Reflexões sobre a pedagogia colonial, hoje

Poucos, realmente muitos poucos, já se dão conta que suas ideias e seus raciocínios lhes foram incutidos no cérebro desde a mais tenra infância, sob a forma de afetos, alimentos, cuidados, cheiros e sons doutrinadores. Desde, pelo menos, os chamados "mestres da suspeita" - Marx, Freud e Nietzsche, compreendemos que o ser humano é apenas superficialmente o que ele sabe que sabe, pois a maior parte da sua constituição existencial provém de forças e pulsões que desconhece. Tudo isso nos vem dos nossos pais, dos tios e avós, do entorno familiar e social onde nascemos e desenvolvemos nossos modos de comunicação e linguagens. Justamente por esses aspectos serem inconscientes e pré-racionais, eles são tão fortes e, até mesmo, em muitos casos, incontornáveis, condicionando, de forma automática, nossas crenças, valores, pensamentos, medos, gostos etc. 

Esta condição foi aproveitada pelos poderes, ao longo do tempo, para garantirem-se dominantes. Poderia afirmar que estava na própria ação de mando e submissão que encontramos desde os primórdios da civilização. Já dizia o grande pensador alemão Max Weber (1864-1920), em seu livro "Economia e Sociedade", que a dominação mais eficaz é aquela que é ignorada pelos dominados. É a pedagogia colonial.

Com a sofisticação da sociedade, com os embates entre poderes, com os desenvolvimentos tecnológicos, a pedagogia colonial ganha maior sofisticação e amplitude. Do núcleo de famílias, para as vilas, para as novas identidades aglutinadoras, até chegar ao Estado Nacional e buscar a mundialização: o estado global. 

Nesta última etapa, enfrenta a própria condição humana, ninguém é universal; somos todos fruto das questões da sobrevivência, que nos ligam ao nosso entorno. Nossa cultura mais internalizada vem da nossa relação com o ambiente, onde nascemos e crescemos. Em outras palavras, o nacionalismo é um traço muito mais forte para o homem normal do que qualquer imposição global. Uma ideologia que nunca pode ser mais ampla do que a vida, a complexidade da existência física, afetiva, transcendente, criativa e sutil. Mesmos as religiões, que buscam explicar as origens e fins do humano, são incapazes de responder todas nossas questões. Elas se contradizem, como os provérbios: Deus ajuda a quem Ele quer ou a quem cedo madruga?

Vamos buscar entender e encontrar respostas à pedagogia colonial, hoje. Com o mundo em grande parte submetido ao neoliberalismo financeiro, às pressões de sobrevivência numa sociedade que não valoriza a produção e que, como cereja no bolo, nos coloca frente a pandemia mortal.

Acreditamos que a falácia da globalização já deve ter se revelado a todos que tenham os dois neurônios. Com as desregulações, ao longo dos anos 1980, o decálogo do Consenso de Washington (1989) e o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (1991), a ideologia neoliberal assumiu-se como controladora da humanidade, “o fim da história”, impondo-se com sua readaptada pedagogia colonial. E nem se deu ao trabalho de eliminar os passaportes para gozar de um mínimo de credibilidade. 

Global, universal, com todas as portas abertas, só as finanças.

Iniciemos pelo liberalismo, de onde os neoliberais pretendem descender. José Guilherme Merquior (1941-1991), em “O Liberalismo Antigo e Moderno”, assegura que “é muito mais fácil, e muito mais sensato, descrever o liberalismo do que tentar defini-lo de maneira curta”. É verdade que o mesmo pode ser dito de qualquer ideologia moderna, mas que seja, afinal, não seria o liberalismo a ideologia moderna mais poderosa, capaz de render, em certos momentos, até mesmo os seus eventuais adversários, como o socialismo?

Percorramos aqueles que tentaram efetuar essa descrição.

