Sob o influxo da Revolução Industrial, do amadurecimento da sociedade capitalista e das transformações institucionais que acompanharam tais processos, o caráter da Universidade conheceu mudanças de fundo. Assim, a Universidade Moderna vê-se orientada por duas linhas de força bem distintas.
Iraci del Nero da Costa *
Da velha Universidade, guardou a vocação para votar-se, precipuamente, ao saber enquanto tal, o saber pelo saber; da sociedade Moderna incorporou a preocupação com o entorno socioeconômico no qual está imersa e do qual passa, também, a ser expressão; destarte, não lhe são estranhas a dedicação a temas vinculados ao desenvolvimento de novas técnicas e de novos métodos de produção, ou a elaboração de programas destinados à formação de pessoal especializado necessário ao atendimento da demanda posta pelo mercado de trabalho.
Embora a enriqueça e não negue sua essência, pois, em princípio, a Universidade distingue-se pelo mais amplo leque possível de preocupações, a incorporação de temas afetos à vida imediata pode acarretar dúvidas, incertezas e mal-entendidos observáveis tanto no seio da comunidade universitária como no seu relacionamento com os integrantes da sociedade inclusiva. Tais desencontros decorrem, a meu juízo, do fato de ser enfatizada, desmedidamente, uma das facetas de seu caráter dual: alguns a tomando como entidade destinada, exclusivamente, ao desenvolvimento do saber pelo saber; outros pretendendo vê-la como mero apêndice dos interesses gerados pelo mundo dos mercados ou dos negócios privados. Lembre-se, ademais, que de visões não equilibradas concernentes ao papel da Universidade podem decorrer posturas desarrazoadas sobre importantes questões como as que dizem respeito à sua gratuidade ou não, ao seu financiamento, à sua fiscalização e às formas alternativas de acesso ao seu quadro discente.
Como visto, a busca de respostas para as questões aventadas acima passa, a nosso ver, pela consideração do aludido caráter dual assumido pela instituição em foco. De outra parte, deve-se admitir que tais respostas tenham nuances distintas e que não se deve exigir uma solução única para cada problema, pois, a depender da consideração dos diferentes níveis de estudo (graduação, pós-graduação, pesquisa) e das várias situações com as quais se defrontam tanto os alunos como os professores (quais são suas perspectivas e anseios), podem impor-se respostas igualmente diferenciadas para uma mesma questão de fundo. Contemplemos, por exemplo, os objetivos básicos perseguidos por distintos segmentos de nosso corpo discente; note-se que, embora muitos dos raciocínios expendidos abaixo possam ser estendidos a outros tipos de Universidade, nesta crônica pensamos, exclusivamente, nas universidades públicas brasileiras mantidas pelo Estado.
Se nos postarmos junto aos alunos de uma faculdade veremos que eles, em termos genéricos, personificam, por seus anseios, cada uma das duas vertentes identificadas na abertura deste breve escrito. Muitos pretendem formar-se para engajar-se na atividade cotidiana desenvolvida por empresas, pelo Estado ou pelos demais organismos necessitados dos préstimos de engenheiros, médicos, economistas, administradores e outros profissionais liberais; enfim, basicamente, têm em mira uma formação capaz de garantir-lhes o domínio de uma profissão que lhes ofereça rendimentos. Uma parcela menor de nosso alunado faz recair a ênfase de seus interesses na formação acadêmica apta a lhes abrir o caminho para a carreira acadêmica propiciada pela pós-graduação; do ponto de vista profissional buscam os conhecimentos necessários aos pesquisadores mais qualificados e aos que desejam tornar-se docentes universitários. Embora estes dois "tipos ideais" não sejam únicos nem excludentes - muitas pessoas interessadas precipuamente em auferir rendimentos no mercado de trabalho procuram os cursos de pós-graduação com o fito de valorizar sua força de trabalho -, podem eles sugerir respostas às referidas questões de relevância colocadas aos que se ocupam da vida universitária. Se não, vejamos.
Consideremos o conteúdo e a estrutura de nosso currículo correspondente ao curso de graduação. Ora, não parece ser difícil afirmar que, em face do exposto, nossa estrutura curricular deve abranger não só as disciplinas capazes de cobrir os problemas colocados no dia a dia aos profissionais engajados em empresas ou em serviços públicos, mas também tem ela de abarcar disciplinas votadas às questões teóricas de fundo, aptas a fornecer aos estudantes uma visão global dos distintos capítulos que compõem o conhecimento das ciências que cercam sua área de especialização. De outra parte, o conteúdo de cada disciplina também deve obedecer a esta bipartição: de um lado o compromisso com a formação para o enfrentamento das tarefas práticas do dia a dia, por outro, a perspectiva teórica de mais longo alcance acadêmico. Ademais, mesmo nos cursos de pós-graduação, não deve ser relegada ao esquecimento a preocupação com os problemas teoricamente menos sofisticados decorrentes da atividade desenvolvida por profissionais não dedicados exclusivamente à vida acadêmica ou às atividades de pesquisa.
