Ex-ministra da Igualdade Racial do governo Dilma rebate declarações da atual ministra de Direitos Humanos de Temer
Nilma Lino Gomes, Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG)
Esse final de semana foi marcado não somente pelo feriado e cerimônias da Páscoa cristã. Como tem acontecido desde o último dia 17 de abril de 2016, dia em que se instaurou o golpe parlamentar, midiático, jurídico, de classe, raça e gênero, no Brasil, acordamos com as redes sociais e noticiários repercutindo as trapalhadas do governo ilegítimo.
A mais recente veio da Ministra dos Direitos Humanos. Por mais difícil que seja esse debate, não podemos confundir a representatividade que importa somente pela ocupação de um maior número de pessoas vindas dos coletivos sociorraciais diversos nos lugares de poder. É preciso ter maior número, sim, mas de pessoas comprometidas e com conteúdo político, crítico e emancipatório.
A subrepresentatividade das mulheres negras e dos homens negros nos lugares de poder está tão estruturalmente arraigada em nosso país que nos assustamos quando temos que lidar com a diversidade ideológica, de postura política e de comportamento dos poucos sujeitos que representam esses coletivos sociorraciais quando ocupam lugares de poder. Imaginamos que toda mulher negra e todo homem negro, que nasce na estrutura patriarcal, sexista, machista e racista do nosso país, só poderia estar no campo das lutas sociais. Estranhamos quando encontramos esses sujeitos no campo do conservadorismo, da manutenção do poder das hegemonias brancas hereditárias.
O conservadorismo e a direita no poder fazem um simulacro das lutas emancipatórias. A duras penas, entendemos que, numa sociedade capitalista, machista, racista e LGBTfóbica é possível ser parte de um grupo que sofre discriminação, misoginia e racismo e escolher, ao mesmo tempo, ficar do lado conservador e do opressor. E, ainda, usufruir dos poucos ganhos que este lugar possibilita para aqueles e aquelas, que possuem esse perfil, e que chegam até ele. E, assim, deslumbrar-se com o poder, proferir falas e gestos conservadores.
Já escrevi em outros momentos que não há lugar para a diversidade em um governo golpista. E não há mesmo! Por isso, aquelas e aqueles que fazem parte de uma estrutura de poder que se ergueu em cima da corrupção e da deslealdade, independentemente de sexo, raça, religião, sexualidades, só podem partilhar de ideais tão conservadores e excludentes quanto o governo do qual aceitaram participar. E não se pode esperar nem falas e nem pautas emancipatórias.
Concordo e partilho da revolta e do repúdio que tomou conta de muitas mulheres negras e militantes quando as redes sociais e a mídia repercutiram a fala da ministra dos Direitos Humanos. As relações de poder e opressão trazem esse perverso conteúdo. E tentam se apropriar das lutas e da subjetividade daqueles que ajudam a oprimir. E, em alguns casos, conseguem fazer isso. Temos também um exemplo masculino na Câmara de Vereadores de uma importante capital do país.
Não cabe nesse momento desconsiderar a trajetória da ministra e a sua história como mulher negra no seleto, machista, misógino e racista campo jurídico. Mas cabe aqui afirmar que o pensamento, a postura política e ideológica que a fazem acreditar que nós, mulheres negras, precisamos de um padrinho e, diga-se de passagem, um homem branco (e golpista!) como padrinho, não nos representa.
Se precisássemos de padrinhos e, mais, de homens brancos como nossos padrinhos, nós, mulheres negras, estaríamos ainda mais invisíveis do que as relações de poder já nos tornam. Seríamos ainda mais violentadas do que já somos. Veríamos os nossos jovens negros morrerem ainda mais do que já morrem. Estaríamos ainda mais subrepresentadas do que já estamos.
Nós, mulheres negras, não estamos sozinhas. Temos nossas referências ancestrais. Não precisamos de padrinhos e nem de madrinhas, sobretudo, brancos. São as nossas referências femininas e negras que nos dão força.
Temos Dandara, Luiza Mahin, Virginia Bicudo, Lélia González, Beatriz Nascimento, Mãe Menininha, Luiza Bairros, Matilde Ribeiro, Ana Célia da Silva, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, Makota Valdina, Mãe Stela, Mãe Beata, Mãe Glória, Ruth de Souza, Elza Soares, Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Cidinha da Silva e tantas outras mulheres negras que nos inspiram. Podemos citar muito mais.
Elas nos representam naquilo que a nossa história tem de luta, de força, de coragem, de graça, de estratégia e luta pelo poder. Elas e tantas outras nos inspiram a lutar para que a raça ocupe lugar central dentro das discussões de classe e gênero. Elas são fontes que nos ajudam a construir o feminismo negro. Elas nos reenergizam quando lutamos por ações afirmativas, igualdade racial e de gênero, direitos reprodutivos, saúde da mulher negra. Elas são as nossas referências quando instauramos uma estética negra no modo de ser, vestir e nos pentear. Elas nos ensinam a resistir, a existir, e a re-existir.
São essas mulheres negras-referências e as avós, mães, tias, companheiras e irmãs negras da luta cotidiana que reanimam, dão energia e que hoje inspiram uma nova geração de mulheres negras no mundo da cultura, da arte, da educação, da economia, da mídia, do jurídico, da política a continuarem lutando contra o racismo e o sexismo e a se posicionarem afirmativamente no campo da luta emancipatória.
A opressão tem como um dos seus objetivos principais aprisionar a subjetividade do oprimido. Se queremos construir políticas verdadeiramente emancipatórias e antirracistas não basta a nós, negras e negros, chegarmos e estarmos no poder a qualquer custo. Temos que chegar e estar no poder do lado certo da história: a luta democrática e antirracista.
(*) Nilma Lino Gomes foi ministra da Igualdade Racial e do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos da presidenta eleita Dilma Rousseff. Atualmente, é professora da graduação e pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FAE/UFMG) e Integrante da equipe do Programa Ações Afirmativas na UFMG.