Edmilson Costa
O Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi fundado em março de 1922, uma data simbólica para o povo brasileiro porque em 1922 se comemorava o centenário da independência do Brasil, emergia a Semana da Arte Moderna e ocorria o primeiro levante tenentista, episódios marcantes na história do País. Mas acima de tudo a formação do PCB naquele ano foi resultado das lutas populares que surgiram a partir da revolução soviética de 1917, ano em que foi realizada a primeira greve geral no País, e que prosseguiram ao longo da década de 20. Essas lutas eram lideradas pelos anarquistas e também tinham influência do sindicalismo reformista, duas tendências históricas que dirigiam o movimento operário no Brasil. Vale lembrar ainda que nesse período o Brasil tinha uma economia agrário-exportadora, baseada principalmente nas exportações de café, com uma industrialização incipiente, baseada em pequenas fábricas e oficinas e, consequentemente, um proletariado ainda em formação.
No entanto, essas duas correntes do movimento operário já não atendiam as demandas estratégicas do proletariado. O reformismo se limitava apenas às reivindicações economicistas e, portanto, não tinha nenhum projeto estratégico além de conseguir uma face mais humana e civilizada para o sistema capitalista, enquanto o anarquismo, apesar de suas palavras de ordem aparentemente radicais, não buscava organizar o proletariado num partido político para a conquista do poder. Foi nessa conjuntura que lideranças anarquistas e grupos comunistas de vários Estados, decidiram formar o Partido Comunista Brasileiro (PCB).[1] A maior parte desses fundadores eram militantes oriundos do movimento anarquista com experiência nas lutas populares do País e que, influenciados pela tomada do poder pelos operários e camponeses na Rússia, decidiram aderir ao comunismo, muito embora ainda não possuíssem uma formação marxista desenvolvida.
Com a criação do PCB o movimento operário brasileiro deu um salto organizativo e alcançou um novo patamar, uma vez que os comunistas, mesmo ainda com um entendimento confuso da realidade brasileira, se propunham a forjar uma organização que buscava representar o proletariado enquanto vanguarda política e, ao mesmo tempo, disputar o poder político com a burguesia. A partir da experiência dos bolcheviques e dos partidos comunistas mais organizados na América Latina, o PCB vai aos pouco aumentando sua influência no movimento sindical e popular, enquanto anarquistas e reformistas vão perdendo apoio junto aos trabalhadores, tanto que na segunda metade da década de 20 os comunistas já hegemonizavam as organizações operárias e populares e a representação política dos trabalhadores. A partir daí, então, viria a dirigir o movimento operário brasileiro nas principais lutas que foram realizadas ao longo de várias décadas e se transformar na principal organização comunista do País.
Olhando retrospectivamente, pode-se dizer que a trajetória desses 100 Anos do Partido Comunista Brasileiro é uma das mais ricas do movimento revolucionário porque, ao longo desse século de existência, o PCB sempre esteve incondicionalmente lutando com os trabalhadores, trabalhadoras e a juventude pela revolução brasileira e pelo socialismo. Mesmo atuando a maior parte dessa trajetória na clandestinidade,[2] o PCB produziu os maiores heróis populares do século XX e conseguiu influir em praticamente todos os setores da vida social e política do Brasil, quer no campo da literatura, da ciência, das artes, da cultura e até mesmo do futebol. No campo social teve influência decisiva nas principais conquistas dos trabalhadores brasileiros, tanto que certa vez um poeta escreveu corretamente que quem contar a história do Brasil e das lutas de seu povo e não falar do PCB estará mentindo.
Vale destacar ainda que essa trajetória foi realizada com imenso sacrifício e também com grande heroísmo por parte da militância, pois a burguesia e o imperialismo buscaram permanentemente punir severamente os comunistas pela ousadia de lutar pela construção de uma sociedade socialista no Brasil. Milhares de militantes foram presos, torturados ou mortos ao longo desse período, tanto em épocas ditatoriais quanto em governos de democracia formal. Na última ditadura (1964-1985), milhares de militantes foram presos e torturados e um terço do Comitê Central foi assassinado na tortura, sendo que até hoje seus corpos continuam desaparecidos. Como organização politica que buscava disputar o poder no País, o PCB também experimentou diversas formas de luta, desde a via armada em Trombas e Formoso (GO) e Porecatu (PR), passando pela organização de sindicatos, federações e entidades nacionais dos trabalhadores como o CGT (Comando Geral dos Trabalhadores) até históricas greves nacionais, bem como participou da construção da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), da UNE (União Nacional dos Estudantes) e também esteve presente na luta parlamentar em vários momentos da história. Pode-se dizer que a trajetória do PCB é parte do processo civilizatório brasileiro.
Para compreendermos a trajetória de luta dos comunistas brasileiros, é importante sumariarmos sinteticamente os principais momentos dessa longa história. Na década de 20 a sociedade brasileira estava em efervescência e a velha oligarquia que dirigia o País vivia uma profunda crise. Em 1922 ocorreu o primeiro levante dos tenentes, conhecido como os 18 do Forte, reprimido brutalmente pelo governo. Em 1924 os jovens oficiais voltam novamente a se rebelar contra o governo, com uma insurreição em São Paulo e levantes em outros Estados. Posteriormente, parte desses oficiais, liderados por Luís Carlos Prestes, formou a Coluna Prestes, um movimento guerrilheiro que viria abalar as estruturas da Velha República, ao lutar invicto ao longo mais de 25 mil quilômetros pelo interior do País contra as tropas do governo e depois se exilar na Bolívia.[3]
Mais organizado nacionalmente, porém já na clandestinidade, o PCB lançou em 1927 o Bloco Operário como parte da política de frente única orientada pela Internacional Comunista. Posteriormente, o Bloco Operário se transformaria em Bloco Operário e Camponês (BOC). Com essa iniciativa, o PCB buscava uma fachada legal para participar do processo eleitoral e divulgava um programa que incluía, entre outros pontos, a luta pelas liberdades democráticas, o combate à oligarquia e ao imperialismo, defesa dos interesses dos trabalhadores, anistia aos presos políticos e combate à carestia. Nas eleições de 1928, o PCB elegeu seus primeiros parlamentares para a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, então capital federal, Minervino de Oliveira e Octavio Brandão. Ainda em 1927 o PCB também fundou a Juventude Comunista, como parte do esforço para enraizamento entre a juventude brasileira.
