Uma antiga (e idílica) tradição utópica parece encontrar a reconciliação dos homens consigo mesmos Na natureza selvagem (2008), filme de Sean Penn.
O andarilho se transforma e permanece idêntico a si mesmo
Flávio Ricardo Vassoler
Uma antiga (e idílica) tradição utópica parece encontrar a reconciliação dos homens consigo mesmos Na natureza selvagem (2008), filme dirigido por Sean Penn. Eis a conclusão a que chega Christopher McCandless, jovem promissor e recém-graduado que abre mão de sua carreira para se transformar em Alexander Supertramp, o andarilho que se moverá de leste a oeste dos Estados Unidos para, ao fim e ao cabo, encontrar Utópolis (e seu túmulo) no Alasca.
Romper com o materialismo coisificado do capitalismo tentando encontrar uma pureza natural, um Éden ainda não conspurcado, parece ser a leitura daqueles que não refletem dialeticamente. Como se a busca pelo "exótico", pelo "totalmente outro", não fosse inteiramente mediada pela civilização que asfalta a natureza e a transforma em insumo; como se o materialismo pudesse ser superado fora de suas contradições - como se o sistema mundo do capital permitisse a existência de um "fora". (A não ser que falemos daquilo que já não vale a pena ser explorado.)
Feitas essas ressalvas, gostaria de convidar o leitor e a leitora para refletirmos sobre um matiz outro que o filme de Sean Penn traz à tona: a distância que propicia a reflexão sobre si e o encontro consigo mesmo. (Um eu que, na verdade, já não conseguirá coincidir consigo mesmo durante e após sua jornada.)
Os andarilhos não encontramos apenas o novo e o outro quando cruzamos o Atlântico ou nos embrenhamos pela Cordilheira dos Andes. O distanciamento de nosso epicentro parece cristalizar os conflitos, transformá-los em tipos ideais. Um velho provérbio chinês sentencia que o lugar mais escuro fica justamente embaixo da lâmpada. Mas, ora, a distância não arrefece a luz? Como é possível então que o deslocamento nos ajude a ressignificar a mágoa? Talvez os andarilhos sintamos a efetividade do fluxo das coisas com a locomoção. (O perdão também não significa deixar passar?) Quem muito se enraíza não pode abrir mão. A posse conforma o sentido (e o ressentimento) das relações. Os andarilhos temos mais chances de nos confrontar com um eu-outro na sucessão dos dias - um dia aqui, outro lá, acolá o tempo é nuançado pelo espaço; não à toa o mochileiro se surpreende:
- Será mesmo que só se passaram três meses da minha partida?
A filosofia durante séculos refletiu sobre o par (supostamente) antípoda que envolve o sujeito e o objeto. Como se pudéssemos pensar em entidades que se estruturam fora de relações. A pergunta "como você se chama?" vem sempre a posteriori. Como primeiramente fui chamado começa a me ensinar que o real é relacional. Sujeito-objeto, portanto. Quando olhamos para uma pedra, a pedra também nos confronta. O adjetivo pétreo deriva dessa relação que me traz a dimensão, a rugosidade - e o silêncio. É preciso encontrar a pedra em meio às camadas de mediação da minha experiência. O imediato, portanto, jamais nos apresenta a coisa em si. Os andarilhos temos a possibilidade de expandir a empiria quando reconhecemos, pela multiplicidade das vivências refletidas, que a pedra jamais coincide consigo mesma. A pedra - e os homens.
O adulto é um prolongamento da criança - ou sua mais completa ruptura? A disjuntiva "ou", implicitamente resignada, cinde fossos entre as expectativas do menino e o realismo enregelado do pai de família. Não percebemos que há sempre pontes entre nossas identidades. O homem se transforma e permanece idêntico a si mesmo.
Quem melhor do que o andarilho pode sentir que as mesmas perguntas são postuladas de formas diversas? Apenas o dogmatismo que teme o movimento, a contradição e o movimento da contradição pode considerar que se trata das mesmas questões e das mesmas formas. Apenas a pedra insciente sobre si mesma permanece fiel à própria imutabilidade. É nesse momento que a relação sujeito-objeto nos revela o quanto nós projetamos sobre o mundo - e, reciprocamente, o quanto do mundo nos vai plasmando. Sujeito-objeto, eu-outro. Mundo.
O silêncio aterrador da natureza. O silêncio da insciência. Quando Christopher McCandless Alexander Supertramp começa a projetar sua vida sobre a estepe que o circunda, estamos diante da natureza social do homem. Ao conversar consigo mesmo, ao afagar a memória, os andarilhos descobrimos que, essencialmente, a consciência veda a solidão. No limite, sou um outro para mim mesmo. O pensamento sempre se configura em relação a algo. Sentir-se sozinho, então, é ter dificuldade para dialogar consigo mesmo.
Como é possível que alguém possa entender mais sobre o próprio pai ao estar distante dele? Talvez pelo fato de uma fronteira não ser mero marco arbitrário. Ela nos cinde, ela nos divide, ela nos desafia com o pensamento sobre a mudança - e a permanência. Se a distância persiste, a proximidade não cicatrizou. Eis a reflexão que o distanciamento bem pode discernir - e aceitar. E, aqui, aceitação não quer dizer resignação. Na verdade, a aceitação pode ser um grande mote para a mudança. A percepção das formas efetivas pelas quais as contradições se apresentam nos pode levar, no contraste com a realidade, a novas tentativas de contraposição. É por isso que o andarilho não quer e não pode parar. A sanidade de sua neurose que não se quer cooptada depende da utopia que se move.
Para Tatiana Lima Faria
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Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Todas as segundas-feiras, às 19h, apresenta, ao vivo, oEspaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses - para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z: www.tvgeracaoz.com.br. Periodicamente, atualiza oPortal Heráclito, www.portalheraclito.com.br, e o Subsolo das Memórias,www.subsolodasmemorias.blogspot.com, páginas em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
Na Natureza, os diferentes não simplesmente "se atraem", eles "se completam", e os iguais não "se repelem", eles "se expandem". O mesmo se dá (apesar de algumas aparências contrárias) nas relações humanas.
Na Natureza, os menos nobres não "se sacrificam" para proteger os mais nobres; eles se unem a estes e se tornam igualmente nobres. O mesmo ainda NÃO se dá nas relações humanas, em que os "menos nobres", até o momento, se sacrificam pelos "mais ou menos nobres". (Fernando Soares Campos, Editor-Assaz-Atroz-Chefe.)
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