"A decisão de Yannis Varoufakis de demitir-se do posto de ministro das Finanças foi grande surpresa. Ele, afinal, é um dos grandes vencedores do referendum. Mas é decisão muito lógica. (...) Bruxelas não soube avaliar corretamente essa evidência, mas Varoufakis sempre foi apaixonado defensor do euro e da ideia europeia. Não é absolutamente o caso de Tsakalotos."
A vitória do "Não" no referendum grego é acontecimento de importância histórica. Ficará na história. Apesar das pressões impressionantes a favor de um voto "Sim", tanto pelos jornais e jornalistas gregos como pelos dirigentes da União Europeia (UE), apesar de o Banco Central Europeu (BCE) estar fabricando condições para um pânico bancário, o povo grego fez ouvir sua voz. Fez ouvir sua voz contra as mentiras que se distribuíram e continuam a ser distribuídas sobre a situação da Grécia ao longo das últimas semanas.
Nossos pensamentos aqui se dirigem aos editorialistas que, como bem entenderam, venderam aos eleitores gregos figurações travestidas da realidade, e fizeram crer que haveria um elo entre o Syriza e a extrema-direita do Aurora Dourada. Não que essas mentiras nos surpreendam. Apenas não as esqueceremos.
O povo grego fez ouvir sua voz com força raríssima, posto que, diferente do que sugeriam as pesquisas de boca de urna, a vitória do "Não" veio com diferença importante, de cerca de 60%. Claro que o governo de Alexis Tsipras sai reforçado dessa luta, o que deveria levar seus interlocutores a pensar melhor. Logo veremos o que virá. Mas deve-se dizer imediatamente que as reações, sejam de Martin Schulz no Parlamento europeu; de Jean-Claude Juncker para a Comissão, ou de Sigmar Gabriel, ministro da Economia e aliado dos sociais-democratas da chanceler Merkel na Alemanha, não dão lugar a nenhum otimismo.
Essa vitória do "Não" também teve eco especial, é bem visível, na França. Aconteceu quase dez anos depois de outra vitória de um "Não", aquele na França (e nos Países Baixos). Tratava-se então, em 2005, do Projeto de Tratado Constitucional Europeu. O projeto foi rejeitado aqui na França por mais de 54% dos votos. Aqui também, a campanha pela imprensa-empresa, conduzida pelos que pregavam voto "sim" passou de todos os limites, de todas as medidas. Os partidários do "Não" foram alvo de todas as injúrias e de todas as ameaças. Mas venceram.
Data desse momento o divórcio, que só faz aumentar e aumentar, entre os franceses e a casta jornalística da imprensa-empresa, jornais, redes e jornalistas, divórcio cujo crescimento se pode medir também nos números declinantes da imprensa-empresa comercial "oficial" e no aumento do público que procura informação em blogs muitas vezes bem pouco ou nada jornalísticos - como esse em que escrevo.
Aquele referendum marcou a clara diferença entre o que pensavam os eleitores de classes populares e os de classes mais privilegiadas. Classifiquei de "vitória dosprolos sobre os bobos.
Parece que assistimos a fenômeno da mesma ordem na Grécia, dado que, se os bairros ricos de Atenas votaram "Sim" em mais de 80%, foi nos bairros populares que o "Não" os derrotou, com proporção ainda maior. O voto "Não" dos gregos é eco direto do dos franceses. Contudo, depois de múltiplas manobras, um texto quase similar, o "Tratado de Lisboa", foi aprovado no "congresso" alguns poucos anos depois, pela via de uma aliança sem princípios entre a União por um Movimento Popular, UMP [de Sarkozy] e o Partido Socialista, PS. Desse momento data, com certeza, a ruptura que se constata entre as elites políticas e empresarial-jornalísticas, de um lado, e dos eleitores, de outro. Essa negação da democracia, esse roubo de um voto soberano, é ferida profunda para muitos franceses. A ampla vitória do "Não" grego vem reativar essa ferida e pode empurrar os eleitores franceses a exigir que lhes prestem que lhes são devidas, de um passado que, decididamente, nunca passa.
O significado de um "Não"
Mas é preciso compreender o significado profundo desse "Não". Ele se opõe aos comportamentos muito antidemocráticos dos responsáveis seja pelo Eurogrupo seja pela Comissão Europeia ou pelo Parlamento europeu. Esse "Não" desacredita personalidades como Jean-Claude Juncker, ou Dijssenbloem, ou Martin Schulz, presidente do Parlamento. Opõe-se sobretudo à lógica que passou a operar depois de 27 de junho, quando Dijssenbloem, presidente do Eurogrupo decidiu excluir de fato o ministro Varoufakis, das Finanças da Grécia, de uma das reuniões. Esse gesto sem precedentes implicava excluir a Grécia da zona Euro. E é preciso destacar muito a espantosa passividade do ministro francês Michel Sapin. Ao aceitar permanecer na sala, foi conivente com o abuso de poder cometido por Dijssenbloem. Ainda que hoje o governo francês diga que deseja que a Grécia permaneça na Eurozona, o comportamento desse importante membro do governo, próximo do presidente da República, faz pensar que não há aí desmentido direto, do que diz o governo, ou, no mínimo, impõe uma dúvida sobre se seria real o engajamento da França.