Tomemos agora um tema sempre presente nas discussões sobre a Universidade mantida pelo Estado: deve ela ser paga, ou oferecida graciosamente a todos e em todos os níveis? Ou, em outros termos: em que medida cumpre ao corpo social como um todo contribuir para a formação de pessoas cuja atividade profissional redundará em ganhos cuja apropriação ver-se-á distribuída entre a sociedade como um todo, as empresas ou órgãos que se servirem dos préstimos de tais profissionais e eles mesmos, que obterão rendimentos propiciados por sua formação acadêmica?
Em face da opinião por nós esposada, parece razoável exigir-se pagamento pelos conhecimentos transmitidos nos cursos de extensão universitária, nos da assim chamada pós-graduação lato sensu bem como nos de graduação. Quanto a esta última também se apresenta como plenamente aceitável a ideia de oferecer bolsas integrais à parcela do alunato que se destacar por sua aplicação; digamos, a título ilustrativo, que quinze por cento dos melhores alunos façam jus a tal privilégio, pois, como sabemos, promover e recompensar a excelência são objetivos básicos da Universidade e deles, certamente, colher-se-ão ótimos frutos.
Já os cursos de pós-graduação, em todas suas modalidades stricto sensu (mestrado, doutorado etc.), teriam de ser ministrados gratuitamente; além disso, se exigida dedicação exclusiva, deveriam os alunos receber bolsas capazes de garantir-lhes o sustento. Em face disso, um purista exacerbado poderia arguir: "Sim, mas neste caso estar-se-ia, com certeza, a financiar o grupo de pessoas que demanda o pós-graduação com o fito de se valorizar de sorte a alcançar uma colocação melhor no mercado de trabalho". Ao que se redarguiria: "Sim, essas pessoas aproveitar-se-iam da gratuidade do ensino e de bolsas de sustento, em compensação não só deixariam para o coletivo suas dissertações, teses e pesquisas, mas também viriam a contribuir para o todo social quando, já engajados na vida econômica, viessem a promover melhoras nos serviços públicos ou introduzir inovações técnicas nas atividades produtivas". Enfim, em tudo e por tudo, a pós-graduação merece apoio especial do Estado e da iniciativa privada, a ela devem ser dirigidos, de maneira ampla e liberal, todos os recursos indispensáveis ao desenvolvimento do saber, dos métodos e das técnicas.
Quanto ao controle e avaliação de suas atividades, a Universidade necessita estar protegida de qualquer ingerência externa. Destarte, o controle deve ser exercido pelos mecanismos internos da própria Universidade e por órgãos do Ministério da Educação especialmente constituídos para tanto e integrados por pessoal com formação universitária similar à observada na particular unidade a ser analisada; o mesmo deve ocorrer com o sistema de avaliação das universidades, vale dizer, além de avaliações de caráter genérico como se dá com o assim chamado Provão, sempre úteis e indispensáveis, todas as demais avaliações só terão sentido se forem efetuadas por pares dos professores, pesquisadores e dirigentes envolvidos nas atividades e decisões a serem avaliadas. Já no que tange ao aconselhamento e à crítica, deve a Universidade abrir-se amplamente à sociedade na qual está inserida; neste sentido, sempre serão bem-vindos os órgãos formais e informais aptos a transmitir ao corpo universitário os anseios, necessidades, opiniões críticas e indicações do corpo social que a alberga. De resto, a licitude quanto ao uso dos recursos captados diretamente pela Universidade, ou a ela dirigidos pelo Estado ou por particulares, deve ser aferida pelos órgãos governamentais e fiscalizadores do Estado, pelas organizações que a financiam, bem como pelas instituições de caráter público ou privado interessadas em tal tipo de fiscalização.
Lembremos, aqui, ser a busca e a transmissão do saber função primacial da Universidade; esta vocação universal, com a qual se confunde o privilegiamento da excelência, faz com que a Universidade não possa sofrer, com respeito a seus métodos, metas e linhas de pesquisa, desde que legais, a menor restrição ou qualificação; tem ela, pois, de estar resguardada, em termos absolutos, de qualquer limitação ou ingerência externa, seja do Estado, seja de quaisquer outros elementos estranhos à vida universitária.
Tenha-se presente, por fim, que o estabelecimento de cotas de ingresso - por mais generosa que possa parecer a política de cotas para minorias - fere frontalmente a posição acima explicitada, pois representa uma limitação indevida e inaceitável ao próprio espírito da Universidade. Igualmente condenável mostra-se a medida adotada pelo Ministério da Educação segundo a qual compram-se, mediante isenção fiscal, vagas ociosas existentes em escolas particulares, vagas essas a serem destinadas a segmentos sociais desprivilegiados. Batizada com o título demagógico de "Universidade para Todos", tal medida, além de representar desvio de recursos públicos em favor de interesses privados, implica, por fugir ao critério da competência, abastardar a própria ideia de Universidade. Por seu turno, a recente aprovação de lei que garante uma larga cota de cinquenta por cento nas universidades e nas escolas técnicas federais para estudantes egressos do ensino médio público representa mais um golpe perverso no espírito que deveria prevalecer quanto ao tratamento emprestado às Universidades; lei esta sancionada, com um veto inexpressivo, pela presidente da República.
*Professor livre-docente aposentado da Universidade de São Paulo.
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