No final da década de 20, ocorreria a grande crise mundial do capitalismo, a grande depressão, que viria atingir profundamente a economia brasileira. O colapso da economia mundial reduziu a demanda por importações, levando à queda dos preços dos produtos agrícolas no mercado internacional. Como o Brasil era dependente das exportações do café a economia entrou em crise, com a falência de milhares de empresas e um enorme desemprego. Consequentemente, a crise abalou os alicerces da oligarquia e abriu espaço para as mudanças que viriam a ocorrer em 1930. Em meio a essa conjuntura foi realizada as eleições para a presidência da República, com a oligarquia agora dividida em função da crise. O setor ligado à oligarquia cafeeira de São Paulo lançou Júlio Prestes, enquanto a facção dissidente da oligarquia teve como candidato Getúlio Vargas, pela chamada Aliança Liberal, com apoio do movimento tenentista. O Bloco Operário Camponês lançou Minervino de Oliveira, um operário comunista, marmoreiro e negro. Tratou-se da primeira candidatura proletária do País, inteiramente atípica aos padrões da época onde a disputa era feita geralmente entre brancos e ricos.
Essas eleições marcaram uma mudança de qualidade na história brasileira porque, ao contrário de todas as evidências, quando as urnas foram abertas, o candidato das oligarquias cafeeiras se tornara vitorioso, quando todos apontavam Getúlio Vargas como franco favorito. A candidatura do PCB não obteve muitos votos, mas teve uma importância fundamental, pois marcou pela primeira vez a disputa presidencial com a presença de um operário. Como o resultado da eleição foi escandaloso, imediatamente as forças da Aliança Liberal denunciaram a fraude eleitoral e os tenentes encontraram justificativa para preparar o levante militar contra o governo.[4] Iniciada a revolta militar em outubro de 1930, uma semana depois as tropas governamentais estavam completamente derrotadas e o Brasil entrava numa nova etapa de seu desenvolvimento econômico, no que ficou conhecido como a revolução de 1930, a partir da qual se iniciou a industrialização do País, os trabalhadores conquistaram vários direitos, mas o novo governo passou a enquadrar com mão de ferro o movimento sindical e reprimiu o sindicalismo autônomo.[5] O PCB se recusou a participar do governo com o entendimento de que aquele movimento significava apenas um conflito entre as frações da burguesia.
Os anos 30 foram de grande turbulência social e política tanto do ponto de vista nacional quanto internacional. Internacionalmente, verificou-se uma ascensão do fascismo e do nazismo na Europa. No Brasil surgiu a Ação Integralista brasileira, a versão do fascismo nacional. Com as contradições do governo Vargas, o movimento tenentista começou a se desagregar: uma parte permaneceu no governo, outra passou a compor os partidos de direita e outra se alinhou com a esquerda. Mesmo na ilegalidade, o PCB continuou o processo de inserção do proletariado e organizou greves em várias regiões do País, ao mesmo tempo em que buscou combater o fascismo emergente no Brasil, cujo episódio marcante foi a expulsão dos integralistas da Praça da Sé, episódio que ficou conhecido como a revoada dos galinhas verdes, quando uma frente de esquerda, liderada pelos comunistas, pôs para correr os militantes da Ação Integralista Brasileira que buscavam realizar uma manifestação naquele local.[6] Logo depois o governo editou a Lei de Segurança Nacional, com o objetivo de punir tudo que considerasse contra a ordem política e social, um eufemismo para reprimir greves e manifestações dos comunistas.
Nesse período (março de 1935) o PCB, os tenentes de esquerda, além de personalidades progressistas e lideranças do movimento popular lançaram no Rio de Janeiro a Aliança Nacional Libertadora (ANL) e elegeram como presidente de honra Luís Carlos Prestes, que já tinha se incorporado ao Partido e se encontrava clandestino no País. A Aliança tinha um programa de caráter progressista, nacionalista e antimperialista e, em poucos meses, a organização ganhou enorme apoio popular, realizando comícios com milhares de pessoas em várias regiões do País e incorporando em suas fileiras centenas de milhares de filiados.[7] Em junho de 1935 a aliança lançou um manifesto conclamando a derrubada de Vargas e a tomada do poder por um governo popular, nacionalista e revolucionário.[8]
A resposta de Vargas foi colocar a ANL na ilegalidade, ainda em julho, e desencadear a repressão contra seus dirigentes e militantes. Diante das novas condições impostas pelo governo, o Partido decidiu preparar a insurreição contra Vargas. Surpreendendo o comando do movimento e antecipando-se ao projeto de insurreição a partir do Rio de Janeiro, em 24 de novembro começou o levante no Rio Grande do Norte. Rapidamente os aliancistas, sob o comando do cabo Giocondo Dias, tomaram o poder e instauraram um governo popular revolucionário durante quatro dias, onde um sapateiro foi ministro do Abastecimento. No dia 27 de novembro seguiram-se rebeliões no Recife e no Rio de Janeiro, esta última com maior repercussão, com confrontos violentos e vários mortos e feridos. No entanto, todas as rebeliões foram dominadas pelas forças da ordem e o governo desencadeou uma brutal repressão contra aliancistas e comunistas, resultando em milhares de prisões, inclusive de vários dirigentes da Internacional Comunista, entre os quais Olga Benário, esposa de Prestes, que viera ao Brasil apoiar a insurreição.[9] Dois anos depois, Vargas decretou o Estado Novo, que aumentava ainda mais a repressão contra as forças progressistas, ao mesmo tempo em que flertava com os regimes fascistas da Europa.
A emergência da Segunda Guerra Mundial, em 1939, vai produzir mudanças significativas na política externa do governo Vargas. Mesmo vacilando entre os países do eixo nazifascista e os países ocidentais, Vargas é obrigado a deixar de lado suas simpatias pelo Eixo e aderir ao Ocidente em troca de vantagens econômicas, tanto que em 1941 tropas norte-americanas já estão estacionadas no Nordeste. No ano seguinte o governo rompeu com os países do Eixo e assinou um pacto político-militar secreto com os Estados Unidos. Mas a virada do governo Vargas ocorreu irreversivelmente ainda em 1942 quando submarinos alemães afundaram cinco navios mercantes brasileiros. Sob pressão de manifestações populares, o governo declarou guerra à Alemanha. Mesmo com parte de sua militância na cadeia, o Partido realizou, em 1943, a Conferência da Mantiqueira com os militantes que não estavam presos e iniciou uma campanha de massas para a formação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) para lutar contra o nazifascismo. O PCB orientou seus militantes a se apresentarem como voluntários e vários deles foram lutar contra o nazifascismo na Europa, muitos dos quais voltaram condecorados por bravura no campo de batalha.