José Ortega y Gasset (1883-1955), no mais conhecido dos seus trabalhos, “A Rebelião das Massas”. Não arriscamos afirmar se inconscientemente, como pensador tradicionalista, ou se intencionalmente, como político, escreveu ser o liberalismo “o direito assegurado pela maioria à minoria”. Muitos liberais, como John Stuart Mill (1806-1973), pensaram a minoria como sendo a minoria do talento: os grandes artistas, inventores, pioneiros, em suma, os gênios. Na prática, porém, o liberalismo privilegia apenas as minorias plutocráticas, sobretudo as financeiras, cujas atividades especulativas representam cabalmente o individualismo que está no princípio moral do liberalismo.

Realmente a dádiva e não a conquista já estava no liberalismo inglês, berço deste pensamento. A liberdade que se sujeitava ao poder monárquico: juntar a liberdade às tradições, como ensinava Thomas Hobbes (1588-1679), cuja teoria política negava, ao mesmo tempo, a liberdade, no sentido da liberdade social, e as tradições, sobretudo aquelas que haviam modelado a cristandade europeia. Este avô ou pai do liberalismo não acreditava em Deus, nem na cidadania, pois sua máxima fora “o homem é o lobo do homem”. Contrapondo-se conscientemente à tradição clássica do bem comum, formulada por Platão e Arsitóteles, Hobbes considerava que a sociedade não era a condição natural do ser humano, mas a guerra de todos contra todos, que nenhum Soberano conseguiria suplantar, mas, apenas, abafar e reprimir. Para Hobbes, o ser humano é, natural e essencialmente, o competidor anti-social que o neoliberalismo, depois, exaltaria como paradigma de ação humana.

Na sequência teremos John Locke (1632-1704) que, não sendo materialista como Hobbes, entrega a liberdade ao direito divino, como a vida e a propriedade. Colocando-a assim em complexa e atemporal companhia. Para ele, a propriedade privada seria uma dimensão da vida e da liberdade, de modo que os despossuídos, aqueles a quem o azar do nascimento em manjedouras ou tapetes de palha haviam condenado a uma vida de labuta incessante, seriam, ao mesmo tempo, alijados da vida e da liberdade, não se qualificando para a cidadania, que, em vez de ser a condição natural de todos os que compartilham um pertencimento nacional, era, para Locke, um privilégio, uma benesse para poucos. Nada estranho para quem, como ele, obtinha sua riqueza do comércio de seres humanos.

Assim, a propriedade, que será vista como roubo - Pierre Joseph Proudhon (1809-1865): “por que a terra foi mais apropriada que o mar e os ares; pretende saber-se com que direito o homem se apropriou dessa riqueza que não criou” (O que é a propriedade?) - foi elevada para o mesmo patamar da vida e da liberdade (!).

É verdade que o direito romano, um entre tantos, mas que influenciou grandemente, com o cristianismo, as percepções ocidentais; sem medo de errar diríamos que fundador da pedagogia colonial na era cristã, estabelecia como direito real o “dominium”. “Dominium” é a propriedade, a quem se incorporava o “ius possidendi”, ou seja, o poder jurídico absoluto e exclusivo sobre coisa material, corpórea, configurando relação imediata entre o titular e o objeto. Porém, a propriedade liberta dos imperativos morais de Deus, tornada absoluta em proveito de muito poucos às expensas da grande maioria alijada, eis a contribuição do liberalismo. 

Trazemos agora o clássico, muito mais citado do que lido, e muito pouco compreendido por quase todos que o leram, do escocês Adam Smith (1723-1790), “A Riqueza das Nações”.

Duas condições que o liberalismo e, sobretudo o neoliberalismo, procuram ofuscar ou esconder em Adam Smith são fundamentais na luta contra a pedagogia colonial: o estímulo que brota do espírito humano e o condicionamento nacional. Lá estão: “o desejo de melhorar”, a busca da realização pessoal, e “a riqueza”, que não é do homem, mas “da Nação”.

Não esquecendo os liberais franceses, estadunidense, italianos, alemães e o citado espanhol, tratemos, entretanto, do presente.

E o presente da pedagogia colonial é o neoliberalismo.

Porém, antes de entrarmos na análise do neoliberalismo, é necessário compreender as novas mídias, sem as quais ele não alcançaria o proselitismo de hoje.

