A primeira das oportunidades perdidas para que tivéssemos, nós brasileiros, o país soberano e cidadão ocorreu em 1823, com a prisão e exílio, por seis anos, de José Bonifácio de Andrada e Silva, Patriarca da Independência.
Bonifácio foi cientista, mineralogista, tendo, em vida, reconhecimento internacional. Descobriu, entre quatro minerais, a petalita, que permitiria a descoberta do elemento lítio, e a andradita, batizada em sua homenagem. Foi político, militar, alcançou as patentes de tenente-coronel e de comandante, acadêmico e escritor.
Dele recebemos os Projetos para o Brasil, onde propunha a libertação dos escravos, a constituição de civilização miscigenada, justiça tributária e planos de desenvolvimento agrário, industrial e reformas sociais.
“A sociedade civil tem por base primeira a justiça, e por fim principal a felicidade dos homens; mas que justiça tem um homem para roubar a liberdade de outro homem, e o que é pior, dos filhos deste homem, e dos filhos destes filhos?” (José Bonifácio de Andrada e Silva, “Projetos para o Brasil”, Companhia das Letras, SP, 1998).
Hoje, em pleno século XXI, o Brasil ainda está devendo muito aos projetos de José Bonifácio. Exceto em episódicos momentos, não se constituiu aqui nação soberana e cidadã.
Com a Independência, as elites brasileiras buscaram maiores fatias de poder e benefícios, usufruídos até então pela aristocracia portuguesa. Assim, o objetivo das elites locais no Brasil, fossem estas brasileiras ou portuguesas, brancas ou miscigenadas, foi construir o sistema onde elas exercessem o poder político, até então privativo da aristocracia portuguesa.
Observando o modelo federativo implantado há menos de 50 anos nas antigas colônias europeias, predominantemente inglesas, da América do Norte, não se verificou se haveria adequação à realidade brasileira. Talvez apenas a palavra federação fosse importante para manter nas províncias a relativa autonomia que gozavam.
No entanto, para os Estados Unidos da América (EUA), a federação foi a solução encontrada para unir colonos de origem inglesa, alemã, escocesa, holandesa e irlandesa, que formavam núcleos colonizadores onde estavam as “treze colônias”. Havendo ainda africanos, espanhóis, franceses e descendentes. Juntar todas estas etnias, com diferenças e até antagonismos históricos, só mantendo o máximo de autonomia, que a federação garantia. Estes núcleos colonizadores tinham origens e tempos distintos de criação de suas identidades. A Virgínia desde 1624, a mais antiga, e a Geórgia desde 1732, ou seja, espaçados até por mais de século e meio da Independência.
O Império tinha um poder central, na pessoa do Imperador, mas sua eficácia ficava na dependência de apoios, para o que se constituíram duas Casas, a Câmara dos Deputados e a Câmara dos Senadores, formadoras da Assembleia Geral, conforme dispunha a Constituição do Império do Brasil, de 1824. Os mesmos objetivos uniam liberais e conservadores, donde a expressão, comum à época, que ironizava: nada mais conservador do que um liberal no poder e, contrariamente, nada mais liberal do que um conservador na oposição.
Todos viam somente os interesses específicos de suas famílias e propriedades. E como o acréscimo da maldição, o trabalho era desmoralizado, era amesquinhado pelo sistema escravista.
A escravidão negra ganhou ainda maior opróbrio por trazer com ela o comércio de pessoas como objetos, sem qualquer consideração por se tratarem de seres humanos. É o anátema que ainda hoje nos persegue e não nos permite usufruir a imensa riqueza brasileira, em todas as dimensões materiais, para gozo dos brasileiros, daqueles aqui nascidos.
Fomos e continuamos a ser exportadores de bens primários e importadores de bens processados, adequados ao consumo. Em outras palavras, eterna colônia.
Mas esta colônia passou por várias mãos, sem que pudesse, ao menos, escolher seu cafetão. Somos tomados pelo gigolô mais poderoso do momento.
Uma pausa na história das desgraças pátrias para um dos períodos de autonomia, o primeiro.
