Quando Adam Smith escreveu A Riqueza das Nações, obra que dita as bases da economia moderna e os fundamentos do liberalismo económico, dificilmente poderia prever as consequências e completa deturpação dos seus ensinamentos e teorias, dois séculos e meio depois. Afinal, foi o mesmo Adam Smith que escreveu a Teoria dos Sentimentos Morais, obra em que enfatiza a empatia e a compaixão como motivações humanas no que diz respeito aos sentimentos morais. E isto num século em que a utilidade, e não a compaixão, era tida como o grande móbil do ser humano, tendo a microeconomia baseado a sua teoria de comportamento humano na utilidade.
Luís Couto
Regressando à obra A Riqueza das Nações, nesta, Adam Smith procurou provar que a riqueza das nações resultava da actuação de indivíduos que, movidos pelo seu próprio interesse, promoviam o crescimento e desenvolvimento económicos. Seria uma mão invisível o fio condutor que conduziria o interesse individual a convergir com o interesse colectivo, justificando-se assim uma intervenção muito reduzida do Estado na economia. Em resultado, os preços das mercadorias deveriam descer e os salários subir.
No entanto, hoje, e não obstante o progresso tecnológico, observamos uma subida dos preços reais das mercadorias e uma descida dos salários reais - exactamente o oposto do que havia sido preconizado por Adam Smith. É inevitável pensar que algo correu mal no processo...
Um dos pressupostos mais importantes do modelo económico-social de Adam Smith era o mercado de concorrência perfeita, implicando a atomização de vendedores e compradores. Num mercado de concorrência perfeita, nem vendedores, nem compradores teriam capacidade de influenciar os preços, os quais seriam ditados pela conjugação dos interesses de ambos.
No entanto, quando os indivíduos e as empresas prosseguem apenas o seu próprio interesse, procuram atingir uma dimensão e poder incompatíveis com o modelo de concorrência perfeita, o qual não lhes poderia garantir lucros tão elevados.
É neste contexto que as corporações multinacionais surgem como o expoente máximo da concorrência imperfeita, quer através de tentativas tradicionais de domínio de mercado, como o monopólio, oligopólio ou cartéis, quer através de formas bastante mais subtis e usadas com maior frequência nas últimas décadas.
Desde os anos 80, ao mesmo tempo que o processo de globalização se tem acelerado, os lucros corporativos têm crescido a um ritmo que nada o faria prever. Exceptuando o sector financeiro, nos E.U.A., os ganhos não caíram como seria expectável no decorrer de uma profunda recessão, e rapidamente regressaram a níveis bem acima da média. Esta situação desafia a lógica económica: os lucros são elevados e continuam a sua ascensão, nem sempre linear é certo, apesar dos preços dos factores de produção continuarem a aumentar e o crescimento económico ser cada vez mais baixo. Como pode tal ser possível? Teoricamente, lucros grandes atraem mais competidores ao mercado, baixando os ganhos, enquanto que lucros baixos levam à saída de competidores, deixando o campo aberto para maiores lucros das empresas que se mantiveram no mercado. No entanto, tal deixou de se verificar.
É sabido que as corporações multinacionais têm a capacidade de transcender as limitações de qualquer país, aceder a mercados de capitais e atravessar o mundo inteiro na procura de oportunidades de lucro, mas tal não justifica inteiramente a posição privilegiada de tais empresas. Nem todas as contribuições para os seus altos rendimentos são necessariamente visíveis. Na realidade, há factores algo obscuros contribuindo para o fenómeno.
Poderemos questionar-nos se a actual situação de lucros corporativos é sustentável? É essencial, em primeiro lugar, tomar em consideração os factores que levaram aos grandes lucros corporativos nas últimas décadas.
Em primeiro lugar, os défices governamentais elevados. De acordo com a identidade económica segundo a qual as poupanças de uma nação devem igualar as dos sectores público e privado mais os fluxos de e para o estrangeiro, segue-se que um profundo défice de poupança governamental (ou seja, um Estado com despesas menores que as receitas) deve ser compensado pelas poupanças de outro sector. Tendo em conta que o sector privado doméstico tem a corda ao pescoço, mais inclinado para pagar as prestações da casa e com pouca capacidade de aumentar as poupanças, as poupanças que contrabalançam devem vir de outro lado. Ignorando por agora o impacto do exterior, défices governamentais elevados estão a alimentar directamente despesa que está fortalecendo os retornos e lucros corporativos, aumentando as poupanças dos grandes privados. Porque estas poupanças não estão sendo partilhadas de forma mais generosa com o sector doméstico? Os níveis de emprego actuais dos países desenvolvidos são os mais baixos dos últimos quarenta anos.