O início se dá com a publicação, em The Bell System Technical Journal, julho-outubro de 1948, do artigo “A Mathematical Theory of Communication”, de autoria de Claude E. Shannon (1916-2001), depois cognominado “pai da teoria da informação”.

Naquele momento foi a finança e não a indústria quem percebeu a imensidão de possibilidades que a “informática” poderia trazer para seus negócios, tanto na velocidade e distância, quanto na pedagogia colonial, pelas comunicações que se abriam. A indústria apenas viu a robotização, um trabalho sem descanso e com baixos custos. 

E passou a dominar as mídias então disponíveis e, posteriormente, nas do fim do século, quase como monopólio. Não poucos depoimentos, análises, estatísticas apontam a importância das mídias digitais, das comunicações virtuais para o surgimento e domínio político de uma “nova direita”, onde ressaltam o radicalismo do mercado e o pouco valor à democracia e ao humanismo. 

Todos os espaços eram possíveis para “formular e fazer circular conteúdos se valendo de uma linguagem disruptiva e chocante, com objetivo de chamar a atenção para pautas e demandas pouco ou nada discutidas até então”, declara uma brasileira que analisou o surgimento do neoliberalismo como política partidária no Brasil.

São considerados pais do neoliberalismo os austríacos Ludwig von Mises (1881-1973) e Friedrich August von Hayek (1899-1992). 

A elite brasileira, formada no escravismo racial e social, jamais aceitou nossa Nação como país industrial e menos ainda industrial e social, essa é a verdade factual, longe dos discursos. A transformação conseguida por Getúlio Vargas deveu-se à compreensão de progresso daquele estadista e de uma conjugação de fatores que não voltaram a se repetir: cizânia nas elites políticas nacionais, caos financeiro nos EUA e político na Europa, levando nossa economia agroexportadora a grandes perdas, o colonialismo em guerra pela manutenção das regiões no além-mar, e as forças armadas nacionais em choque com o que viram na Alemanha e ouviram da Missão Francesa, mostrando seu enorme atraso. 

Alguma ação era necessária e Vargas teve a habilidade de costurar o Estado Novo, ora contra o fascismo ora contra o comunismo, e, deste modo, levando os fundamentos da industrialização a serem implantados: educação, saúde, urbanização e indústrias de base, além do nacionalismo, como elemento integrante da cultura brasileira, e do trabalhismo, como ideologia política. Estas sim foram medidas estruturantes que levaram quase um século para serem destruídas. E coube a um despreparado capitão de pijama acender o pavio da dinamite.

O neoliberalismo começou nos anos 1940/1950 para combater o triunfo tecnológico e industrial do comunismo e a sede de independência das colônias europeias na África e na Ásia. Contudo, permaneceu incubado até a crise do petróleo pois, naquele momento, a própria dinâmica organizacional do capitalismo requeria o planejamento governamental para a expansão e consolidação das corporações privadas num mundo devastado por duas guerras intercaladas por uma grande crise. Como apontaremos agora, o neoliberalismo, em sua fase larvar do pós-guerra, era eivado de contradições que a mídia, já de muito rentista, procurou apagar, no que só teve sucesso porque se tornou dominante, absoluta.

Mais do que a luta contra o comunismo, o neoliberalismo foi uma luta interna do capitalismo pelo poder do financismo.

Camila Rocha, “Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil”, escreve que ”com o término do mandato de Castelo Branco, considerado pela maior parte das pessoas que entrevistei durante minha pesquisa como o auge do liberalismo econômico no Brasil, os entusiastas do ideário pró-mercado perderam o espaço político que haviam conquistado”.

Uma economia de mercado certamente repudiaria qualquer planejamento governamental, ação de totalitarismos comunistas. Mas o Presidente Castelo Branco e seu Ministério Extraordinário para o Planejamento e Coordenação Econômica, Roberto Campos, trataram de fazer aprovar o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG). 