A situação do Império Brasileiro consolidou a sujeição ao Império Inglês. A este respeito, e porque trará consequências futuras, cabe transcrever Miguel Bodea (“A Greve Geral de 1917 e as Origens do Trabalhismo Gaúcho”, editora ProArte e L&PM Editores, Porto Alegre, s/data):
“A partir do final do século XIX surge um parque industrial mais diversificado no Rio Grande do Sul. De acordo com o Censo de 1907, o Rio Grande era a terceira unidade da Federação em termos de produto industrial, responsável por 15% da produção manufatureira do país, contra 16% gerados em São Paulo e 33% no Distrito Federal”.
“É digno de nota também que o Estado possuía então a mais alta porcentagem nacional de firmas industriais de propriedade individual, o maior número de bancos controlados por capitais nacionais e o maior índice de investimentos norte-americanos, no resto do país ainda predominava o capital britânico”.
Há uma questão colonizadora que perpassa nossa história e que denominamos pedagogia colonial. Que nos desculpem os pedagogos, mas é um modo de incutir, no consciente e no inconsciente de todos, ideias, princípios, raciocínios que justificam as mais atrozes decisões e feitos colonizadores, ao tempo que recriminam e degradam ações libertadoras e soberanistas, se vierem de políticos ou dirigentes nacionalistas, abolicionistas, humanistas e trabalhistas.
Ainda na análise do Rio Grande do Sul (RGS), em 14/07/1891, foi aprovada a Constituição Política do Estado, denominada castilhista. Nesta mesma sessão Júlio Prates de Castilhos foi, por unanimidade, eleito Presidente do Estado.
Constituição e dirigente rotulados de autoritaristas, atenuante para despótico, ditatorial. O que defendiam? A eleição direta dos chefes do Executivo federal, estadual e municipal; o voto livre e público; a liberdade de pensamento e de expressão, de reunião e de associação; o ensino primário leigo e gratuito.
O Rio Grande do Sul não fez revolução socialista. Apenas, ainda no século XIX, realizou a revolução burguesa no Brasil. Transcrevemos, do doutor, pesquisador e professor Luiz Roberto Pecoits Targa (“Gaúchos e Paulistas na Construção do Brasil Moderno”, Mottironi Editore, Torres, 2020):
“Entende-se, neste contexto por Estado oligárquico, um Estado agrário e tributário, cuja elite dirigente emerge das classes dominantes tradicionais (grandes comerciantes e grandes proprietários de terras) e cujo monopólio do poder político serve exclusivamente para o enriquecimento dos membros de sua própria classe social”.
“Com efeito, nesse tipo de Estado, confunde-se a coisa privada com a coisa pública. No caso brasileiro, tanto no período monárquico quanto na da Primeira República, a oligarquia tradicional (parte numericamente mais significativa da oligarquia dominante) possui suas raízes enterradas nas localidades rurais”.
O Brasil Colônia tem início com a chegada de Tomé de Souza, em 29 de março de 1549, para assumir o governo geral na cidade baiana Salvador. Formalmente, assim fomos até 16 de dezembro de 1815, quando Dom João VI, não podendo governar um reino de uma colônia, nos renomeou Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. No entanto, desde 1549 até 1889, o ensino no Brasil foi privado, entregue a ordem religiosa católica.
Unindo à condição privada da ocupação do Brasil até 1549, e a influência colonizadora das capitanias hereditárias que persistiram até 1821 – à medida que elas iam fracassando, voltavam às mãos da Coroa Portuguesa e eram redimensionadas, gerando novas estruturas de administração – o governo geral tratava, única e efetivamente de manter a defesa da costa brasileira de ocupação de outras nações europeias, a ordem interna para evitar sublevação, qualquer tipo de agitação popular, e garantir as receitas do poder colonizador, do Império Português.
Pode-se assim afirmar que o Brasil foi uma colônia, com gestão privada, até 1930. Porém o mundo mudara bastante, com surgimento e desaparecimento de Estados, com revoluções industriais, científicas e sociais, com o despertar de novas ideologias e mudanças de curso do pensamento ocidental nestes 430 anos. O ideal neoliberal daqueles cinco séculos passava à necessidade do Estado atuante, ainda que sempre o fora, apenas representativo da nação cujo espaço administrava, e não de ínfima parcela aristocrática. E, para as novas nações, a produção e distribuição de bens exigia um povo que fosse produtor de bens e, também, os consumisse, garantindo a evolução tecnológica e as pesquisas científicas, como anteviu José Bonifácio.
