A divulgação, por Pequim, no início dessa semana, do mais recente documento das Forças Armadas da República Popular da China, no qual os chineses apresentam uma nova doutrina segundo a qual passam, da defesa de águas territoriais, para a proteção de "águas abertas", fez arrepiar carne e ossos dos excepcionalistas.
Quase simultaneamente, em Guangzhou, o Fórum Stockholm China anual, patrocinado pelo Fundo Marshall Alemão e o Instituto Xangai para Estudos Internacionais, dedicava-se a examinar em profundidade o vasto programa de integração da Eurásia conhecido na China como "Uma Estrada, um Cinturão".
O que também é conhecido como projeto Nova Rota da Seda - conservando todas as conotações românticas de um remix de anos dourados - não trata só de novas rodovias, ferrovias para trens de alta velocidade, oleogasodutos e fibras óticas, mas também de uma rede naval do Leste da Ásia diretamente até o Oriente Médio e a Europa.
Assim a expansão chinesa nos "mares abertos" - do Mar do Sul da China ao Pacífico Ocidental e ao Oceano Índico - teve de ser firmemente atada à proteção da Rota Marítima da Seda.
Ok, vamos viajar
Enquanto a enlouquecedoramente complexa rede "Uma Estrada, Um Cinturão" vai tomando forma, nem uma semana se passa sem a China assinar mais algum contrato para construir fábricas e gasodutos/oleodutos/usinas de energia/cabos de fibras óticas, para acelerar a integração da Eurásia - do Paquistão aos '-stões' da Ásia Central, e incluindo tudo, de rodovia/ferrovia que ligue a China Ocidental ao Mar da Arábia a entrepostos navais na rota para o Chifre da África.
A lógica dos negócios por trás dessa catarata de negócios de infraestrutura é sólida: tudo isso visa a absorver o enorme excesso de capacidade industrial da China. Esse processo mistura-se é claro com a complexa estratégia de Pequim para a energia,cujo mantra principal é o famoso "escapemos de Malacca"; para obter o máximo possível de vias pelas quais petróleo e gás possam navegar sem atravessar águas patrulhadas pelos EUA.
Com Pequim "rumo ao Oeste" - consequência natural de política oficial lançada em1999, mas naquele momento orientada só até Xinjiang -, o país abriu-se cada vez mais para o mundo. Basta ver a quantidade de países de Leste e Oeste que se associaram ao Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII) liderado pelos chineses.
Íntima cooperação entre os BRICS China e Índia será absolutamente chave para o sucesso da integração da Eurásia. Já está acontecendo mediante o Banco dosBRICS - Novo Bando de Desenvolvimento -, que terá base em Xangai e será presidido por um banqueiro indiano. Não por acaso, a Índia também é membro fundador do BAII.
O primeiro presidente do BAII será Jin Liqun, ex-vice ministro das Finanças e ex-vice presidente do Banco Asiático de Desenvolvimento, liderado por Japão e EUA. As reclamações dos suspeitos de sempre, de que o BAII seria clube secreto dos chineses, são perfeita sandice; o Conselho que toma as decisões inclui vários países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Por toda a Eurásia, o BAII se converterá, sem dúvida, em lugar a procurar. Não surpreende que os japoneses, sentindo-se excluídos, tenham sido obrigados a subir a barra: anunciaram que Tóquio vai aplicar siderais $110 bilhões para financiar projetos de infraestrutura em toda a Ásia, até 2020. Pelas cidades da Ásia - de fato, pelas megacidades -, só se fala agora das "guerras pela infraestrutura".
O sonho de conquistar o Oeste
É fascinante recordar a história que intitulei Para o Ocidente, Jovem Han, história da China que expandia seu alcance comercial/de trocas e que, na verdade, começou em 1999. O primeiro estágio de uma onda de fábricas que se transferiram da província de Guangdong, para as províncias do interior. Depois de poucos anos, na área do Triângulo de Guangdong - que é hoje muito mais rica que muitas nações industrializadas - os empresários embarcaram em frenética aceleração tecnológica.Na megalópoles de Shenzhen, de fato as autoridades forçaram empresas não altamente tecnológicas a mudar-se para longe da área central da cidade.
Em termos de portos de contêineres, dos dez maiores portos globais, nada menos que sete estão localizados na China. É indicação clara da muito evidente predominância da China no comércio marítimo.
Em termos de gestão, o plano 12-5 - o 12º plano chinês de cinco anos - expira em2015. Poucos no ocidente sabem, mas foi alcançada uma ampla maioria dos objetivos definidos para as sete áreas de tecnologia nas quais a China queria alcançar a liderança; em alguns casos, os objetivos demarcados foram superados.Esse salto tecnológico explica por que a China pode hoje construir redes de infraestrutura cuja construção antes era considerada quase impossível.