O final da Segunda Guerra Mundial também representou o fim do governo Vargas. Em um clima já bastante diferente do período ditatorial, especialmente em função da vitória dos aliados e do papel decisivo da União Soviética na derrota do nazismo, o PCB iniciou uma campanha pela anistia aos presos políticos e pela convocação de uma Assembleia Constituinte. Vargas foi obrigado a decretar a anistia e convocar a Constituinte, mas foi derrubado pelos militares em outubro de 1945. A partir daí são convocadas eleições para presidente e para a Assembleia Nacional Constituinte. O PCB lançou o engenheiro Yedo Fiuza à presidência e obteve cerca de 10% dos votos, com expressiva votação nas grandes cidades. Na eleição para a Constituinte, que reunia Câmara Federal e Senado, o Partido elegeu expressiva bancada: um senador, Luís Carlos Prestes, e 14 deputados federais, uma bancada coesa e combativa que marcou os trabalhos constituintes com a defesa dos direitos dos trabalhadores, o direito de greve a liberdade de culto religioso, entre outros.
Mas a lua de mel do PCB com a democracia brasileira duraria pouco, em função do pavor das elites com o comunismo, pelo reacionarismo e entreguismo do governo Dutra e, especialmente, pelo clima de guerra fria que se instalara nos países ligados aos Estados Unidos. Nos dois anos de legalidade, em função do prestígio de Prestes e da União Soviética, o PCB aumentou extraordinariamente suas fileiras, passando a contar com 200 mil membros. Nas eleições para governador, deputados estaduais e prefeitos, em 1947, o PCB ampliou sua votação nas grandes cidades, particularmente no Rio de Janeiro (18 em 50 vereadores, elegendo o presidente da Câmara, o médico Campos da Paz), Santo André, Santos, Jaboatão e em dezenas de outras cidades. Nas Assembleias Legislativas elegeu deputados estaduais em 12 Estados. Diante dos êxitos dos comunistas nas eleições, em 1947, o Supremo Tribunal Federal cassou o registro legal do PCB e o Ministério do Trabalho ordenou a intervenção nos sindicatos e na central sindical dirigida pelo PCB. Um ano depois também foram cassados os mandatos de todos os deputados e vereadores e do Senador do Partido em todo o País, obrigando o PCB a operar novamente na clandestinidade.
Mesmo na ilegalidade o Partido continuou seu trabalho junto ao proletariado das cidades e do campo, na luta política e na solidariedade internacional. Destaca-se nessas lutas, a memorável campanha “O petróleo é nosso”, contra a tentativa do governo Dutra de entregar a prospecção de petróleo às companhias estrangeiras, o que resultou posteriormente na criação da Patrobrás; as grandes greves dirigidas pelo PCB, como a de 1953, que envolveu metalúrgicos, têxteis e padeiros; a campanha contra o envio de soldados brasileiros para a Coréia e pela interdição da bomba atômica. O PCB também organizou sindicatos agrários em várias regiões do País e liderou a luta armada dos camponeses em Porecatu, no Paraná, e Trombas e Formoso, em Goiás, tendo como líderes José Porfirio, posteriormente assassinado pela ditadura, e Dirce Machado, ainda hoje viva e militando no PCB.
Na segunda metade da década de 50 o Brasil viveu um período de intenso desenvolvimento industrial, com o Plano de Metas do governo Kubitschek, que viria completar o processo de industrialização iniciado com a revolução de 1930. Foi um período de grandes transformações no País: o Brasil passou da condição de nação agrária para nação industrial, o proletariado aumentou extraordinariamente, as correntes migratórias se intensificaram em função do desenvolvimento econômico, resultando num processo de urbanização acelerada das grandes metrópoles. Nesse período, o PCB lançou a Declaração de Março de 1958, um documento que buscava fazer uma análise da nova situação do País, afirmando que o desenvolvimento industrial correspondia aos interesses do proletariado, que o processo de democratização era uma tendência permanente e que era possível o caminho pacífico da revolução brasileira, um erro que custaria caro ao PCB posteriormente. O documento mantinha a mesma estratégia nacional-democrática do período anterior, com o agravante de ampliar o leque de alianças do Partido não só para o conjunto da burguesia brasileira, mas até para setores do chamado latifundiário produtivo.[10] Mesmo que o Partido tenha crescido expressivamente nesse período e aumentado sua influência social e politica junto ao novo proletariado e outros setores da sociedade, essa estratégia de alianças com a burguesia desarmou o PCB para a luta revolucionária, o que posteriormente se refletiu na incapacidade de resistência ao golpe militar de 1964.
Como resultado das repercussões do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética e da emergência da revolução Cubana de 1959, o Partido vai sofrer uma série de dissidências tanto na primeira quanto na segunda metade da década de 60. Em 1962, um conjunto de dirigentes, entre os quais Maurício Grabois, João Amazonas e Pedro Pomar, após discordarem da linha política do Partido e da autocrítica em relação ao culto à personalidade do período de Stalin, lançam um manifesto denominado Carta dos 100, onde decidem sair do Partido, convocar uma conferência de reorganização e formar uma nova organização com o nome anterior do Partido – Partido Comunista do Brasil e a sigla PC do B.[11] A saída dessa pequena dissidência não teve grande repercussão no interior do PCB, que continuou crescendo e ampliando sua influência na sociedade brasileira. As outras dissidências do Partido vão ocorrer na segunda metade da década de 60, especialmente entre a juventude, que vão constituir várias organizações guerrilheiras urbanas.
A primeira metade da década de 60 foi um período de acirramento da luta de classe no Brasil. Logo no início da década o presidente Jânio Quadros renunciou e abriu uma grave crise institucional, pois setores militares lançaram um manifesto buscando impedir a posse do vice-presidente, João Goulart. Com o impasse institucional, o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, iniciou a resistência aos golpistas a partir daquela região do País, inclusive convocando a população a pegar em armas, e formou a Cadeia da Legalidade, um movimento que teve apoio de expressiva parcela dos meios de comunicação, e que mobilizou o País contra os militares golpistas. O impasse terminou com um acordo conciliatório, após a adesão do III Exército à posse do vice-presidente. Diante da possibilidade de guerra civil, os golpistas recuaram, mas o movimento pela legalidade também fez concessões: o vice-presidente João Goulart assumiria a presidência, mas o regime seria parlamentarista.
Por trás dessa crise estava a disputa entre dois projetos: as reformas de base, defendidas pelo movimento popular e setores progressistas e democráticos e o projeto conservador, aliado às forças reacionárias, empresariais e ao imperialismo. Foi o período de mais intensa polarização política no País.[12] Nessa conjuntura, o PCB obteve grande crescimento entre o proletariado, a juventude e o mundo da cultura, bem como entre setores militares. O PCB dirigia os principais sindicatos do País e o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT); possuía grande influência no sindicalismo do campo; tinha vários comandantes de tropas no Exército, nas entidades dos sargentos e praças e militantes com comando na Aeronáutica. Entre a juventude participava da direção da União Nacional dos Estudantes (UNE) e dirigia o Centro Popular de Cultura da UNE, até hoje um dos maiores movimentos culturais do País, e possuía grande influência entre a intelectualidade progressista.