Foi no Rio Grande do Sul onde surgiriam as lideranças para transformação do Brasil. Lideranças nem sempre afinadas nos métodos, processos e estruturas de administração, apenas unidas pelo desejo de construir o país soberano. Nestas lideranças havia presença militar e importantes lideranças civis, capazes de traduzir na administração do Brasil, o interesse popular, ganharam a confiança e o voto dos brasileiros.
Em incompleta relação, estes brasileiros foram Getúlio Vargas, João Goulart, Leonel Brizola, Artur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel.
Outros vieram da própria capital, o Município Neutro, depois Distrito Federal e Rio de Janeiro, e de estados nordestinos. Porém a efetiva independência, a soberania brasileira foi e continuaria sendo até hoje combatida.
A corrupção, sempre focada em governos nacionalistas pelas elites antinacionais, jamais as atinge. É muito significativo o resultado da intervenção no BANERJ, realizada pelo Banco Central, como relata, no “Tijolaço” de 12 de agosto de 1990, Leonel Brizola:
“Foram apontados nominalmente como responsáveis pelas montanhas de falcatruas, os senhores: Octávio Gouveia de Bulhões, José Luiz de Magalhães Lins, Israel Klabin, e seus vice-presidentes e diretores do Banerj, como Matheus Schnaider e Miguel Pires Gonçalves, este há mais de oito anos, diretor da Globo”.
“Todos tiveram seus bens bloqueados. E, aí, a troika Sarney-Marinho-Moreira Franco se deu conta que o tiro saíra pela culatra. Queriam nos atingir, mas acabaram colocando a sua própria gente em maus lençóis. Conceberam, então, uma incrível e despudorada armação, distribuindo entre si as “tarefas”. Roberto Marinho ficou encarregado da panfletagem, através de seu império da comunicação, e das pressões sobre juízes e promotores, criando um ambiente público para que toda a patranha parecesse uma ação moralizadora. A parte de Sarney foi a de mandar arquivar o inquérito inconveniente do Banco Central, e assim “liberar” os seus amigos. A Moreira e seus rábulas, finalmente, couberam organizar o cenário para toda a armação. E procurou logo, para dar foro de verdade a tudo, nomear um desembargador aposentado para a presidência de uma nova Comissão de Inquérito. E, ao mesmo tempo, tomou a inconcebível decisão de dividir a investigação em duas partes: antes de meu Governo, tudo deveria ser engavetado; a partir daí, o máximo rigor, sem que faltassem referências expressas de que tudo deveria ser feito no sentido de atingir ao Leonel Brizola” (“Tijolaços 2 1987-1991”, PDT, Fundação Leonel Brizola-Alberto Pasqualini, Centro de Memória Trabalhista, RJ, Brasília, 2022).
Qualquer semelhança com o Caso Banestado, a Operação Lava Jato, o senador Sergio Moro, militares no poder e a mídia digital não será simples coincidência.
O Rio Grande do Sul deixou de ser celeiro político nacionalista, nenhum estado se candidatou a substituí-lo. Em nome de inexistente federação, a fragmentação territorial do poder no Brasil fez surgir os coronéis de terras, as famílias proprietárias por gerações, e, atualmente, os políticos grupados no “Centrão”, grupo da alienação nacional em todos os sentidos, dos bens, tecnologias, propriedades e da alma brasileira.
Para isso se deu a invasão das religiões neopentecostais e das comunicações virtuais. Ou seja, atuando no misticismo religioso, mais do que na fé e conhecimento do pensamento transcendente, e submetendo as informações para o povo às mais avançadas tecnologias, que foram obstadas de desenvolvimento nacional por todos os governos a partir de João Figueiredo, o Brasil retroage à década de 1920, com sério risco de voltar, não mais a ser Reino Unido, mas o Governo Geral dos capitais financeiros apátridas e marginais.
Onde buscar o desenvolvimento, a soberania, a cidadania brasileira?
Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado, Presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás – AEPET.