Iraci del Nero da Costa *
Como sabido, o desenvolvimento do capitalismo na Europa Ocidental acarretou o estabelecimento de um sistema socioeconômico planetário composto por sub-sistemas cujas características ficam realçadas quando atentamos, concomitantemente, para o processo de generalização da produção de mercadorias e para as formas mediante as quais tal produção se processava.
Assim, o que dá unidade ao período pós-feudal - dos séculos XIII, XIV em diante, digamos - é o processo de universalização da criação/produção de mercadorias. Num primeiro instante deu-se, sob a égide do capital comercial e do capital usurário, a generalização da criação de mercadorias no processo de circulação; num segundo momento, ocorreu, já com base na transformação da própria força de trabalho em mercadoria, a generalização da produção de mercadorias dirigida aos mercados internos e/ou ao mercado mundial.
Ademais, além da forma de produção típica do capital industrial, várias outras - sob o influxo do próprio capitalismo nascente que posteriormente as subsumiria - definiram-se em distintas partes do globo.
A produção colonial calcada no capital escravista-mercantil representou uma das formas de se produzir mercadorias em larga escala para os mercados mundiais; outra forma, baseada no trabalho servil e/ou na exploração dos servos mediante a imposição de tributos de variado tipo, ter-se-ia observado no Leste Europeu; no Oriente pode ter ocorrido uma transformação acelerada de estoques, de há muito acumulados como valores de uso, e de excedentes provenientes do artesanato e da agricultura em mercadorias destinadas, sobretudo, às trocas com a Europa Ocidental cuja expansão ganhou rapidez e dimensão maior a partir de meados do século XIV; na África, a par de outros bens de exportação, "produzia-se" a mercadoria mão de obra escrava. Enfim, as disponibilidades locais de recursos e fatores, aliadas às condições econômicas, demográficas, políticas, institucionais e ideológicas, propiciaram a emergência de distintas formas de produção em larga escala de mercadorias para os mercados internos e/ou externos.
Se as proposições acima colocadas estiverem corretas tem-se de reconhecer, na consideração da gênese e desenvolvimento do mundo moderno, o papel preeminente desempenhado pelo alargamento do comércio, o qual, no caso da Europa Ocidental, enraíza-se na sociedade feudal e contribuiu decisivamente para a superação do feudalismo e para a emergência do capitalismo o qual, por seu turno, desde seu nascedouro atuou como poderoso impulsor do comércio, vindo mesmo, rapidamente, a subsumir tanto o capital comercial como o usurário. Posto, pois, o capitalismo, passa ele a subordinar, condicionar e determinar tudo o mais; como afirmei em outro texto, a partir de então persiste, apenas, o modo de produção capitalista.
Em suma, observou-se, em escala planetária, um processo genérico - produção de mercadorias para os mercados internos e externos - que, embora tenha vindo a se subordinar ao capital industrial, conheceu, basicamente em decorrência de circunstâncias tópicas concretas, distintas formas mediante as quais, paralelamente à que se distingue como própria do capitalismo, se efetuava a aludida produção.
Essas formas paralelas não decorreram da lógica de funcionamento do capital industrial, não dimanaram de sua essência e não se impuseram, portanto, como necessárias, mas apresentaram-se, tão somente, como soluções datadas, concretamente dadas, por meio das quais se deu a incorporação/subordinação, aos interesses do capitalismo que se instalava na Europa Ocidental, dos espaços econômicos e geográficos passíveis de ocupação. No correr do tempo viram-se elas, pois, descartadas, pois mostraram-se, desde sempre - como anotado por Marx -, incompatíveis com o desenvolvimento do capitalismo e, por consequência, com a relação de assalariamento que lhe é peculiar.
Como se observa, não estamos em face da proliferação de novos modos de produção, mas sim, diante de um processo de enquadramento de todo o planeta pelo capital industrial e pelo capitalismo que, definitivamente, haviam-se assenhoreado da Europa Ocidental, processo esse que, eventualmente - como no caso do Brasil -, estendeu-se por vários séculos.
As novas áreas escravistas - como as do Novo Mundo, por exemplo - dependiam, para sua re-produção, como anotado por Marx, das economias centrais; além disso, caso tais vínculos não existissem, essas sociedades situadas na periferia do sistema assumiriam uma feição muito distinta da que apresentavam: "La esclavitud de los negros - una esclavitud puramente industrial -, que desaparece sin más y es incompatible con el desarrolo de la sociedad burguesa, presupone la existencia de tal sociedad: si junto a esa esclavitud no existieran otros estados libres con trabajo asalariado, todas las condiciones sociales en los estados esclavistas asumirían formas precivilizadas" (grifos de MARX, C. Grundrisse, México D.F., Siglo Veintiuno, vol. 1, 1980, p. 159).