O desfecho dessa conjuntura dos primeiros anos de década de 60 foi o golpe militar, com apoio de vários setores da igreja, do conjunto do empresariado e do imperialismo. O País viveu a partir daí uma ditadura que durou 21 anos e o PCB foi perseguido de maneira implacável pelo novo regime. A ditadura cassou os direitos políticos de milhares de pessoas, entre as quais mais de cinco mil militares, cassou o mandato de parlamentares, governadores, prefeitos e vereadores, realizou intervenção em centenas de sindicatos, prendeu e perseguiu suas lideranças e implantou o terror fascista contra toda a oposição, especialmente para as forças organizadas contra o regime. Nessa conjuntura tensa e de derrota do movimento popular, grande parte da juventude e alguns dirigentes, descontentes com a linha política do Partido, que no VI Congresso de 1967 se definiu pela constituição de uma Frente Democrática como tática para derrotar a ditadura, romperam com o Partido e optaram pela luta armada urbana, formando várias organizações guerrilheiras, todas destroçadas pela ditadura.[13]
Operando na mais absoluta clandestinidade, O PCB estruturou a luta contra a ditadura com dois planos para construir a resistência de massas ao governo: o primeiro, era o Plano de Construção do Partido nas Grandes Empresas, tendo a região do ABC paulista como projeto piloto. Com um trabalho paciente e determinado a partir de 1969 o Partido organizou um trabalho político nas empresas da região, cujo resultado foi a constituição de células comunistas em todas as grandes do ABC, que envolviam centenas de militantes.[14] O segundo plano era a construção da UNE de massas, a partir do qual os estudantes deveriam realizar um trabalho de base nas universidades, tendo como mote os encontros “científicos” de estudantes de cada curso, que inicialmente realizariam encontro nas próprias faculdades, posteriormente encontros estaduais e finalmente encontros nacionais, os chamados Encontrão, nos quais deveriam formar as Executivas Nacionais dos Cursos. O objetivo era fazer encontros nacionais de todos os cursos e, finalmente, realizar um Encontro Nacional dos Estudantes no qual seria constituído a UNE de massas.[15]
O trabalho político nas fábricas do ABC começou a ser desmantelado quando a polícia prendeu um dos militantes na Volkswagen, em 1972, e este não suportou as torturas e entregou todos os militantes que conhecia, inclusive a direção do Comitê de Fabrica.[16] Como a organização era clandestina e muito compartimentada, nem toda a organização comunista caiu em função das prisões. A repressão só conseguiu desmantelar todo o trabalho clandestino na região com as prisões de 1974/75, quando a repressão realizou uma violenta ofensiva para liquidar o PCB. Nesse processo também foram presos centenas de estudantes em todo o País, principalmente os responsáveis pelo trabalho junto à juventude.[17] No entanto, esse foi um trabalho tão bem feito que ainda hoje existem as Executivas Nacionais de cursos, muito embora a maioria dos estudantes nem imaginem que essas organizações foram resultado do trabalho dos comunistas.
Além da luta clandestina, os militantes do PCB, orientados pela política de construção da Frente Democrática, também atuavam institucionalmente no Movimento Democrático Brasileiro (MDB), onde contribuíram de maneira efetiva para a resistência democrática, chegando a eleger vários parlamentares. A partir de 1977, o movimento estudantil retomou suas atividades em meio a grande repressão e, em 1978, ocorreu a primeira greve operária na região do ABC, movimento que posteriormente se espalharia pelo País como um rastilho de pólvora. Desgastada, sem apoio popular, com o País em crise econômica e com a emergência do movimento operário, a ditadura foi obrigada a decretar a anistia, o que possibilitou o retorno dos exilados e, a partir daí, o governo perdeu a iniciativa política, enquanto o movimento social avançava exigindo o fim da ditadura e eleições diretas para presidente da República.[18]
A volta do exílio dos dirigentes do PCB representou um longo e desagregador processo de luta interna, possivelmente o maior na história do Partido. Com a volta dos dirigentes do exílio, a militância tomou conhecimento de profundas divergências que existiam entre a maioria do Comitê Central, o secretário-geral, Luís Carlos Prestes e os eurocomunistas, organizados em torno de Armênio Guedes na Europa, disputa que se tornou mais grave em função da nova conjuntura do país com a emergência das greves operárias. Apartados da realidade brasileira pelos anos de exílio e aferrados à política de frente democrática do período anterior à emergência do movimento popular, o Comitê Central temia a radicalização das greves porque esse movimento poderia levar a um retrocesso na a abertura política que estava sendo implementada pela ditadura, para espanto inclusive da militância interna que apoiava as greves.
Foi nessa conjuntura resolveu que Prestes lançou a Carta aos Comunistas, um documento no qual criticava o Comitê Central e afirmava que a orientação da maioria dessa direção não mais correspondia às necessidades do movimento operário e popular e que o Partido estava atrasado no entendimento da realidade brasileira, fato que explicava a passividade e ausência dos comunistas na luta real do País. “Um partido comunista não pode, em nome de uma suposta democracia abstrata e acima das classes, abdicar do seu papel revolucionário e assumir a posição de freio dos movimentos populares, de fiador de um pacto com a burguesia, em que sejam sacrificados os interesses e as aspirações dos trabalhadores ... Não podemos, pois, compactuar com aqueles que defendem "evitar tensões", freando a luta dos trabalhadores em nome de salvaguardar supostas alianças com setores da burguesia”.[19]
Com esse documento, Prestes na prática se afastava do PCB, especialmente porque conclamava as bases a tomar o destino do Partido em suas mãos. As críticas de Prestes à maioria do Comitê Central eram corretas, mas o método de não realizar a luta interna por dentro da organização forneceu o pretexto para que a maioria da direção o acusasse de personalista, divisionista e de desrespeitar as instâncias do partido, bem como serviu para que a velha direção se apresentasse como defensora da unidade partidária. O chamado de Prestes teve pouco efeito no interior do Partido porque a militância fora educada na concepção do centralismo democrático e na perspectiva de que a luta política deveria ser feita por dentro da organização e não fora de suas instâncias. É consenso entre os atuais dirigentes do Partido a certeza de que se Prestes tivesse permanecido no Partido e realizada a luta por dentro, com a autoridade política que tinha, teria derrotado aquele núcleo dirigentes e reconstruído o Partido em outro patamar, como o fizeram uma década depois, em situação muito mais dramática, jovens dirigentes intermediários e militantes de base no início da década de 90.
