cros ainda fica com al­guns países eu­ro­peus? Ou ainda, como é que Is­rael está no "oci­dente" e Egito no "ori­ente"? Com per­guntas como essas, des­mo­rona a es­ta­bi­li­dade de uma su­po­sição comum, a da opo­sição ab­so­luta entre um oci­dente e seu outro, mos­trando tratar-se muito mais de uma opo­sição fun­ci­onal do que des­cri­tiva: um du­a­lismo a ser­viço do co­lo­ni­a­lismo, pois con­si­dera que os povos desses ou­tros lu­gares não-euro-cen­trados são in­ca­pazes de go­vernar a si mesmos. 

Nessa opo­sição, o ra­cismo é um con­ceito ope­ra­tivo de grande im­por­tância, já que "o co­lo­ni­a­lismo é o et­no­cen­trismo ar­mado, ins­ti­tu­ci­o­na­li­zado e glo­ba­li­zado" (p. 41). 
O ra­cismo, no en­tanto, não pode ser iden­ti­fi­cado com o et­no­cen­trismo, muito menos com o eu­ro­cen­trismo, em­bora seja muito útil a eles e fruto do co­lo­ni­a­lismo. En­quanto o et­no­cen­trismo pode ser iden­ti­fi­cado em qual­quer ten­ta­tiva de olhar o mundo pelas lentes da pró­pria cul­tura, o ra­cismo vai muito além, ca­rac­te­ri­zando-se por "es­tig­ma­tizar a di­fe­rença com o pro­pó­sito de jus­ti­ficar van­ta­gens in­justas ou abusos de poder" (p. 51), de quais­quer na­tu­rezas. É, no fundo, muito mais do que mero dis­curso ou con­junto de ideias abs­tratas. Na ver­dade, o ra­cismo é uma ideia viva a se des­do­brar co­ti­di­a­na­mente em ati­tudes con­cretas. 

Aliado ao co­lo­ni­a­lismo, o ra­cismo ajudou muito o im­pe­ri­a­lismo: "bestas", "sel­va­gens", "in­do­lentes", "ban­didos" são ainda hoje as de­no­mi­na­ções co­muns dadas aos in­dí­genas da Amé­rica e aos povos da África. Ao mesmo tempo em que suas pro­pri­e­dades e cul­turas eram ata­cadas e des­truídas, os povos co­lo­ni­zados eram ri­di­cu­la­ri­zados por não pos­suírem cul­tura ou his­tória. O ra­cismo a ser­viço do co­lo­ni­a­lismo con­se­guiu, assim, unir agressão e nar­ci­sismo - "o in­sulto ao acu­sado é acom­pa­nhado de um elogio ao acu­sador" - num cír­culo vi­cioso - "somos su­pe­ri­ores porque somos po­de­rosos e somos po­de­rosos porque somos su­pe­ri­ores" (p. 45), uma pe­tição de prin­cí­pios já iden­ti­fi­cada por Platão nos porta-vozes da aris­to­cracia ate­ni­ense, os so­fistas. 

O ra­cismo re­dunda numa ab­so­luta hi­e­rar­quia de di­fe­renças, não im­porta se reais ou ima­gi­ná­rias, be­né­fica a quem a julga e pre­ju­di­cial a quem é jul­gado. É a ten­ta­tiva de jus­ti­ficar um pri­vi­légio ou opressão já exis­tentes por parte de quem se co­loca no lugar pri­vi­le­giado de julgar. Assim, o ra­cismo está em ín­tima re­lação com o cru­za­mento entre poder e pri­vi­légio, jus­ta­mente por exibir a na­tu­reza opres­siva de atos tidos como na­tu­rais. Em ou­tras pa­la­vras, o ra­cismo tal como o co­nhe­cemos é um ele­mento sis­tê­mico, fruto da cons­ti­tuição his­tó­rica dos me­ca­nismos de poder. Não é só uma ca­rac­te­rís­tica de atos in­di­vi­duais, mas de algo en­rai­zado nas nossas vidas so­ciais tais como elas se cons­ti­tuíram (é pos­sível ouvir aqui lon­gínquo eco do ar­gu­mento de Rous­seau). Por isso, não é in­comum que ra­cismo, se­xismo, clas­sismo e ho­mo­fobia sejam en­con­trados juntos. 

Talvez por isso seja mais fácil ana­lisar es­te­reó­tipos ra­cistas do que des­bancá-los, como já aler­tava Frantz Fanon. Por ser oni­pre­sente, parte es­tru­tu­rante da cul­tura em que nos in­se­rimos, o ra­cismo pode, de um lado, apa­recer como um ódio de si mesmo por parte dos pró­prios opri­midos: por que eu de­veria gostar de mim mesmo se ser quem sou é ruim? Mi­chael Jackson não foi o único negro a querer em­bran­quecer, bem como não são poucos os bra­si­leiros que wanna be North Ame­rican. De outro, a re­pulsa ra­cista pode es­conder no fundo um de­sejo e uma atração in­con­fes­sá­veis pelo outro: como não posso ceder ao ob­jeto que me atrai, pre­ciso des­truí-lo. Daí que todo elogio possa ser nada mais que um falso elogio: a va­lo­ri­zação do fí­sico pode se trans­formar na des­va­lo­ri­zação do in­te­lecto; a li­ber­dade da li­bido nada mais é do que a face evi­dente da ani­ma­li­dade pri­mi­tiva; os ta­lentos "na­tu­rais" mos­tram a falta de tra­balho e a de­so­bri­gação da cul­tura. E assim por di­ante. Essas múl­ti­plas in­de­ter­mi­na­ções re­sultam, no fim das contas, numa es­qui­zo­frenia ab­surda: ao mesmo tempo em que re­lega mi­lhões de jo­vens ne­gros à mi­séria, à falta de pers­pec­tivas e à morte, nossa ci­vi­li­zação ido­latra ce­le­bri­dades de origem afri­cana, prin­ci­pal­mente na mú­sica, nos es­portes, nas artes dra­má­ticas, quer dizer, no seio do pró­prio es­pe­tá­culo. O ra­cismo, na ver­dade, é tanto in­di­vi­dual quanto sis­tê­mico, "ao mesmo tempo co­ti­diano e abs­trato" e, por isso, "parte do te­cido da psique e do sis­tema so­cial" (p. 52). 