O próximo plano quinquenal deve ser ainda mais ambicioso. Focará, dentre outros itens, o impulso de Pequim para construir uma onda de várias enormes novas cidades, subproduto da reestruturação que a China está promovendo, do seu modelo econômico.
The China Dream, novo livro do professor e general Liu Mingfu - alto analista militar - mostra o Grande Quadro, ao ritmo em que vai ganhando impulso a expansão da infraestrutura chinesa pela Eurásia. Confronto com os EUA é inevitável.
Os problemas que o Pentágono vive de inventar em torno do Mar do Sul da China são só a ponta do iceberg (letal). Como se sabe, Washington inclui o Mar do Sul da China na relação dos lagos norte-americanos.
Li, como outros dos principais analistas chineses, gostam de supor que Washington, algum dia, encontrará algum modus vivendi com a superpotência emergente - e que acabará por ceder a soberania, mais ou menos como o Império Britânico fez aos EUA, no início do século 20.
Nunca acontecerá. No futuro que se pode antever hoje, segundo o "pivoteamento para a Ásia" do próprio governo Obama, anunciado no Pentágono em 2011, será contenção linha-dura. Poderia talvez funcionar, se e somente se a Índia, que é país BRICS, alinhar-se totalmente aos EUA. E isso é muito improvável.
Enquanto isso, Washington continuará a ser afogada por análises paranoicas ("Agressão chinesa é um presente para os EUA"), perpetrada, no caso em tela, por um ex-conselheiro estratégico do alto comando de EUA/OTAN no Afeganistão.
E tem também a tal esfera
O ponto crucial, já absorvido pela ampla maioria do Sul Global, é que a estratégia de "Um Cinturão, Uma Estrada" da China é negócio exclusivamente de comércio/trocas/business de tipo "ganha-ganha". Nada que se assemelhe, nem de longe, ao Império de Bases, à "guerra ao terô" inventada para nunca acabar, "listas de matar" e assaltos para impor "democracia" a bomba, em nações recalcitrantes (quase todas, repúblicas árabes seculares).
O projeto Um Cinturão, Uma Estrada, imensamente ambicioso, associado à Marinha chinesa projetando agora seus interesses nacionais também para os "mares abertos", encaixa-se perfeitamente no Sonho Chinês do presidente Xi Jinping, em termos de plano-máster de negócios. O melhor modo de construir uma sociedade "moderadamente próspera"[3] é construindo internamente infraestrutura moderna, e abrindo-se, externamente, para o mundo.
Mais uma vez, a China estará exportando seu excedente gigantesco de capacidade industrial, continuará a diversificar suas fontes de energia e ampliará sua influência comercial da Ásia Central até a Europa, via Irã, Turquia e Grécia.
A China tem os fundos para resolver o problema mais absolutamente intratável da Índia - a reconstrução da infraestrutura do país, que está arruinada. Num cenário ótimo, temos esses dois países BRICS fazendo negócio após negócio (para construção de infraestrutura), aliados à Rússia, também país BRICS; e ao Irã depois de "reabilitado pelo ocidente". Isso significa ter tudo gravitando em torno da(s) Nova(s) Rota(s) da Seda e envolvendo nada menos que 1/3 da população do planeta. Isso sim é "esfera de influência"!
Tem havido muita conversa em Washington decretando que ninguém pode ter "esfera de influência" - exceto os EUA, é claro. Mas fato é que o impulso econômico, financeiro, diplomático e geopolítico de Pequim para unir a Eurásia tem o máximo que se pode imaginar em matéria de chances de vir a obter uma sua esfera de influência global. Contra esse impulso, a velha tática ocidental de "Divide e Impera" talvez, afinal, não funcione. *****
Mares abertos: Que têm ligação direta com águas oceânicas; p. ex., o Mar das Antilhas e o Mar da China .
"Estratégia Militar da China". Pequim, maio 2015. Gabinete de Informação do Conselho de Estado da República Popular da China (ing. China Daily, 26/5/2015; traduzido em redecastorphoto)
"A meta estratégica nacional da China é completar a construção de uma sociedade moderadamente próspera em todos os sentidos, em 2021, quando o Partido Comunista da China completa o primeiro centenário; e a construção de um país socialista moderno, que seja próspero, forte, democrático, culturalmente avançado e harmonioso em 2019, quando a República Popular da China (RPC) completa seu primeiro centenário" ("Estratégia Militar da China", Gabinete de Informação do Conselho de Estado da República Popular da China, maio 2015, ing. Xinhuanet, traduzido em redecastorphoto) [NTs].
30/5/2015, Pepe Escobar, RT
http://rt.com/op-edge/263257-china-military-doctrine-open-seas/