Consolidada o poder no interior do Partido, o Comitê Central, agora tendo Giocondo Dias como secretário-geral, continuou sua política conciliadora tanto no que se refere à luta social quanto a política institucional. Não compreenderam que, com a emergência do movimento operário, a tática de frente democrática deveria ser mudada para que o Partido se incorporasse ao ascenso das lutas dos trabalhadores. Alguns exemplos são simbólicos dessa política equivocada. O Partido participou da Conclat (Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras) mas não se incorporou à formação da CUT (Central única dos Trabalhadores) preferindo construir a CGT (Central Geral dos Trabalhadores) em aliança com conhecidos pelegos. No plano eleitoral a política de subordinação aos interesses da burguesia era ainda mais escandalosa. Nas eleições de 1986, em São Paulo, a velha direção apoiou o empresário Antônio Ermírio de Moraes, candidato que estava à direita de Orestes Quércia, do MDB. No Rio de Janeiro, apoiou Moreira Franco contra Darcy Ribeiro, posição semelhante a que manteve nos outros Estados. Além disso, a direção apoiou o governo Sarney até o final de seu mandato, fatos que contribuíram para afastar o Partido das lutas e dos movimentos sociais. Esses erros políticos também contribuíram para fortalecer uma oposição interna, que vinha desde o início da década de 80 realizando a luta política nas instâncias internas do Partido e que dirigiam os principais comitês municipais das grandes cidades do País, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife, Brasília, Belém, entre outros.
No entanto, com a crise dos países do Leste europeu e com a simbólica queda do Muro de Berlim, o velho Comitê Central começou a colocar abertamente um conjunto de proposta liquidacionistas, como uma nova forma-partido, a mudança de nome e dos símbolos do PCB, bem como a renúncia do marxismo-leninismo, elementos que vieram não só comprovar os permanentes equívocos políticos, mas a própria degeneração ideológica daquele núcleo dirigente. Essas propostas abriram uma luta interna aberta no interior do PCB porque representavam a própria liquidação do Partido e sua história de lutas. Começaram então a aparecer os primeiros documentos contra a liquidação do Partido: em São Paulo foi lançada a Plataforma da Esquerda Socialista e, no Rio de Janeiro, outro documento denominado Pela Renovação Revolucionária do PCB. Mesmo ainda sem uma articulação nacional, esses dois documentos faziam uma dura crítica aos erros cometidos pelo Comitê Central e diziam que essa direção estava esgotada para o novo ciclo de luta de classes que se abrira no País.
Os dois documentos, resgatando as críticas que Prestes fazia no início da década de 80, chamavam os comunistas à resistência contra a liquidação do Partido. O documento de São Paulo dizia claramente: “Na prática, a nossa direção perdeu a perspectiva da revolução, o que desarmou o Partido para as lutas cotidianas de nosso povo. A consequência foi uma sucessão de graves erros políticos ... Ao invés de priorizar a atividade partidária na organização das massas apostou tudo na política institucional, o que terminou nos isolando dos movimentos sociais”. E continuava afirmando que tipo de partido queriam construir: “Queremos transformar o PCB num instrumento novo e qualificado para dirigir a revolução brasileira ... Um partido que será educado na perspectiva da revolução social e política e na transformação da sociedade brasileira e, por isso, profundamente vinculado ao socialismo”.[20] O documento do Rio de Janeiro reafirmava a identidade do Partido e de seus símbolos e também chamam os militantes à resistência. .“A manutenção e revalorização de nossos símbolos são fundamentais não só pelo que representam em termos de lutas das quais nos orgulhamos, mas porque ainda estão carregados da mística e da esperança no homem novo e na nova sociedade ... Renegá-los diante da crise é oportunismo ou covardia; afirmá-los é a prova de coerência e visão histórica”[21]
Essas divergências explodiram no IX Congresso do PCB, realizado em 1991, que representou a demarcação de campos entre aqueles que queriam acabar com o Partido e aqueles que queriam sua continuidade. As teses publicadas pelo núcleo dirigente para esse congresso confirmavam que a liquidação do Partido era um projeto que estava em curso: “O desfecho da disputa entre capitalismo e socialismo não passa mais pelo poder de destruição de cada um ... A nova mentalidade opera no sentido da transferência da contradição radical entre socialismo e capitalismo para o campo da competição pacífica, recusando a transposição mecânica dos antagonismos de classe ... O partido deve ser laico e de massas. Não recolherá em sua organização nem atrairá para a sua política a massa de milhões se insistir em manter sua doutrina oficial – o marxismo-leninismo ... A partir dessas reflexões é que precisamos enfrentar a questão do nome e dos símbolos do Partido ... O importante é que o conjunto de filiados, amigos e eleitores sejam ouvidos, com o fim de encontrar o máximo de correspondência entre nomes e símbolos e o caráter e exigência de nossa organização”[22].
Estava mais que clara a intenção liquidar o partido e dar adeus à revolução e ao proletariado. Mas essa direção estava tão degenerada e, ao mesmo com uma autoconfiança que não mais correspondia à realidade interna do partido, que aceitou que a disputa no Congresso fosse realizada por chapas, o que é atípico nos congressos comunistas. Aproveitando-se dessa oportunidade, a esquerda do Partido, agora mais articulada internamente, lançou um documento para os delegados chamando à resistência; “Nesses dias de debate estarão em jogo a nossa história, o nosso patrimônio, o futuro do PCB, os princípios marxistas que orientaram várias gerações de comunistas, a real inserção do Partido na vida política do País e a nossa opção por uma sociedade socialista, na perspectiva do comunismo ... Estamos nesse congresso para defender o PCB, seu nome e seus símbolos, buscar a renovação pelo rumo revolucionário, torná-lo um partido combativo e um instrumento qualificado para dirigir as lutas sociais no Brasil ... Por tudo isso estamos em oposição às teses do núcleo dirigente do Partido e, principalmente, a toda tentativa de transformar o PCB numa organização social-democrata, que tenha como perspectiva administrar o capitalismo e ser parceiro conflitivo da burguesia”.[23]
O IX Congresso foi marcado por um tenso e dramático debate político e muitas surpresas para a velha direção. As principais teses do núcleo dirigentes foram derrotadas no Congresso e eles não tiveram coragem de colocar em pauta a questão de mudança do nome do partido e ainda foram obrigados a se comprometer publicamente que não queriam acabar com o Partido. Mas a surpresa maior foi a votação para o Comitê Central: as duas chapas de oposição obtiveram as seguintes votações: Fomos, Somos e Seremos Comunistas, 36,5%, Política de Esquerda Para o Novo socialismo, 10,5%; e a chapa do Comitê Central, apenas 53%, resultado que significou uma grande derrota para as teses liquidacionistas e uma vitória espetacular para a oposição que praticamente não tinha ninguém no Comitê Central e passaria a ter 47% e agora teria melhores condições para realizar a luta interna. Pelo resultado do Congresso, era consenso entre a oposição que rapidamente ganharia a maioria da militância para as suas teses.
