Vitor Augusto Faria Pereira[i]
A política brasileira sempre teve como forte característica a interferência direta dos militares. Talvez o êxito na destituição da monarquia realizada pelo Exército brasileiro em 15 de novembro de 1889, seja a gênese do gosto dos militares pela prática política.
A campanha eleitoral de 1909-1910 foi o maior embate, até então, entre a sociedade civil e os militares no cenário político nacional. A campanha passou para a história pela disputa da “Pena”, alusão à erudição do candidato Rui Barbosa, contra a “Espada”, referência anedótica à figura do candidato Marechal Hermes da Fonseca. Embora o movimento civilista tenha constituído uma forte corrente política da época, saiu vitoriosa a “Espada” e Hermes da Fonseca foi eleito Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil.
Durante a Era Vargas (1930-1945) o número de militares com o ímpeto político só fez crescer, tanto pela necessidade do governo em ter o apoio da casta militar para manutenção da ditadura varguista, quanto pelo ingresso do país na 2ª Guerra Mundial, que ampliou o prestígio e eminência das Forças Armadas em meio à sociedade civil da época. Também no período varguista surgiu a União Democrática Nacional, partido político conservador e antidemocrático que alçou de vez o oficialato militar na política.
A UDN surgiu no período denominado Estado Novo (1937-1945), tornando-se o principal partido político de oposição ao varguismo. Com o apoio dos Coronéis do Exercito brasileiro, os mesmos que atuariam no Golpe de 1964 já sob a patente de General, a UDN foi a principal articuladora da deposição, em 1945, de Getúlio Vargas (1982-1945). Já em 1950, com a volta de Getúlio ao palácio do Catete, “nos braços do povo”, agora eleito pelo voto popular, a UDN travou uma batalha acirrada contra o governo, principalmente em oposição às políticas trabalhistas e nacionalistas do novo modelo de governança à centro-esquerda implementado pelo renovado ex-ditador.
O ápice do conflito entre Governo e oposição se deu após todo o empasse político que constituiu a campanha governista denominada “O petróleo é nosso”, que cominou com a criação da Petrobrás em 1953. A polarização política cresceu ao ponto de em 1954 indivíduos armados tentarem assassinar o principal líder da UDN, Carlos Lacerda (1914-1977), fato que entrou para a história como o “Atentado da Rua Tonelero”. As conjecturas acerca da participação do então Presidente Getúlio Vargas no atentado, que resultou na morte de um Major da Aeronáutica que fazia a proteção de Lacerda (prova da proximidade entre o partido golpista e as Forças Armadas), contribuíram para a saída de Getúlio da vida para entrar na história, uma vez que, o entrave entre Forças Armadas e Governo gerado pela morte do militar só teve fim com o tiro que o Presidente disparou no próprio peito.
Para não dizer que não falamos das flores e fazer jus ao espírito bravio dos militares legalistas que já honraram as Forças Armadas do Brasil, precisamos recobrar a memória do Marechal Henrique Teixeira Lott (1894-1984) que ao colocar tropas e blindados nas ruas do Rio de Janeiro, no Golpe Preventivo de 11 de novembro de 1955, foi fundamental para garantir a posse do Presidente eleito Juscelino Kubitschek (1902-1976) e retardar o golpe empresarial-militar, que se concretizaria nove anos depois, em 31 de março de 1964.
Dando um salto na história, evitando pisar na lama fétida da ditadura empresarial-militar que assolou o país, chegamos à chamada “redemocratização”. Mesmo com a entrega do poder Executivo nacional pelos militares em 1985, após 21 anos de ditadura presidida por Generais, a sociedade civil não logrou êxito em promover o retorno total dos militares para os quarteis. Nem os vultosos privilégios garantidos para as carreiras militares, chancelados na nova Constituição Federal, foram capazes de garantir o contento do braço forte e da mão amiga em ater-se apenas às suas competências constitucionais.
O ordenamento jurídico nacional, mesmo após a redemocratização, manteve uma série de institutos normativos ainda em vigência advindos dos anos de ingerência militar na política. Os exemplos do Código Penal Militar aprovado em 1970 e do Parágrafo único do art.286 do Código Penal (civil), incluído pela Lei 14.197/21, que prevê uma pena de detenção para quem “incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade.” são nítidas mostras dessa influência. A própria entrega de governo pelos militares só foi possível com um acordo de anistia, positivado pela Lei n.º 6.683/79, que garantiu impunidade para todos os militares criminosos que torturaram, abusaram sexualmente e mataram professores, jornalistas e militantes políticos entre 1961 e 1979.