É pos­sível iden­ti­ficar ao menos seis ele­mentos cen­trais do ra­cismo: 

1) a pos­tu­lação de uma falta es­sen­cial aos opri­midos, como os hu­manos do mito de Pro­meteu, a quem faltam ca­pa­ci­dades na­tu­rais que lhes per­mitam so­bre­viver. O es­ta­be­le­ci­mento dessa falta, no en­tanto, segue a norma do que é con­si­de­rado pró­prio ao ideal de ci­vi­li­zação eu­ro­peia, ou seja, quem julga que o outro é falho toma a si mesmo como mo­delo, sem con­si­derar a si pró­prio como po­ten­ci­al­mente falho aos olhos do outro; 

2) uma ver­da­deira mania por hi­e­rar­quias axi­o­ló­gicas, isto é, uma ob­sessão por parte do ra­cista em es­ta­be­lecer ní­tidas es­calas de valor entre si mesmo, suas crenças e va­lores, e os dos opri­midos; 

3) a cul­pa­bi­li­zação da ví­tima, bem co­nhe­cida nossa, evi­dente em ila­ções como "o bra­si­leiro é um povo in­do­lente, por­tanto deve ser dis­ci­pli­nado", "as mu­lheres são mais emo­tivas, por­tanto in­ca­pazes de re­a­lizar ta­refas in­te­lec­tuais", "o negro é muito sen­sual, por­tanto, in­de­cente"; 

4) a re­cusa da em­patia, quer dizer, o dis­curso que opõe um "nós" a um "eles", como se iden­ti­dades fossem algo es­sen­ci­al­mente es­tá­tico e não sin­cré­tico; 

5) a sis­te­má­tica des­va­lo­ri­zação da vida e do corpo, em nome de uma ex­ces­siva va­lo­ri­zação do mental e do con­cei­tual, como se fossem polos opostos - um "nós", ra­ci­onal e cé­tico, contra um "eles", ir­ra­ci­o­nais e de­ses­pe­rados; 

6) por fim, o ra­cismo afirma uma ne­gação dupla que não se con­verte em afir­mação, pois nega a di­fe­rença de cons­ti­tuição his­tó­rica, na­tu­ra­li­zando todos os povos sob uma ca­te­goria abs­trata de "hu­mano", e si­mul­ta­ne­a­mente também nega a igual­dade de opor­tu­ni­dades e, con­se­quen­te­mente, de ex­pec­ta­tivas, em nome de uma su­posta de­si­gual­dade hi­e­rár­quica na­tural. Daí que todas as de­fesas de ações pon­tuais de jus­tiça his­tó­rica - as cha­madas "ações afir­ma­tivas"- sejam ne­gadas, o que nada mais é do que apenas fazer vista grossa para pri­vi­lé­gios her­dados e opres­sões his­tó­ricas. 

Não à toa, há tempos a ra­ci­o­na­li­dade abs­trata e uni­ver­sa­lista tem sido cri­ti­cada do ponto de vista do aco­ber­ta­mento de prer­ro­ga­tivas e cre­den­ciais so­ciais (ho­mens brancos e pro­pri­e­tá­rios con­ti­nuam de­ten­tores ma­jo­ri­tá­rios da ri­queza e da pro­pri­e­dade dos meios de pro­dução). 

Ideais li­be­rais de di­reito uni­versal e igual­dade pouco sig­ni­ficam se pouco in­te­gram de di­fe­rença so­cial real. Pense-se em au­tores como Ab­dias do Nas­ci­mento, Lélia Gon­zales, Nelly Ri­chard, que ata­caram as pre­ten­sões uni­ver­sa­listas e de­nun­ci­aram a ânsia de ho­mo­ge­neizar as di­fe­renças reais numa nar­ra­tiva ci­vi­li­za­tória hi­gi­e­ni­zada e livre de con­tra­di­ções so­ciais. De fato, o tra­balho com a pró­pria lin­guagem ope­rada por es­cri­tores como Oc­tavio Paz ou Ma­chado de Assis, dentre muitos ou­tros que po­de­riam ser ci­tados, mostra como "a lin­guagem da me­ri­to­cracia, das con­quistas pes­soais e da contra-vi­ti­mi­zação" ocultam, na ver­dade, um como que atá­vico "fa­vo­ri­tismo ins­ti­tu­ci­onal" (p. 54). 

Como uma exor­tação à dú­vida, à in­sa­tis­fação com as ima­gens pré-es­ta­be­le­cidas e à ação trans­for­ma­dora de prá­ticas e pri­vi­lé­gios he­gemô­nicos opres­sores, po­demos, então, re­lem­brar o dis­curso de Ariano Su­as­suna sobre seu en­can­ta­mento ju­venil com o Gunga Din do an­tigo filme homô­nimo (EUA, 1939, dir. Ge­orge Ste­vens): en­quanto não que­brarmos a re­doma em que nos con­fi­namos, ja­mais par­ti­lha­remos de um des­tino comum. 


Cas­siano Terra Ro­dri­gues é pro­fessor de fi­lo­sofia na PUC-SP e não está isento de con­tra­di­ções. 

 


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey