O Estado Paralelo do Ministério Público Brasileiro

"Saímos de uma ditadura militar para a ditadura do Ministério Público"

(Arthur Lira, então presidente da Câmara dos Deputados)

O Ministério Público (MP) é, constitucionalmente, uma instituição destinada a defender os direitos do cidadão perante desvios do Estado.

Porém, seguindo a regra brasileira tal instituição, contra a qual poucos ousam falar, é marcada pela distância abismal entre papel e prática, servindo a fins, em muitos casos, exatamente inversos - e nada pode ser mais nocivo, visto que "não existe organização criminosa mais bem-sucedida, que a que conta com apoio estatal", como aponta Misha Glenny no livro McMáfia - Crime sem Fronteiras.

 

Observa Talitha Braz Bernardino no livro Abuso de Poder na Atuação do Ministério Público, que "o órgão tem procedido de forma discrepante nos últimos anos, tomando a cena do cenário jurídico e das manchetes de jornais. Mas esse destaque não está pautado necessariamente nas benfeitorias que tem feito, mas nos excessos que tem cometido".

 

E acrescenta criticamente a autora, mestra em Direito do Estado pela USP: "Criou-se e divulgou-se a ideia, muito impulsionada pela mídia, de que o Ministério Público é o guardião da pátria e tutor da sociedade, como um órgão incorruptível e distante das paixões humanas".

 

Em seu livro, a jurista paulista aponta a total ausência de prestação de contas de promotores de justiça, apresentando ainda as causas para a tendência ao abuso de poder, não raro, por parte dos membros do MP brasileiro. Uma dessas causas, segundo a autora, ligadas também - e principalmente - a este Estado paralelo, completamente blindado em que se transformou a instituição.


Segundo as letras mortas da nossa Constituição, a função essencial do Ministério Público é "a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis" (leia Enciclopédia Jurídica da PUCSP, estudo Ministério Público: Tomo Processo Penal, Edição 1 de agosto de 2020, por Eloisa de Sousa Arruda: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/443/edicao-1/ministerio-publico#=_=).

 

Interesses individuais indisponíveis "são aqueles que os indivíduos não podem dispor, isto é, são tão relevantes para a dignidade da pessoa humana que ninguém pode dispensar, como o direito à vida, por exemplo. É um direito que não depende da vontade do indivíduo, a ele é inerente" (Conselho Nacional do Ministério Público em Direito à Informação: O Papel do Ministério Público e a Importância do Controle Social).

A seguir, definição teórica da atuação do Ministério Público pelo jurista Cláudio Barros Silva, procurador de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul, ex-presidente da Associação do Ministério Público, ex-procurador-Geral de Justiça no RS e membro do Conselho Nacional do Ministério Público, na análise intitulada Abusos e Omissões do Ministério Público e de Seus Membros publicada na Revista do Ministério Público do RS de janeiro a abril de 2010, observando a instituição, entre outros pontos críticos, como "condutora e tutora de interesses" (página 40):

 

"O Ministério Público, como Instituição do Estado, essencial ao funcionamento do sistema de justiça, deve atender satisfatoriamente, com os seus serviços, aos mais elementares interesses da sociedade e dos cidadãos, que, necessariamente, devem ser os atores e protagonistas sociais.

"Não foi, portanto, concebido para exercer, puramente, função judicial, mas para exercer, pela via que eleger, através do exercício de suas funções, a sua grave missão constitucional. (...)

"O Ministério Público é uma Instituição permanente, não está subordinada a qualquer Poder do Estado, exercendo funções de fiscalização sobre os próprios Poderes do Estado, e essencial à realização dos direitos fundamentais e sociais. (...)

"O sistema constitucional brasileiro reservou à Instituição a defesa do interesse público, este compreendido como interesse no Estado enquanto povo, deixando de lado a defesa do interesse do Estado enquanto Poder. (...)

"Como autêntico defensor do interesse público do Estado, visto enquanto povo, o Ministério Público não poderá se afastar do seu dever ético-jurídico de estar na permanente luta pela realização dos mais elementares e transcendentais valores da sociedade. (...)

"O Ministério Público jamais será parte, no processo, igual à parte contrária, mesmo que no lado oposto esteja o próprio Estado, entendido como Poder, ou outra Instituição pública com o dever de defender interesses de cidadãos que comprovem a insuficiência de recursos. (...)

"Os membros do Ministério Público têm que ver realçado o seu dever ético-funcional em relação aos cidadãos e à sociedade."


Temos no Brasil um Ministério "Público", em geral, oposto a isso tudo cuja imagem, diante da sociedade é, crescentemente, de uma instituição fortemente elitista, verticalizada, obscura e que, herança dos tempos coloniais e da ditadura militar, até mesmo amedronta o cidadão: muito mais próxima da atuação penal, da função judicial que de fiscalizador do Estado, das leis e das garantias de igualdade de direitos dos cidadãos ao acesso a serviços públicos, e à própria Justiça. Pesquisas de opinião pública revelam que o órgão cai, ano a ano, vertiginosamente em descrédito entre os brasileiros.

 

Em Ministério Público: Independência Funcional Impede Política Institucional?, a docente da Fundação Getúlio Vargas Marianna Sampaio observa em análise publicada em 2021 no sítio da Scielo, que poucos autores dedicam-se à análise política do MP. "Isso talvez revele quanto as instituições do sistema de justiça brasileiro são herméticas e pouco transparentes, dificultando a realização de estudos a seu respeito", pondera Marianna.

A pesquisadora também questiona o excessivo poder do MP, e o que a instituição faz com este poder:
 

"Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, o MP passou a dispor não apenas de autonomia, mas também de instrumentos de ação, discricionariedade e amplas atribuições (titular da ação penal pública, fiscalizador de políticos, defensor de direitos individuais, difusos e coletivos), elementos que não são comuns em instituições com poucos mecanismos de accountability. Trata-se de um quadro institucional que, sob o pretexto da efetividade dos direitos constitucionais dos cidadãos, possibilita a judicialização de conflitos predominantemente metaindividuais e com capacidade de influenciar a vida de um número imenso de pessoas, mas que não prevê nenhum tipo de controle sobre o MP: a despeito de seu destaque em diversas dimensões da vida social e política brasileira, o MP não presta contas de sua atuação.

 

"Isso ocorre porque, apesar de existir uma fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do MP pelo Legislativo, realizada principalmente pelos Tribunais de Contas, ela não se estende às atividades próprias dos promotores e procuradores. O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), criado no âmbito da reforma do Poder Judiciário em 2004, não atua como um órgão de controle externo. Ao contrário disso, o desenho institucional do CNMP, formado em sua maioria por representantes de promotores e procuradores, presta-se a fortalecer a independência do MP, não funcionando como um indutor de accountability. Tampouco há o estabelecimento de diretrizes quanto ao que um promotor ou procurador deve ou não fiscalizar ou processar, por exemplo.

 

"É justamente na combinação entre o alto grau de autonomia e discricionariedade com a escassez (ou ausência) de instrumentos de accountability que reside a particularidade do MP destacada pela literatura. Trata-se de um modelo de promotores independentes incomum a democracias, baseado mais no 'acaso' do que em regras e incentivos institucionais formais típicos da relação entre atores eleitos e não eleitos do Estado."

 

Sobre isto, o jornal O Estado de S. Paulo publicou artigo em setembro de 2017, em que dizia:

 

"Sério problema institucional trazido pela Constituição de 1988 foi o tratamento dado ao Ministério Público, contemplado com uma autonomia que, a rigor, é incompatível com a ordem democrática. Num Estado democrático de direito não deve existir poder sem controle, interno e externo. Não há poder absoluto. Explicitamente, a Constituição de 1988 não confere poderes absolutos ao Ministério Público, mas, da forma como ele está organizado, sem hierarquia funcional, cada membro da instituição torna-se a própria instituição."

 

Vale ressaltar que os membros do MP são, teoricamente, supervisionados pelas Corregedorias. Denúncias de desvios e abusos por parte de membros do MP são tratadas por estas, bem conhecidas, a nível nacional, pelo excessivo corporativismo. Um grande problema reside nisto: corregedores são ex-membros dos MPs, eleitos através de votação secreta por membros dos MPs a quem vão, em tese, supervisionar.

Dentro desta realidade nada democrática, Marianna Sampaio não deixa de apontar o que denomina "judicialização ou negação da política" pelo MP:
 

"Diante de uma sociedade civil tida como incapaz, certo padrão de atuação dos membros do MP pode ser entendido como mais um exemplo do fenômeno da judicialização ou da negação da política, caracterizado pela crescente substituição da política partidária pela tecnicização (jurídica e/ou burocrática) de vários assuntos nas democracias ou, na definição de Casagrande, 'a transposição para o Judiciário de uma parcela dos poderes decisórios típicos do Legislativo e do Executivo'."


Refletem perfeitamente o espírito de boa parte da instituição hoje, as palavras recentemente vazadas de Deltan Dallagnol, procurador do Ministério Público Federal de Curitiba em vexatório diálogo, por WhatsApp, com membros da Lava Jato, outra criminosa operação, a mais recente delas que nada mas foi que guerra jurídica (lawfare), uma guerra particular às custas do Estado: "Faz tempo que não tenho vergonha na cara [para burlar as leis] kkkk".

 

Sobre o caráter autoritário que o MP vem se transformando, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), apontou no mesmo sentido de Marianna Sampaio, em debate em março de 2021 passado com o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, realizado pela TV ConJur:
 

Saímos de uma ditadura militar para a ditadura do Ministério Público. Precisamos rever isso urgentemente, para que o MP continue cumprindo seu papel constitucional de defesa do cidadão, da sociedade.


Naquela mesma época, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu um densamente crítico relatório de 203 páginas sobre o Brasil, baseado em profunda pesquisa da entidade no País por mais de um ano. Com particular destaque negativo ao sistema de "Justiça" brasileiro:
 

"A CIDH destacou o alto grau de impunidade dos casos de violência institucional: em sua maioria, o sistema de justiça não avançou nas investigações, condenações e reparações às vítimas. De fato, a impunidade que hoje cerca os casos de violência institucional pode ser comparada à observada em relação aos crimes ocorridos durante a ditadura civil-militar no Brasil, a despeito de outras diferenças. Nesse sentido, a CIDH reconheceu o progresso alcançado por diferentes comissões da verdade em nível estadual e federal em relação aos casos de tortura e desaparecimento forçado. No entanto, ressaltou que a impunidade continua cercando a maioria desses casos.

 

"A CIDH também observou o aumento das ameaças às vidas de jornalistas e trabalhadores da mídia por parte das autoridades, situação que se agravou desde as eleições nacionais de 2018. Isso tem prejudicado pessoas com orientações sexuais, identidades e/ou expressões de gênero diversas, ou características sexuais, que experimentaram um aumento nos crimes de ódio contra eles."

 

Exatamente o Ministério "Público" é um dos atores pateticamente estrelando no Brasil como instrumento de opressão remontando tempos da ditadura militar de péssima memória, servindo hoje como sólida base de apoio para a roubalheira indiscriminada das classes dominantes. Entre os agentes principais na consolidação do Estado brasileiro autoritário, velho sonegador de direitos e explorador do cidadão que vive bem longe de ser fim de um Estado de direito, funcionando como mero meio para que o Estado permanente (tradução livre de deep State) mantenha os privilégios da ínfima minoria, usurpadora do poder.

Garantes de que, neste patético Estado de "democracia representativa", não seja nada mais que mera retórica o artigo constitucional que diz que o poder reside no povo. Garantes de que direitos até mesmo fundamentais sejam privilégios de poucos.

Afinal, como diz o astuto provérbio das classes dominantes, "aos amigos, tudo; aos indiferentes, a lei; aos inimigos, todo o rigor da lei". Nada mais verdadeiramente prático no Brasil "democrático" de hoje.


Como disse certa vez o jurista Fábio Konder Comparato: "Nossa Constituição é uma brilhante fachada, por trás da qual se abre um enorme terreno baldio".

Julgam-se onipotentes, tutores da sociedade e até da política a ponto de pretender sempre dizer o que é certo e necessário ao cidadão, ao invés de assisti-lo na garantia dos direitos sobretudo quando conflitam com o Todo-Poderoso Estado brasileiro. Tutelando o cidadão, acaba mesmo limitando-o (intencionalmente, pro-elites?) no acesso a direitos. Parceiros do Estado putrefato em nome do Público. Para isso mesmo, assim como está, designado pelos donos da "democracia representativa", travestido de Público.

 

Neste sentido, pontua Talitha Braz Bernardino (ibidem):

 

"Comumente ouvimos reclamações de políticos, juízes, procuradores públicos, advogados, ministros do Supremo Tribunal Federal e particulares descontentes com o modo que a instituição tem se comportado e conduzido determinadas situações. Não raras vezes, o Ministério Público age incompativelmente com as diretrizes de sua função, intervindo de forma indevida, descabida e desarrazoada nos vários aspectos da sociedade. Percebe-se o seu anseio de controlar os meios políticos, jurídicos, econômicos e privados, extrapolando o bom senso, o ordenamento jurídico e as suas competências. Além disso, criou-se e divulgou-se a ideia, muito impulsionada pela mídia, de que o Ministério Público é o guardião da pátria e tutor da sociedade, como um órgão incorruptível e distante das paixões humanas. Todas essas causas contribuíram para acobertar a atuação abusiva da instituição, uma vez que maquiam os seus atos com a falsa aparência de legitimidade. O órgão sacrifica normas postas e direitos fundamentais assegurados, para alcançar e perseguir seus objetivos, com abuso de poder."


O procurador de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul observou, no já mencionado artigo: "A Instituição está ao largo das discussões e recebe, para fazer cumprir, cada vez mais legislações extremamente permissivas, inadequadas e distantes dos anseios da sociedade".

Fechados em seu mundinho das letras e na arte vigarista de como manipulá-las melhor, especialistas em violar as leis por excelência somente conhecem a arrogante linguagem do poder absoluto, e da ganância. O Público, precária fachada.

Cláudio Barros Silva, outra voz no deserto brasileiro entre tantas denunciando a situação do sistema de "Justiça" do País, anteviu em seu estudo de 11 anos atrás, para onde estava indo o Ministério Público:
 

"A omissão institucional estará em destaque público permanente e exporá o futuro do Ministério Público, caso a Instituição e seus membros não assumam, com a clareza devida, as suas mais destacadas funções constitucionais (...)


"A Instituição será omissa se priorizar velhas praxes e a burocracia em detrimento às expectativas e aos anseios sociais.

"O Ministério Público contemporâneo, que planeje o seu futuro, deve ser ágil e estar ao lado do interesse social. O eventual erro da escolha do momento oportuno, ou da decisão necessária de avançar neste sentido, irá carimbar o Ministério Público como mais uma das tantas Instituições desacreditadas pela sociedade que compõem o Estado brasileiro."

País sem Ministério Público essencialmente comprometido com cidadania e democracia, só pode ser o que o Brasil é hoje. Este tipo de Ministério que contém Público apenas no nome, só poderia ter transformado o Brasil em motivo de chacota mundo afora, condenado pelos mais diversos órgãos por direitos humanos em todo o mundo. País onde ex-ditadores militares vivem impunemente sendo até, em muitos casos, atores estrelando na vida política do País, dando ordens e ocupando cargos, diante dos quais inclusive o senhor Luiz Inácio pede a benção.

Edu Montesanti

 

 


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