No centro do tumulto simultâneo que Afeganistão e Paquistão enfrentam simultaneamente está o tabu de todos os tabus: o Pashtunistão. Como se interconectam o sonho de uma terra comum dos pashtuns e a secessão da Crimeia, que se separa d Ucrânia? E o que pensa a China, disso tudo?
Comecemos com o Paquistão. 'Especialistas' norte-americanos da contrainsurgência, guru do general David Petraeus já caído em desgraça, David Kilcullen, insistem que o Paquistão está implodindo. Sem novidade: gente como essa gente é paga para predizer o caos.
Como sempre, a coisa aí é também muito mais nuançada. O primeiro-ministro do Paquistão Nawaz Sharif está de fato tentando impedir que o Paquistão imploda. Por isso quer um acordo com o Talibã no Paquistão, o TTP.
O partido de Sharif, o PML-N, é conservador em termos religiosos e liberal, em termos econômicos. É partido intimamente conectado com os partidos religiosos do Paquistão. Sharif sabe que tem de ser cuidadoso na região do Punjab, por causa da popularidade dos jihadistas anti-xiitas - o grupo Sipah-e-Sahaba.
Um ramo do Sipah - o temido Lashkar-e-Jhangvi - também mata rotineiramente muitos xiitas em Sind e especialmente no Baloquistão. Sharif concluiu que não pode permitir uma aliança entre o TTP (o Talibã Paquistanês, com base nas áreas tribais) e grupos jihadistas ativos no Punjab.
Sharif é também homem de negócios. Ele sabe que o único modo de pôr novamente nos trilhos (como se algum dia tenha estado nos trilhos...) a economia do Paquistão é acabar com a guerra civil. Esse é o arcabouço do argumento por trás do atual 'processo de paz'. É o que Sharif disse aos chineses (aliados chaves) no verão passado, quando visitou Pequim.
Até agora, ainda não foram discutidas as questões realmente espinhosas no processo de paz. O TTP quer a lei da Xaria imposta em todo o Paquistão. Nenhum governo paquistanês jamais aceitará isso.
Inimigos do estado
Os grupos de contato, dos dois lados, são muitíssimo interessantes. No lado do governo está um general aposentado, Muhammad Amir, ex-chefe do conhecido Inter-Services Intelligence (ISI), a CIA paquistanesa. Mas lá está também o grande jornalista Rahimullah Yusufzai, que trabalha em Peshawar, provavelmente a maior autoridade mundial em tudo que tenha a ver com as áreas tribais paquistanesas.
No lado do TTP está ninguém menos que o super mulá Samiul Haq, diretor da 'Harvard Talibã', em Akhora Khattak, próximo de Peshawar, instituição que formou gerações de Talibã (exclusivo para vocês: foi graças a uma carta assinada por Haq que eu e meu fotógrafo escapamos de ser metidos na cadeia pelos Talibã em Ghazni, em 2000, quando 'invadimos' uma base militar abandonada).
O exército paquistanês não gosta, nada, nada, desse 'processo de paz'. Principalmente o ISI, que conservam conexões muito íntimas com muitos grupos jihadistas que colaboram com o ISI em questões estratégicas de Islamabad nas relações com o Afeganistão e/ou a Índia. Nem é preciso dizer que o Talibã Afegão, com Mullah Omar ainda, quase com certeza, em Quetta (e como é possível que nenhum drone de Obama jamais o encontre?) além do grupo Haqqani, no Waziristão Norte, continuam muito próximos do ISI.
E no Punjab outro ninho de terríveis jihadistas - o grupo Lashkar-e-Taiba, autor do atentado à bomba em 2008, em Bombaim - são, pode-se dizer, 'protegidos' pelo exército paquistanês.
Mas o TTP é completamente outro assunto. Diferentes de todos esses outros jihadistas, eles atacaram o estado e o exército paquistaneses cara a cara. É preciso ter colhões. Não surpreende que o exército os veja como inimigos do estado - além de serem manipulados por estrangeiros (adivinhem quem).
