Nem todos gostaram é o mínimo que se pode dizer do filme de estréia do 70. Festival de Locarno, Amanhã e todos os outros dias, da atriz e realizadora francesa Noémie Lvovsky, um conto, como ela definiu, sobre a solidão de uma menina de 9 anos, vítima, se assim se pode dizer, da separação de seus pais e vivendo com a mãe, ligeiramente mal da cabeça mas que acaba por ser internada, depois de ter fugido de uma loja vestida de noiva e de ter comparado mais de uma dezena de malas de viagem para ir não se sabe onde, em todo caso provocar mudanças repentinas de apartamento.
O filme poderia ter seguido nessa linha da solidão vividas por crianças em famílias monoparentais, situação vivida pela própria cineasta, como contou no encontro com a imprensa. Mas acabou comprometido pela introdução de uma personagem de voz masculina - uma coruja falante. Não falante no modelo dos filmes americanos fantásticos ou das fábulas de La Fontaine, onde os animais falam entre si ou com os humanos. Fala, como tentou explicar a realizadora, como se fosse um animal de companhia da menina, Mathilde, extremamente só e com dificuldade de relacionamento com as outras meninas na escola. Ou seja, a coruja fala na imaginação de Mathilde, porém, isso não fica evidente no filme e a coruja não consegue se introduzir e se diluir no filme, mas permanece como algo intruso e incõmodo para os espectadores.
Para boa parte dos críticos, foi uma má escolha para assinalar a 70a. edição, com projeção no telão da Piazza Grande.
Felizmente, a Piazza Grande tem hoje Fanny Ardant num filme de Nadir Moknèche, Lola Pater (referência a Lola Montes e todas outras Lolas) com um tema difícil mas bem defendido pela atriz - ela vive um transsexual, Farid, que abandonou a esposa com um filho, Zino, para retornar a viver na Argélia sob a identidade de Lola. A trama do filme é a dificuldade de Zino, já adulto e pianista convertido em afinador de pianos, reconhecer o pai e aceitar esse pai convertido na bela Lola, uma transsexual professora de dança do ventre e ainda por cima lésbica, pois vive com uma amante.
Lola Pater ou o Pai Lola é um filme com um enredo inspirado numa sociedade em transformação que coloca em questão todos os seus tabus, incluindo ainda as transformações da modernidade entre os próprios descendentes da comunidade muçulmana França, que não se submete à restrição do alcool e aceita o homossexualismo.
Nós que gostamos do filme Lola Pater não afirmamos que Fanny Ardant seja convincente no papel de uma transsexual, mas o filme tem uma beleza intrínseca por ser um reconhecimento da transformação da sociedade em que vivemos, indiretamente contra os homofóbicos e os racistas de todos os matizes.
Rui Martins está em Locarno, convidado pelo Festival Internacional de Cinema.