No entanto, a esquerda do Partido teve pouco tempo para comemorar porque alguns meses depois ocorreria a desagregação da União Soviética. Então, os liquidacionistas convocaram às pressas uma reunião do Comitê Central, na qual aprovaram um congresso extraordinário cujo objetivo era extinguir o Partido. A esquerda só conseguiu levar para essa reunião 17 integrantes da direção, em função da urgência da convocação e de dificuldades financeiras. Essa foi uma reunião patética porque vários membros da velha direção se regozijavam com a perspectiva de acabar com o PCB. Um deles, Sergio Arouca, chegou a dizer que o PCB era um cadáver podre que precisava ser enterrado. Mas não bastava convocar o Congresso: era necessário encontrar uma fórmula que lhes garantisse maioria na disputa com a esquerda. Então eles aprovaram que não filiados poderiam participar do Congresso, ou seja, bastava reunir 10 pessoas em qualquer lugar que teria direito a um delegado, naquilo que eles denominaram de Fóruns Socialistas.
Quando apressadamente a mesa deu por encerrada a reunião, os dirigentes da esquerda se apossaram do microfone e disseram que a reunião tinha acabado para eles mas que continuava para quem queria manter o PCB. Aí então laçaram o Movimento Nacional em Defesa do PCB e um manifesto para a militância denunciando as manobras para fraudar o Congresso e acabar com o PCB. “Os membros do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, abaixo-assinados, resolvem: manifestar seu mais veemente repúdio à postura liquidacionista da maioria do Comitê Central, que convocou um congresso extraordinário com a finalidade exclusiva de extinguir o Partido ... Denunciar que essa decisão representa a capitulação ante a histeria anticomunista surgida após os acontecimentos na União Soviética e um golpe contra as deliberações do IX Congresso … Reiterar a inabalável determinação de manter o PCB, de fato e de direito, com seu nome e símbolos, como herdeiro político do Movimento Comunista Internacional, da rica tradição de luta dos comunistas brasileiros e do ideário de Marx, Engels, Lênin e outros pensadores revolucionários”.[24] Posteriormente o documento foi assinado pelos 30 membros da Esquerda no Comitê Central e a partir daí passou a existir dois partidos dentro da mesma organização.
Em seguida, o Movimento decidiu convocar um Encontro Nacional em Defesa do PCB. Realizado no Rio de Janeiro, contou com a presença de militantes de 10 Estados, onde se aprovou um documento com os objetivos estratégicos e táticos do movimento. “O Encontro Nacional se define não só pela reconstrução do PCB, mas por sua renovação radical, livre dos dogmas e estereótipos que ao longo dos anos foi realizada pela velha concepção burocrática dominante no CC. A renovação que buscamos, por um lado, incorpora toda a tradição de luta, heroísmo e combate dos comunistas, reverenciando aqueles que rubricaram com sangue e com a vida a luta por uma sociedade socialista. Por outro lado, marca uma ruptura com os métodos burocráticos, antidemocráticos e deformadores da vida do Partido... Queremos um partido que seja um instrumento qualificado para contribuir na direção das lutas sociais no Brasil, com inserção viva nas fábricas, no campo, nos bancos, nos escritórios, no comércio, no movimento comunitário, nas escolas secundárias, nas universidades. Um Parido educado na perspectiva da revolução social e política e na transformação radical da sociedade brasileira, por isso profundamente vinculado ao socialismo”.[25]
A conferência de reorganização
Como era de se esperar, a direção do Movimento começou a tomar conhecimento das fraudes que estavam ocorrendo na tirada de delegados para o X Congresso em várias regiões e da interferência de forças conservadoras, ligadas ao MDB, fornecendo militantes e infraestrutura para a participação no Congresso. Diante disso, a direção do Movimento decidiu que não mais iria participar do Congresso porque a presença da Esquerda nesse evento fraudulento seria sua legitimação e se definiu por uma Conferência de Reorganização nos mesmos dias e no mesmo Estado onde seria realizado o congresso dos liquidacionistas. E assim foi feito: marcou-se a conferência para os dias 25 e 26 de janeiro de 1992 no Colégio Roosevelt, em São Paulo, mesmo Estado e mesmos dias onde se realizaria o Congresso fraudulento. Decidiu-se ainda que iríamos em passeata até o Teatro Zaccaro, onde eles estavam realizando o Congresso, para expormos as razões porque não iríamos participar daquele evento e, ao mesmo tempo, chamar os delegados que quisessem permanecer no PCB a se unirem à nossa conferência.
Conforme combinado, antes de começar a conferência, realizamos uma assembleia com os 500 delegados presentes e seguimos em passeata para o Teatro Zaccaro com nossas bandeiras e cantando a Internacional. Ao chegarmos no teatro, eles quiseram impedir a nossa entrada, mas acabaram cedendo diante da argumentação de que estávamos dispostos a entrar de qualquer forma e que queríamos apenas explicar as razões porque não participaríamos daquele congresso e porque decidimos permanecer no PCB. Conforme negociado, entramos no Congresso e dois representantes nossos e dois deles falariam aos delegados e depois nos retiraríamos. E assim foi feito: denunciamos a farsa que era aquele congresso, convocamos os que estavam contra a extinção do PCB e nos retiramos organizadamente para o Colégio Roosevelt, onde iniciamos a Conferência de Reorganização. A o longo de dois dias os 500 delegados discutiram a estratégia e tática para o novo período do Partido, comprometeram-se a dar continuidade ao PCB e elegeram um Comitê Central e um Comitê Executivo, cuja responsabilidade era conduzir o Partido naquela conjuntura adversa. Os delegados voltaram aos Estados e o Partido começou um longo, paciente e determinado processo de reorganização revolucionária.