Há ainda reflexos da atuação política da casta militar no país na própria letra da Constituição Federal de 1988, a dita “Constituição Cidadã”. Nota-se a ambiguidade do caput do art. 142 da CF ao determinar as atribuições constitucionais das Forças Armadas como “defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”. Ou seja, o que seria, objetivamente, uma “ameaça” para pátria? E de qual “ordem” o artigo se refere? Para Carl Schmitt, constitucionalista alemão do séc.XX, cabe ao Soberano decidir sobre o que seria uma ameaça, assim como o que seria ordem para o Estado. Sob este vislumbre, a problemática está posta: quem seria o Soberano brasileiro?
É imperioso enfatizar que subjetividades como “defesa da Pátria” e da “ordem”, em qualquer outra nação do mundo, a qual as Forças Armadas nacionais figuram como mero instrumento de Estado, não constituiriam grandes problemas. Porém, no Brasil, onde o inimigo escolhido pelo “Soberano” schmittiano de plantão sempre foi apontado dentre uma parcela do seu próprio povo, estas subjetividades foram historicamente usadas como justificativa pelos militares brasileiros para destituir regimes, derrubar governos democraticamente eleitos pelo voto popular e perseguir indivíduos com atitude crítica. Portanto, tolerar ambiguidades em textos normativos, principalmente nos que regulam as Forças Armadas em um sistema fundado no juspositivismo, é um ato de insanidade frente a nossa história política.
A história demonstra que, em regra, surgirão momentos de reacomodação de forças políticas os quais a instituição militar se posicionará como sempre o fez. Assim como, invariavelmente, também surgirão tentativas de legitimar a ingerência militar por setores da classe dirigente, históricos beneficiários do ímpeto patriarcal das Forças Armadas brasileiras e das ambiguidades do nosso ordenamento jurídico. A exemplo do professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie Ives Gandra Martins, que é o responsável pela interpretação extensiva (para nos atermos a termos técnicos para adjetivar seus devaneios) que buscou fundamentar uma suposta legitimidade das Forças Armadas, supostamente garantida pelo já citado art. 142 da Constituição Federal, para atuar como uma espécie de “Poder Moderador”.
Neste ponto é necessário dissipar os delírios e recobrarmos a realidade dos fatos, reafirmando o indubitável, ou seja, não há fundamento constitucional legitimador de uma ingerência de militares na política. Em tempos dúbios, o qual se faz necessário à defesa do óbvio, temos que deixar as verdades sobre a mesa.
Infelizmente, a Polícia Federal encontrou um porão repleto de esqueletos deixados pelos militares que habitaram o entorno do então Presidente da República eleito em 2018. Desta vez, diferente dos esqueletos humanos deixados pelos governos militares dos anos 1960 e 1970, os que agora foram encontrados narram uma história trágico-cômica. Trágica para o povo e cômica para as manchetes de jornal que narram as peripécias dos militares no poder. Desde negociação de vacinas mediante propina e milhões de reais gastos na compra de estimulante sexual, até o apoio tático a um golpe de estado brancaleônico e vendas de joias, esculturas e relógios pertencentes ao acervo público realizadas por um General que ostenta 4 estrelas em sua gandola.
Diferente da imprensa nacional que visa atribuir a profanação da imagem do Exército brasileiro à família Bolsonaro, a história demonstra que a corrupção do estamento militar nacional faz parte de sua trajetória. Uma breve e superficial analise histórica, como a feita por este artigo, por exemplo, é o suficiente para constatar que a caterva que governou o país no último quadriênio não foi a responsável pela corrupção dos oficiais do exército brasileiro, pelo simples fato desta caterva ser fruto da instituição militar. Portanto, a sociedade civil precisa saber aproveitar a oportunidade para estabelecer os parâmetros objetivos de atuação das Forças Armadas no país.
Desta forma, passado o frenesi provocado pela sucessão presidencial de 1 de janeiro de 2023 e com a divulgação dos primeiros desdobramentos das operações da Policia Federal acerca dos supostos crimes cometidos por vários dos 6 mil militares que ocuparam cargos no governo de Jair Messias Bolsonaro, algumas questões surgem ao horizonte: Será que enfim, após abastada demonstração de decadência moral e inépcia operacional, conseguiremos realocar nossos eminentes militares de uma vez por todas na caserna? Será o campo progressista, que se autoproclamou baluarte da “real democracia”, o responsável por reformar a estrutura de formação dos oficiais brasileiros? Inaptidão e degeneração moral são constatações de menor relevância frente ao perigo real representado por militares que se enxergam como tutores da República.
[i] Acadêmico de Direto na Faculdade Maringá; membro e secretário do Grupo de Pesquisa Constitucionalismo, Desenvolvimento e Autoritarismo no Brasil; e-mail: vitaugusto23@gmail.com.