O governo grego observou, é claro, o que se passava. De fato, a França foi excluída de uma batalha na qual a Alemanha, direta ou indiretamente, inspirou todas as posições europeias.
O fato de que o Banco Central Europeu tenha organizado na semana de 28/6 a 5/7 a asfixia financeira dos bancos gregos, provocando emoção compreensível muito compreensível na população, é prova de que as instituições europeias não tinham absolutamente qualquer intenção de continuar a negociar com Alexis Tsipras mas tentavam conseguir, fosse uma saída voluntária, fosse a derrubada de seu governo, numa dessas encenações de assembleia que tornam possível um regime parlamentar como o regime grego. O referendum foi também uma tentativa para opor-se a essas manobras. A vitória do "Não" garantiu que, por algum tempo, o governo Tsipras estará protegido contra esse tipo de golpe.
É possível alguma retomada das negociações?
Mas isso não significa, de modo algum, que as negociações sobre a questão da dívida grega, por necessárias que sejam, por justificadas que sejam (como o confirma um relatório do FMI oportunamente publicado, contra todos os esforços do Eurogrupo para impedir a publicação), possam ser retomadas. Todos os economistas que trabalharam nesse dossiê, personalidades ilustres como Paul Krugman e Joseph Stiglitz (prêmio Nobel), especialistas internacionais como James Galbraith ou Thomas Piketty, já vêm explicando, há semanas, que, sem uma restruturação da dívida, acompanhada de anulação de parte significativa da dívida, a Grécia não poderá reencontrar o caminho do crescimento. Lógico seria, pois, dar à Grécia o que foi dado à Alemanha em 1953. Mas é preciso fazê-lo logo, com certeza nas próximas 48 horas, e não implica dizer que as instituições europeias, que se empenharam muito para impedir a publicação do relatório do FMI, o desejem. A declaração de Martin Schulz, presidente do Parlamento europeu, ou a de Sigmar Gabriel, ambos dizendo que as pontas estão rompidas, separadas, nada pressagiam de bom.
A decisão de Yannis Varoufakis de demitir-se do posto de ministro das Finanças foi grande surpresa. Ele, afinal, é um dos grandes vencedores do referendum. Mas é decisão muito lógica. Sua substituição por Euclides Tsakalotos vai mais longe que simples concessão tática feita aos "credores". Foi aliás nesses termos, que Varoufakis apresentou a própria demissão.
Mas o novo ministro pode também significar a chegada de homem mais decidido a um rompimento. Tsakalotos não esconde que se tornou mais um "Eurocético". Bruxelas não soube avaliar corretamente essa evidência, mas Varoufakis sempre foi apaixonado defensor do euro e da ideia europeia. Não é absolutamente o caso de Tsakalotos. É fato que pode ter importantes consequências nos próximos dias.
Com efeito, se o Banco Central Europeu (BCE) não se decidir muito rapidamente a aumentar o teto do acordo de ajuda urgente à liquidez (ELA), a situação se tornará muito rapidamente crítica na Grécia e essas negociações perderão completamente o sentido. Foi precisamente o que Alexis Tsipras disse na noite da vitória do "Não". Talvez seja possível algum acordo, desde que as partes o desejem. Mas, com toda a razão, pode-se duvidar, até pior que isso, das intenções das instituições europeias.
Se, pois, o BCE não aumentar o teto do auxílio emergencial à liquidez, o governo grego não terá mais o que escolher. Terá de pôr em circulação "certificados de pagamento", que serão uma moeda paralela, ou assumir o controle do Banco Central por decreto (o que se chama "requisição" [fr. une réquisition]) e obrigar o banco a pôr em circulação as notas que o banco guarda como reserva e também as que são conservadas pelos bancos comerciais sob autorização do BC. Por mais que a tomada do controle sobre o BC grego seja inteiramente justificada pelo comportamento do BC europeu e do Eurogrupo, nada sugere que seja essa a primeira solução a ser escolhida. Seja como for, essa não era a posição de Yanis Varoufakis. Ainda não se sabe qual será a posição de Euclides Tsakalotos.
Se o governo grego decidir-se pois a emitir certificados de pagamento, acontecerá que rapidamente haverá sistema de duas moedas na Grécia, e pode-se supor que dentro de algumas semanas uma delas desaparecerá. Estaríamos diante do "Grexit", da saída do euro. É importante dizer que essa saída do Euro teria necessariamente e totalmente imputável às instituições europeias, não aos gregos.
Está em curso a saída da Grécia, do Euro?
Deve-se não esquecer que uma saída do Euro não passa necessariamente e obrigatoriamente por decisão clara e bem demarcada. Esse é o ponto que Frances Coppola explica com especial clareza em artigo publicado pela revista Forbes. A saída do euro pode resultar da lógica das circunstâncias e das reações do governo grego ante o jogo duplo, seja do Eurogrupo seja do BCE, que hoje se dedicam a tentar estrangular financeiramente a Grécia.