Vencida a primeira batalha política, agora era hora de iniciar o processo de reconstrução partidária em novas bases. Para tanto, foi necessário cumprir inicialmente pelo menos três tarefas: a) conquistar a legalidade jurídica; b: reorganizar o PCB em novas bases; c) estudar profundamente a realidade brasileira de forma a que pudéssemos formular uma nova linha política para o partido. Mesmo nas condições adversas daquele período, acordamos que era viável o cumprimento dessas tarefas. Laçamos então uma campanha nacional de filiação, onde mobilizamos centenas de militantes para bater de porta em porta e cumprir a meta da legalização do partido, apesar da legislação draconiana do período.[26] Um ano depois a tarefa estava cumprida com êxito e em 1995 conseguimos a legalidade partidária. Além disso, desenvolvemos um processo de reorganização do Partido, de forma a resgatar as tradições orgânicas e revolucionárias do PCB, com ênfase na formação e na organização leninista. Finalmente, desenvolvemos um aprofundado estudo da realidade brasileira, buscando entender a formação da sociedade e do capitalismo brasileiro, a estrutura e a organização das classes sociais, especialmente da burguesia e do proletariado e o caráter do Estado brasileiro.
Esses foram os elementos que nos permitiram, ao longo dos 30 anos do processo de reconstrução revolucionária, ter condições para formular uma nova linha política para o Partido, com uma estratégia e tática que correspondesse à realidade do País. Dessa forma, conseguimos compreender as principais características do imperialismo atual e do capitalismo brasileiro e sua subordinação ao grande capital internacional; definimos o caráter da revolução brasileira como socialista, rompendo com anos de etapismo que nos levou a derrotas no passado; estruturamos um processo permanente de formação da militância; organizamos a intervenção no movimento sindical, através da Unidade Classista, e na juventude, com a União da Juventude Comunista. E formamos ainda coletivos no movimento feminino e nos diversos movimentos sociais, como o movimento negro, LGBT e cultura. Baseados nessas formulações, definimos os aliados e os inimigos na construção do processo revolucionário brasileiro, bem como os elementos fundamentais para a construção do poder popular.
Uma síntese desse processo pode ser observada nas resoluções do XIV Congresso, evento que consolidou a linha política revolucionária do PCB. “Afirmamos que a revolução brasileira é uma revolução socialista considerando que o Brasil é uma formação social capitalista desenvolvida e monopolista, que a burguesia monopolista nacional/internacional constitui-se em classe dominante; que o Estado brasileiro é um Estado burguês e que o processo de luta de classes no ciclo recente produziu um bloco liberal burguês hegemônico e dominante, formado pela aliança entre a grande burguesia monopolista, o monopólio capitalista da terra, o imperialismo e um setor político da pequena burguesia política ... Afirmar o caráter socialista da revolução brasileira implica em afirmar que as tarefas colocadas ao conjunto dos trabalhadores e, em especial, da classe operária, núcleo estratégico e central do sujeito revolucionário, o proletariado, não podem se realizar nos limites de uma sociedade capitalista ... A revolução brasileira é socialista, finalmente, porque toda a experiência histórica dos trabalhadores demonstrou que qualquer forma de pacto com a burguesia é uma miragem que confunde os trabalhadores, desorienta a luta de classes e joga o horizonte socialista para as calendas”.[27]
Em síntese pode-se dizer que o processo de reconstrução revolucionária do PCB constitui uma trajetória rica de ensinamentos e firmeza ideológica num dos momentos mais adversos da trajetória do proletariado brasileiro e mundial. Significa também uma derrota para os liquidacionistas no Brasil e para o imperialismo que, com a queda da URSS, imaginava que a desagregação soviética seria também o fim dos partidos comunistas. Pode ainda ser um dos exemplos mais bem sucedidos de reconstrução comunista após a queda da URSS, principalmente se levarmos em conta que após a crise do socialismo real muitos antigos partidos comunistas se dissolveram ou mudaram de nome, outros se adaptaram ao reformismo, alguns se transformaram em organizações de direita, como o PPS no Brasil, e uma parcela expressiva ainda não conseguiu ultrapassar a ressaca da queda da URSS. Olhando retrospectivamente e levando em conta que poucos acreditavam que aqueles jovens dirigentes intermediários e militantes de base conseguiriam reorganizar o velho Partidão, essa foi uma tarefa que valeu a pena porque hoje o PCB é um partido nacional, organizado do Acre ao Rio Grande do Sul, resgatou seu caráter revolucionário e construiu uma linha política à altura da luta de classes em nosso País. As novas gerações têm agora à disposição um partido à altura das necessidades da revolução brasileira.
Edmilson Costa é secretário-geral do PCB
*Esse artigo foi escrito originalmente para a coletânea do livro “100 anos de comunismo no Brasil”, publicado pela Editora Página 13 e Escola Latinoamericana de História e Política (Elaph), como resultado do seminário sobre o mesmo tema.
[1] A fundação do Partido Comunista Brasileiro foi realizada em Congresso realizado em Niterói, nos dias 23, 24 e 25 de março. Os fundadores do PCB, representando algo em torno de 70 comunistas de várias regiões do País, eram os seguintes: Astrojildo Pereira, jornalista; Abílio Nequete, barbeiro; Cristiano Cordeiro, contador; Hermogênio Silva, eletricista; João da Costa Pimenta, gráfico; Joaquim Barbosa, alfaiate; José Elias da Silva, funcionário; Luís Peres, operário vassoureiro, e Manuel Cendon, alfaiate.
[2] Desde 1922 até 1985 o PCB só experimentou dois anos de legalidade. Os outros 63 anos foi obrigado a atuar clandestinamente. Possivelmente é o Partido Comunista que mais tempo teve que operar na ilegalidade em toda a história do movimento revolucionário mundial.
[3] Posteriormente, o líder da Coluna, Luís Carlos Prestes, viria aderir ao comunismo e se transformar no secretário geral do PCB por várias décadas.
[4] Para melhor compreensão desse período consultar: Fausto, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Edusp, 2008; Basbaum, Leôncio – Uma vida em seis tempos, São Paulo: Alfa-Omega, 1978; Pereira, Astrojildo – A formação do PCB (1922/1928), Lisboa: Editora Prelo, 1976; Schwarcz. Lilian e Staling, Heloisa M. Brasil, uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015; Brandão, Octavio. Combates e Batalhas, São Paulo: Alfa-Omega, 1978: Dulles, John W. Foster. Anarquistas e Comunistas no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977; Zaidan Filho, Michel. Comunistas em céu aberto – 1922-1930. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1989. Sodré, Nelson Werneck – Contribuição à história do PCB, São Paulo: Global, 1984; KAREPOVS, Dainis. A classe operária vai ao parlamento: O Bloco Operário e Camponês do Brasil. São Paulo: Alameda, 2006.
[5] Um decreto de 1931 definia os sindicatos como órgãos consultivos e de colaboração com o governo e a legalidade dos sindicatos dependia do reconhecimento do Ministério do Trabalho, que tinha o poder de reconhecer e cassar o registro legal da entidade.