O TTP é pântano impenetrável. São pelo menos 30 diferentes grupos, que, todos, juraram fidelidade a Baitullah Mehsud em 2007. Os drones de Obama continuam matando Mehsuds (Baitullah, em 2009; Hakimullah, em 2013), mas o TTP nunca morre. E a família Mehsud permanece no comando.
Eu definiria a família Mehsud como um grupo de guerrilheiros pashtuns com base nas áreas tribais muito próximas do Afeganistão. É guerrilha, sim, contra o estado, que eles veem como um bando de traidores porque colaboram com os norte-americanos desde o 11/9. Alternativamente, também se pode dizer que os EUA, no Paquistão, estão em guerra, na essência, contra uma família - e há mais de uma década.
Agora, as coisas mudaram um pouco. O novo líder dos TTP é Mullah Fazlullah. É original de Swat, e tem base nas áreas tribais de Mohmand e, até, em Kunar e no Nuristão, no Afeganistão (locais ultra linha-dura, ultra-ultra conservadores). Significa que a sua base principal já não está no Waziristão. É caso de perguntar se a gangue dos drones em Nevada, EUA, já sabe disso.
Tem havido muita conversa no Paquistão de que o próprio mulá Omar, em pessoa, teria intervindo, tentando unir as agora disparatadas facções do TTP, para fazer avançar o diálogo com Islamabad. Por quê? Porque, com a OTAN fora do Afeganistão no final de 2014, o que o Talibã no Afeganistão quer é reunir todos os pashtuns dos dois lados da fronteira, e, então, avançar para tomar Kabul - num replay de 1996.
Washington, previsivelmente, tem muito medo de um processo de paz Islamabad-TTP. Com isso, 'Al-Qaeda', o coringa perene, estaria de rédea solta nas áreas tribais, outra vez. Mas, seja como for, parece que ali só restaram uns poucos 'Al-Qaedas'; todo mundo partiu para o Levante.
Mesmo assim, o jogo de longo prazo de Washington é continuar a inventar teorias conspiracionais sem fim no Paquistão - apostando no caos no país para, mais cedo ou mais tarde, tentar passar a mão nas armas atômicas do Paquistão, nos termos em que o ISI vê as coisas. Mas o atual processo de paz foi mais ou menos 'aprovado' por Washington. E a guerra dos drones mais ou menos prossegue. Por enquanto.
Karzai ataca novamente
Mês que vem haverá eleições no Afeganistão. O esperto presidente Hamid Karzai anda ocupado promovendo 'seu' candidato à presidência, Zalmay Rassoul. Indicou o ex-ministro do Interior e presidente da Câmara baixa do Parlamento, Younus Qanooni, candidato à vice-presidência, em substituição ao recentemente falecido Mohammad Fahim.
Qanooni, como Fahim, vem do vale do Panjshir e foi muito próximo do legendário Ahmad Shah Massoud, o "Leão do Panjshir", assassinado pela Al-Qaeda dois dias antes do 11/9. Qanooni opôs-se ao bombardeio pelos EUA em 2001 e jamais baixou o tom das críticas a Karzai.
Karzai joga brilhantemente seu jogo pelo poder, porque reforça suas conexões tadjiques, ao mesmo tempo em que mina a candidatura de Abdullah Abdullah, favorito de Washington. O candidato de Karzai, Rassoul, agora, atrai o apoio de um grupo 'misto', pashtun/tadjique.
A eleição presidencial afegã será decidida no segundo turno. Então, sim, se verá quem os altos comandantes mujahideen - de Ismail Khan em Herat, a Gul Agha Sherzai em Kandahar - estão realmente apoiando. E como Karzai manobrou mais uma vez para obter o que quer.
Do ponto de vista de Washington, Rassoul pode ser aceitável, porque quer assinar o tal muito controverso Acordo sobre o Estado das Forças [orig. Status of Forces Agreement (SOFA)] que permitirá a permanência de tropas 'residuais' dos EUA no Afeganistão.
Ou, pelo menos, Rassoul disse que assinará, depois de subornar todos os senhores-da-guerra relevantes. Rassoul sabe que, se isso acontecer, todos os Talibã saltarão sobre sua garganta, por mais pashtun que ele seja. O mais provável, se for pashtun esperto, é que esteja dizendo uma coisa e pensando em fazer outra.