Ademais, se as economias estabelecidas perifericamente não gozavam de autonomia plena, é forçoso reconhecer, de outra parte, que não se definiam como simples apêndices ou projeções das economias e sociedades centrais. Nesse sentido gozavam de autonomia relativa. Assim, à medida que nelas se desenvolveram empreendimentos visando a suprir, ainda que parcialmente, o mercado interno, ocorreu a diversificação dos processos de acumulação cuja dinâmica já não aparecia como mero reflexo imediato das condições imperantes externamente, mas atendia, crescentemente aos movimentos gerados internamente.
Neste quadro de dependência e autonomia relativas, diversifica-se a produção e desenvolvem-se as populações dessas áreas, incluídos aí os expressivos contingentes de livres despossuídos. Nesse pano de fundo, além disso, estruturam-se os mercados regionais e dá-se a emergência de interesses políticos e econômicos específicos. No correr do tempo ganham vida, pois, os elementos constitutivos das nações que devem sua origem ao rompimento do antigo sistema colonial. Nações estas nas quais, sem a necessidade da ocorrência de processos similares às revoluções burguesas clássicas (como a Inglesa e a Francesa), e de maneira variada, dar-se-ão, ainda no século XIX, duas mudanças correlatas: a transição do trabalho escravo para o assalariado e a transformação do capital escravista-mercantil em industrial.
Aliás, em todos os quadrantes esta segunda metade do século XIX marca-se por profundas mudanças promovidas pelos interesses do capital: a África é fatiada e uma nova era colonial tem início, a Índia passa ao controle direto da Coroa, a China vê-se obrigada a crescentes concessões aos britânicos que são secundados pela Alemanha, França, EUA, Rússia e Japão, este último é obrigado a abrir-se ao comércio com o Ocidente e procura modernizar-se. A América Latina, de resto, também vê-se presa do Imperialismo e do capital financeiro. Ao abrir-se o século XX, inconteste, o capitalismo domina sobranceiro sendo verrumado, tão somente, por suas próprias contradições.
Aí ficam, pois, esboçados em termos taquigráficos alguns processos históricos dos quais se ocupam, entre outras, as disciplinas dedicadas à história econômica geral e as votadas à formação econômica e social do Brasil. Ao elaborarmos tal súmula procuramos colocar segundo encadeamento cronológico e lógico algumas teses e ideias controversas, para elas e para a necessidade de discuti-las com vagar chamamos, pois, a atenção do leitor. Vejamo-las enumeradas.
A contar dos séculos XIII, XIV a história econômica da humanidade viu-se norteada pelo (1) desenvolvimento do comércio e das formas mercadoria, dinheiro e capital. Em decorrência do alargamento comercial (2) definiram-se varias formas de se produzir para os mercados locais e externos, incluindo-se aí o escravismo "industrial", ou seja, produtor de mais-valia, o qual, (3) sob a égide do capital escravista-mercantil possibilitou a integração do Novo Mundo na economia europeia e mundial. (4) Nestas áreas não se definiram novos modos de produção, pois elas conheceram um longo período de transição que culminou - (5) dado o próprio amadurecimento da sociedade burguesa em escala local e mundial - com a superação, (6) sem a necessidade de "revoluções burguesas", do escravismo. Tais áreas periféricas mostraram-se (7) estritamente dependentes das economias centrais sem a existência das quais não poderiam reproduzir-se; não obstante, (8) elas conheceram uma autonomia relativa na medida em que nelas se desenvolveram atividades econômicas voltadas para seus mercados internos; (9) assim, nem eram totalmente autônomas, nem se comportaram como meros apêndices das economias e sociedades centrais. Impõem-se, assim, duas conclusões maiores: (10) a história econômica deve considerar o estudo da gênese e amadurecimento do capitalismo como um todo orgânico do qual faz parte a emergência de áreas periféricas como as situadas no Novo Mundo, incluindo-se aí, obviamente, o estudo da formação econômica e social do Brasil; ademais, na medida em que na periferia não se estabeleceram novos modos de produção, (11) seu estudo tem de se pautar pela compreensão dos processos históricos concretos mediante os quais tais áreas foram incorporadas à economia mundial.
* Professor Livre-docente aposentado da Universidade de São Paulo.