O PAEG, “dentro do seu propósito básico de estabilização, desenvolvimento e reforma democrática”, apresentou como objetivos: “acelerar o ritmo de desenvolvimento econômico do país; conter progressivamente o processo inflacionário durante 1964 e 1965 objetivando um razoável equilíbrio dos preços a partir de 1966; atenuar os desníveis econômicos setoriais e regionais e as tensões criadas pelos desequilíbrios sociais mediante a melhoria das condições de vida; assegurar, pela política de investimentos, oportunidades de emprego produtivo à mão-de-obra que continuamente aflui ao mercado de trabalho; e corrigir a tendência a déficits descontrolados do balanço de pagamentos, que ameaça a continuidade do processo de desenvolvimento econômico, pelo estrangulamento periódico da capacidade para importar”.

O notável é que Camila Rocha prossegue seu texto com “os militares que sucederam Castelo Branco passaram a adotar um programa econômico conservador, nacionalista e desenvolvimentista, justamente o oposto do que pregavam os defensores do livre mercado”.

O que verdadeiramente se teve este período foi a violência maior, total desrespeito aos direitos civis e humanos, cassação de mandatos e de cidadanias, quatro atos institucionais, a criação do Serviço Nacional de Informações, promulgação da Lei de Segurança Nacional. Tudo em desacordo com a “ordem espontânea” de Hayek ("Direito, legislação e liberdade") e a livre escolha de Mises: “todo adulto é livre para moldar sua visa de acordo com seus próprios planos. Não é forçado a viver de acordo com o projeto de uma autoridade planejadora que impõe seu único esquema” ("A mentalidade anticapitalista").

Camila Rocha, exemplo cabal da doutrinação da pedagogia colonial, não se apercebe que foi justamente o "programa econômico conservador, nacionalista e desenvolvimentista, justamente o oposto do que pregavam os defensores do livre mercado” que permitiu ao Brasil obter as maiores taxas de crescimento da sua história, paralelamente ao pico máximo histórico da participação dos salários no PIB, enquanto o livre-mercado por ela defendido, aplicado incondicionalmente no Brasil desde 2015, nos levou à maior crise da nossa história, justamente no mundo, onde, como sempre, os países vencedores, como a China, não se furtam a serem nacionalistas e desenvolvimentistas.

O notável é que Camila Rocha prossegue seu texto com “os militares que sucederam Castelo Branco passaram a adotar um programa econômico conservador, nacionalista e desenvolvimentista, justamente o oposto do que pregavam os defensores do livre mercado”.

O que verdadeiramente se teve este período foi a violência maior, total desrespeito aos direitos civis e humanos, cassação de mandatos e de cidadanias, quatro atos institucionais, a criação do Serviço Nacional de Informações, promulgação da Lei de Segurança Nacional. Tudo em desacordo com a “ordem espontânea” de Hayek ("Direito, legislação e liberdade") e a livre escolha de Mises: “todo adulto é livre para moldar sua visa de acordo com seus próprios planos. Não é forçado a viver de acordo com o projeto de uma autoridade planejadora que impõe seu único esquema” ("A mentalidade anticapitalista").

Camila Rocha, exemplo cabal da doutrinação da pedagogia colonial, não se apercebe que foi justamente o "programa econômico conservador, nacionalista e desenvolvimentista, justamente o oposto do que pregavam os defensores do livre mercado” que permitiu ao Brasil obter as maiores taxas de crescimento da sua história, paralelamente ao pico máximo histórico da participação dos salários no PIB, enquanto o livre-mercado por ela defendido, aplicado incondicionalmente no Brasil desde 2015, nos levou à maior crise da nossa história, justamente no mundo, onde, como sempre, os países vencedores, como a China, não se furtam a serem nacionalistas e desenvolvimentistas.

O alheamento da realidade de Camila Rocha é um exemplo da pilhagem cognitiva praticada pelas finanças para invisibilizar a pilhagem material que ela pratica sobre os países a ela rendidos, como o Brasil de hoje. Mas o Brasil tem jeito, pois, sendo grande demais para ser plenamente colonizado, saberá, com o tempo, impor-se à macabra joint-venture formada pela tolice dos adestrados pela pedagogia colonial e pela vigarice daqueles que a promovem.

 

Felipe Maruf Quintas, doutorando em ciência política, e Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado. 


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Pedro Augusto Pinho