Assim se vê que há dois processos de paz paralelos em andamento no Paquistão e no Afeganistão. O problema chave é que a 'paz' que se obtenha no Paquistão pode traduzir-se em caos no Afeganistão, porque então o Talibã Afegão estará reforçado pelo Talibã Paquistanês 'liberado' numa ofensiva contra o novo governo em Kabul.
Alguns combatentes do TTP persuadidos pelo exército paquistanês estão agora em segurança estacionados na fronteira - especialmente nas áreas supracitados de Kunar e Nuristão. E ali estarão protegidos pelos serviços de segurança afegãos - como lastimam os paquistaneses.
Que ninguém se engane: a rivalidade Paquistão-Afeganistão permanece extremamente feroz. E nem poderia ser diferente: o Afeganistão jamais reconheceu a Linha Durand, que lhes roubou muitas de suas próprias terras pashtuns. Culpa do Império Britânico, há mais de 100 anos. Essa ainda é a chave para toda essa confusão.
Não há dúvidas de que os pashtuns dos dois lados da fronteira estão prestando imensa atenção à Crimeia. Uma secessão semelhante levaria ao resultado com que sonham a vida inteira - o Pashtunistão. O problema é que teriam de combater ao mesmo tempo contra dois governos centrais - Kabul e Islamabad. E, em termos de representação, os Talibã, dos dois lados da fronteira, com certeza não respondem pela maioria dos pashtuns.
Só queremos fazer dinheiro
A posição da China acrescenta ainda mais tempero a esse cozido. Pequim está focada como um laser na retirada de EUA e OTAN, por bem, do Afeganistão, no final do ano. Será um posto a menos do Império das Bases dos EUA - próximo demais, para o conforto da China, de suas fronteiras.
Pequim quer um Afeganistão que gere lucros. Não parece possível, no futuro que se vê. Em 2008, as empresas Chinese Metallurgical Group e Jiangxi Copper Co. compraram um arrendamento por 30 anos em Mes Aynak - a maior mina de cobre do planeta - na província de Logar, por, nus e crus, $3 bilhões.
Então, os Talibã começaram a atacar a mina. E Pequim começou a olhar para o Afeganistão mais como dor-de-cabeça de segurança, que como fonte de lucros - mesmo tendo entrado numa cooperação de segurança com o governo Karzai.
Fator altamente complicador é que Pequim identificou os atacantes Talibã como originados do Paquistão. Acrescente-se a isso que os uigures andam para lá e para cá com o Paquistão, onde recebem treinamento para 'desestabilizar' Xinjiang, e tem-se um importante problema entre os aliados Pequim e Islamabad. Pequim está intrigada, porque parece que Islamabad nada faz para deter essas infiltrações.
E a coisa fica ainda mais complicada quando já se sabe na região que alguns ativistas uigures têm sido infiltrados/manipulados - por décadas - pela CIA. Assim sendo, se vocês estiver cruzando do norte do Paquistão para Xinjiang, paralelo à estrada Karakoram, há forte probabilidade de você ser espião norte-americano - como Pequim vê as coisas.
Mas ainda não há nada suficiente para provocar ruptura séria entre Pequim e Islamabad. Os dois lados concordam absolutamente com pôr EUA e OTAN para fora do Afeganistão. Os dois lados concordam que não se deve dar voz aos Talibã no novo Afeganistão (para a China, está fora de questão; para o Paquistão, tudo depende de o quanto os Talibã aceitem ceder).
Acima de tudo, os dois absolutamente concordam com construírem-se cada vez mais laços comerciais - com o Paquistão podendo contar com todos os lucros de um corredor comercial que vá do porto Gwadar a Xinjiang. E os dois definitivamente concordam em mais um ponto: se a Crimeia vier a inflar o sonho do Pashtunistão, será/seria um novo jogo; totalmente novo, imensamente imprevisível e 'desestabilizante' novo jogo. ******
21/3/2014, Pepe Escobar, Russia Today
http://rt.com/op-edge/china-Crimeia-pashtunistan-taliban-281/