Mais uma vez é atitude estranhíssima que um banco central como o BCE, legalmente responsável pela estabilidade do sistema bancário nos países da Eurozona, organize o estrangulamento e a falência de bancos nacionais. É fato muito estranho, mas não é fato sem precedentes. Aqui, temos de voltar alguns passos na história trágica do século 20.
Em 1930, na Alemanha, o presidente do Reichbank (o Banco Central da Alemanha), Hjalmar Schacht, opôs-se a um empréstimo dos EUA ao governo da Alemanha de Weimar, provocando pânico bancário. Esse pânico provocou a queda da coalizão então no poder e a demissão do Ministro das Finanças, o socialista Rudolph Hilferding. Tendo conseguido o que queria, Schacht retirou a obstrução. Assim se vê que a ação antidemocrática de um Banco Central tem precedentes. Mas é precedente trágico.
Com a chegada do chanceler Brüning, a Alemanha optou por arrocho [não é 'austeridade': é arrocho] ensandecido que, poucos anos depois, levou ao poder os nazistas. Os nazistas deram ao Reichbank poder como que paralelo ao poder do governo. O termo "Nebenregierung" ou "governo paralelo", entrou então no discurso técnico e histórico, na Alemanha.
É portanto perfeitamente cabível suspeitar que uma eventual saída da Grécia da Eurozona tenha começado depois de uma semana, contada de hoje, de instigação ativa pelo Banco Central Europeu, e pelo peso que tem a Alemanha dentro dos organismos do BCE. Nesse caso, é claro que essa saída é resultado de ação do Eurogrupo e do BCE. Não seria portanto 'saída'. Seria nesse caso uma expulsão - ato ao mesmo tempo escandaloso e ilegal, que legitimaria que as autoridades gregas recorram a medidas as mais radicais.
Nesse ponto, a França poderia ter função de freio, antes da consumação de um crime. Está prevista reunião entre François Hollande e Angela Merkel para o fim da 2a-feira, dia 6/7. Mas, é bom deixar dito desde já que, para que essa reunião resulte em mudança na posição da Alemanha, a França teria de pôr na balança todo seu peso e ameaçar, ela também, deixar a Eurozona, se a Alemanha mantiver suas ações e essa política. Podemos contar com que François Hollande não fará coisa nenhuma, nada.
Apesar das declarações altissonantes por paus mandados, nosso presidente tem muito a ver com o que ele supõe que seja um "golpe franco-alemão". Provavelmente não teve coragem nem para extrair as consequências lógicas do comportamento perigoso e escandaloso da Alemanha. Ao fazer o que faz, e para salvar a própria pele, Hollande levará o euro à desgraça, o que nem chega a ser grave. Mas sem dúvida levará à desgraça também a União Europeia o que, isso sim, é bem mais grave.
O grande medo dos sacerdotes do Euro
Digamos com clareza, que há uma coisa que aterroriza totalmente os responsáveis europeus: que a Grécia se converta em prova viva, demostrada, comprovada, que há vida fora do Euro, e que essa vida pode, sob algumas condições, ser muito melhor do que a vida que vivemos dentro do Euro. Esse é o grande medo deles. É isso que os enche de pânico.
Porque assim se mostraria a todos - aos portugueses, espanhóis, italianos e aos franceses - qual o caminho a seguir. Seria como expor ao mundo a fraude imensa que é o euro, euro que não foi instrumento de crescimento, sequer instrumento de estabilidade para os países que o adotaram, e expõe a natureza tirânica do poder não eleito do Eurogrupo e do Banco Central Europeu.
É portanto possível, pode-se dizer até, provável, que os dirigentes do Eurogrupo e do Banco Central Europeu façam tudo que esteja ao alcance do poder deles para gerar o caos na Grécia. Já começaram esse serviço imundo, desde a semana passada.
Convém pois que o governo grego, sem deixar de negociar com honestidade e firmeza, como faz desde fevereiro de 2015, prepare-se para tomar medidas que assegurem a estabilidade dentro do país e o funcionamento normal da economia e das instituições, ainda que, para tanto, seja obrigado a tomar liberdades com a letra escrita dos tratados.
Talvez seja esse o sentido da saída de Yannis Varoufakis, homem e profissional que deve viver o comportamento da Alemanha e do Eurogrupo como tragédia, e a substituição dele por Euclides Tsakalotos. Afinal, não foi a Grécia que primeiro quebrou tratados, e pode-se considerar que a ação, tanto do Eurogrupo como do BCE já há uma semana, são atos contrários e configuram contravenção, tanto ao espírito como à forma dos tais tratados.
Essa ruptura traz nela o fim da Eurozona. Seja qual for a via política pela qual Alexis Tsipras se decida, já se vê bem claramente que o fim da Eurozona já apareceu no horizonte da atual crise.
6/7/2015, Jacques Sapir, Hypotheses
Mariano Areias Morais · Tropas Para-Quedistas
Força Grécia, já que os portugueses são uns cobardolas.
29/6 9h17 (pelo Twitter)*