[6] Esse episódio ocorreu em outubro de 1934. Os integralistas realizaram uma marcha pelas ruas de São Paulo e quando chegaram à praça de Sé os comunistas já o estavam esperando para impedir que ocupassem a praça. Resultou daí um conflito violento, inclusive com tiros, mas os galinhas verdes, como os integralistas eram conhecidos, bateram em fuga desordenada do local, resultando assim numa derrota pública dos integralistas ou na “revoada dos galinhas verdes”.
[7] Os cálculos não são precisos: os mais conservadores estimam em 100 mil filiados enquanto os mais otimistas calculam em 600 mil filiados.
[8] Fausto, Boris. História concisa do Brasil. Op. cit.
[9] Além de Luís Carlos Prestes, foram presos no Brasil, entre outros, os seguintes dirigentes da Internacional Comunista: entre outros, Olga Benário (alemã), Rodolpho Ghioldi (argentino), Artur Evert (alemão: este foi tão torturado que enlouqueceu na prisão e nunca conseguiu se recuperar, mesmo depois de solto), Victor Allen Barron (norte-americano, assassinado ao ser jogado da janela da prisão), Elise Evert (alemã, esposa de Artur Evert). Olga e Elisa foram assassinadas nos campos de concentração nazistas. No Brasil, calcula-se que cerca de 15 mil pessoas foram presas pela repressão do governo.
[10] Declaração Sobre a Política do PCB. Março de 1958. www.marxist.org/portugues. Acesso em 08/02/2022.
[11] O PC do B inicialmente orienta-se pelas formulações do Partido Comunista Chinês, de guerra popular prolongada, e prepara um foco guerrilheiro na região ao Araguaia. Posteriormente, rompe com os chineses e adere à política do Partido do Trabalho da Albânia, ao qual permanece fiel até a queda do regime albanês. No início da década de 70 o PC do B incorporou em suas fileiras a maior parte da antiga organização católica Ação Popular (AP), que evoluíra para as posições marxistas. Essa incorporação iria dar um novo fôlego ao PC do B, porque a AP era pelo menos duas vezes maior que o PC do B. Hoje já não existem membros do antigo PC do B na direção dessa organização. O atual Comitê Central é hegemonizado por ex-integrantes da antiga Ação Popular.
[12] Para maiores informações sobre a disputa entre os dois projetos e luta política nesse período, consultar: Costa, E. A política salarial no Brasil. São Paulo: Boitempo, 1997.
[13] No Rio de Janeiro, a maioria da juventude saiu do Partido e formou a Dissidência da Guanabara, que depois viria se transformar no MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de outubro). Em São Paulo, junto com militantes de outros Estados, é formada a Aliança Nacional Libertadora, sob o comando de Carlos Marighela. Em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e outros Estados, é constituído o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Todas essas organizações oriundas do PCB optaram pela luta armada urbana e alguns anos depois foram massacradas pela ditadura. .
[14] Segundo depoimento de Lúcio Bellentani ao autor, secretário político dos Comitês de Fábrica da região e ferramenteiro da Volks, o PCB estava organizado em todas as seções da Volks e tinha células em todas as grandes empresas da região, com todos os militantes contribuindo financeiramente com o Partido. Bellentani diz que o Partido distribuía mensalmente cerca de 300 jornais Voz Operária, órgão clandestino do PCB, entre os metalúrgicos da região. Esse trabalho teve tanto êxito que já estava se espalhando para outras regiões: em 1974, militantes do PCB dirigiram uma greve dos ônibus na capital de São Paulo que, apesar da repressão, parou boa parte da cidade. Seus dirigentes também foram presos. Essa foi a primeira greve operária contra a ditadura após as paralisações de Contagem e Osasco em 1968.
[15] O documento que orientava essa tarefa foi publicado no jornal clandestino do PCB, Voz Operária, em 1972 com o seguinte título: Movimento Universitário: reconquistar sua força, papel e prestígio.
[16] Um dos elementos que levou a polícia a desconfiar que existia uma organização comunista na Volks foi um certo voluntarismo por parte dos militantes daquela empresa. Como Medici iria inaugurar a fabricação de um milhão de carros, o Partido então preparou uma ação para protestar contra o regime. No dia da inauguração, enquanto Medici discursava, na esteira da fábrica circulava um panfleto com críticas à ditadura, enquanto também foram deixados panfletos em todos os banheiros da empresa. Isso alertou a repressão e levou às prisões.
[17] A ofensiva para liquidar o PCB foi realizada através da Operação Radar, que visava eliminar os principais dirigentes do PCB, destruir sua estrutura de comunicação, especialmente o jornal Voz Operária, suas ligações internacionais e lideranças nacionais. Milhares de militantes foram presos em praticamente todos os Estados, um terço do Comitê Central foi assassinado na tortura, inclusive José Montenegro de Lima, responsável pelo trabalho da juventude. Todos esses assassinatos foram autorizados pelos mais altos escalões da ditadura, conforme documento desclassificado da embaixada dos Estados Unidos.
[18] Mesmo não obtendo os resultados a que se propunha as manifestações populares pelas diretas, já podem ser consideradas um dos maiores movimento sociais na história brasileira, chegando a reunir mais de um milhão de pessoas nas ruas no Rio de Janeiro e em São Paulo.
[19] Carta aos Comunistas. www.marxist.org. Acesso em 09/02/2022
[20] Costa. E. Carta de Princípios da Plataforma da Esquerda Socialista. São Paulo 1990
[21] Manifesto pela Renovação Revolucionária do PCB. Rio de Janeiro s/d (Provavelmente o documento foi redigido nos primeiros meses de 1991).
[22] O Brasil dos comunistas. Teses para o IX Congresso do PCB. São Paulo s/d. (Provavelmente publicadas em 1990).
[23] Fomos, Somos e Seremos Comunistas – Aos companheiros delegados do IX congresso do PCB. Documento da esquerda do Partido ao IX Congresso. Rio de Janeiro, maio de 1991.
[24] Em defesa do PCB. Manifesto dos integrantes da esquerda do PCB lançado na reunião do Comitê Central que decidiu convocar o Congresso Extraordinário.
[25] Resolução política do Encontro Nacional em Defesa do PCB. Rio de Janeiro, outubro de 1991
[26] Para a legalização de um partido era necessário a filiação de militantes em pelo menos nove Estados. Em cada Estado, 20% das cidades e, em cada cidade, um determinado percentual dos eleitores.
[27] PCB. Resoluções Políticas do XIV Congresso do PCB. Rio de Janeiro, 2009.