Nos últimos anos, vários países têm embarcado em programas de austeridade. Supostamente, quando os défices governamentais começam a baixar, os lucros das corporações tendem a descer. No entanto, as corporações contrariam os programas de austeridade nas finanças públicas, através de acções que levam ao contínuo aumento das despesas orçamentais (com o aumento dos juros da dívida pública em primeiro lugar), para poderem manter-se na senda de elevado crescimento das últimas décadas.
Em segundo lugar, o impulso humano para a riqueza e possessões é demais conhecido e tem movido o comportamento de grande parte dos seres humanos de há muitos séculos a esta parte. Desde os anos 70 que se tem observado uma subida explosiva no pagamento dos executivos comparativamente aos salários dos trabalhadores; em segundo lugar, o pagamento dos executivos está cada vez mais ligado ao preço das acções das suas empresas. Os executivos das corporações têm que lidar com uma enorme pressão, por forma a gerirem de acordo com a cotação das acções. Obviamente que a perspectiva de maiores compensações influencia as suas decisões. Algum executivo estaria disposto a tomar decisões e iniciativas que reduziriam o valor das acções do qual depende os seus rendimentos? Desta forma, em vez de gerirem para que as suas empresas sejam mais eficientes, gerem apenas em função do valor das acções, utilizando vários tipos de operações de engenharia financeira. Baixas taxas de juro traduzem-se em custos de empréstimo baixo para companhias grandes e fiáveis em termos creditícios. Com taxas de juro baixas, as corporações podem facilmente aumentar os ganhos por acção comprando acções próprias (não nos esqueçamos que quanto maior a procura, neste caso de acções, maior o valor que estas atingem). A compra de acções próprias tem sido um dos mecanismos de engenharia financeira mais utilizado para promover as compensações dos executivos. Apesar de aumentar o valor das acções das empresas, não aumenta a criação de riqueza por parte desta, muito menos de uma nação; não é, naturalmente, uma prática sustentável de criação de valor.
Por outro lado, muitas das companhias exportadoras das nações com mercados de trabalho de baixo custo são propriedade ou controladas por multinacionais. As corporações multinacionais estiveram envolvidas em pelo menos 50% das exportações chinesas. Este fenómeno aplica-se, em geral, aos países emergentes.
Há também uma forte correlação entre a subida secular dos lucros corporativos e a explosão massiva de lucros residentes nos paraísos fiscais, que escapam portanto à tributação dos Estados.
Finalmente, as grandes corporações multinacionais controlam todos os sectores dos quais depende a criação de riqueza: da indústria à finança, do comércio aos media, ditando desta forma as próprias regras do jogo que obrigam todos a jogarem.
No início do século XXI consegue ter-se já a percepção de que os dois principais sistemas económico-sociais - capitalismo e comunismo - radicam numa concepção errada da natureza humana. O comunismo que - apesar de ter surgido como reacção antagónica ao capitalismo, não dista tanto deste quanto se possa imediatamente pensar -, partiu do pressuposto de igualdade entre os Homens e, consequentemente, de uma igualdade na repartição da riqueza. Mas ignorou deliberadamente que os esforços e capacidades dos seres humanos são diferentes, assim como as suas aspirações. Além disso, o comunismo exige um poder político que se eleva acima do comum dos cidadãos, negando assim a sua própria essência igualitária.
Por seu turno, o capitalismo, desde a sua génese, caiu no erro da ingenuidade no que concerne aos efeitos da cobiça humana, livre de seguir o seu curso, quase sem restrições. A negociação entre interesses antagónicos não conduz necessariamente a um aumento da riqueza das nações e, muito menos, à equidade e justiça na distribuição dos rendimentos gerados. O seu resultado final, como podemos observar, é a pobreza das nações e o enriquecimento das grandes corporações, de forma cada vez mais obscena, em sacrifício do bem comum.
Os grandes impérios caem geralmente por implosão, por corrupção dos princípios pelos quais foram criados. O mesmo acontece com os sistemas, sejam eles económicos ou sociais. Cada vez mais se deixam enfraquecer, até que, incapazes de se defenderem, são substituídos por outro que os ataca. O que se seguirá a este capitalismo a capitular? O que o atacará e substituirá?