Portugal e Coréia do Norte
"Causou celeuma a entrevista ao Observador em que João Ferreira, respondeu a uma pergunta sobre a perspectiva do PCP acerca das relações entre Portugal e a Coreia do Norte. O candidato respondeu que "Portugal deve ter relações com todos". Uma posição genérica de política internacional. Uma frase tirada de uma entrevista de cerca de uma hora, proferida por um candidato de um partido perfeitamente integrado na institucionalidade democrática burguesa da república foi suficiente para causar revolta entre os liberais do costume (não confundir, pelo menos em Portugal, com os liberais nos costumes). Uma revolta espúria e inconsequente de quem, não satisfeito com a vitória quase absoluta das suas ideias no Ocidente, continua a investir contra os moinhos de vento que são os perigosos bolcheviques do PCP, que só existem nas cabeças de liberais paranóicos ou de alegados socialistas cuja visão política é fazer reconstrução histórica de períodos ultra específicos da União Soviética. Mais recentemente, parte da cacofonia política que opôs André Ventura ao candidato do PCP e que algumas pessoas chamaram de debate, incluiu também referências a este país.
Este texto não é uma defesa do Juche enquanto projecto político, nem da liderança de nenhum dos seus presidentes. A política externa de um país como Portugal deveria seguir uma linha pragmática e não moralista. O projecto político de cada país, a esse país pertence e é ao seu povo emancipado que cabe mudá-lo, quando é caso disso.
Portugal actualmente não tem relações diplomáticas com a Coreia Popular e tal facto é assumido como um dado adquirido, uma realidade imutável da política externa lusa. Uma óbvia consequência natural do facto de Portugal estar do lado dos bons, do Ocidente, das democracias liberais e a República Democrática Popular da Coreia estar do lado dos maus, dos autoritários, dos isolados, dos "orientais". Mas não foi sempre assim. Portugal até há algum tempo manteve relações normais com este país. Portugal e a Coreia Popular estabeleceram relações diplomáticas desde 1975, no contexto da abertura da política externa portuguesa ao bloco socialista. Portugal nunca teve uma embaixada em Pyongyang, a representação era feita pelo embaixador residente em Pequim. A Embaixada Norte-Coreana em Lisboa haveria de manter-se até 1995. O corte definitivo de relações entre Portugal e a Coreia do Norte deu-se apenas em 2017, no contexto da pressão da comunidade internacional (leia-se, o Ocidente e os seus aliados) para que a Coreia do Norte parasse o seu programa nuclear militar, programa esse que o país mantém exactamente por estar isolado internacionalmente.
Portugal era, na altura, aliado da Coreia do Norte? Alguma facção política relevante no contexto do PREC e pós PREC defendia o modelo Juche para Portugal? Porque razão faz sentido fazer estas perguntas sobre a Coreia do Norte, mas não em relação a qualquer outro país com o qual Portugal tem relações diplomáticas?
A Coreia do Norte não é uma democracia liberal, é acusada de desrespeitar os direitos humanos e usa a sua capacidade nuclear para alavancar posições na resolução do impasse que resultou do armistício da Guerra da Coreia. Além disso, o seu sistema político permitiu desde a sua fundação, que a sucessão da sua liderança política tenha ocorrido entre familiares próximos. De um ponto de vista idealista e moralista, estas parecem ser razões válidas para que Portugal se mantenha fechado diplomaticamente a este país. No entanto, Portugal mantém relações diplomáticas com numerosos países que explicitamente não são democracias liberais e com um número ainda maior de países cuja adesão a este modelo é no limite, simbólica, há até países em que, imagine-se, a alternância política dentro dessa mesma democracia liberal é feita entre partidos tão parecidos entre si, que o formalismo demoliberal se torna irrelevante .
Quanto aos Direitos Humanos, se fossem critério de estabelecimento de relações bilaterais para Portugal, só a diminuição do orçamento do MNE poderia ser uma enorme contribuição para o equilíbrio das contas públicas. O fim da política externa portuguesa seria um problema para outros resolverem. Outros ainda, achando que a política externa portuguesa se deve limitar a dizer sim à NATO e à UE, achariam que pouco se perderia. Haveria ainda o problema filosófico de Portugal cortar relações consigo próprio, já que se é de direitos humanos que falamos numa perspectiva qualitativa e não quantitativa, as bolsas de pobreza que se agravaram nas crises de 2013, a violência policial contra imigrantes e cidadãos racializados poderia fazer de Portugal um estado pária perante si próprio.
Já quanto ao uso de um programa nuclear para alavancar vantagens em impasses políticos derivados de divisões fronteiriças resultantes do imperialismo e colonialismo, aguarda-se o fim das relações de Portugal com Índia, Paquistão e já agora, Israel (cujo programa nuclear é secreto)? E Quanto à sucessão no poder, Portugal mantém relações com pelo menos duas monarquias absolutas, a Arábia Saudita e o Omã. Se é de limitação de reconhecimento internacional que falamos, Portugal mantém relações bilaterais com o Estado Palestiniano, com o Kosovo e também um escritório de negócios de Taipé, entidades e Estados que têm reconhecimento internacional de alguma maneira limitado, por razões obviamente diferentes. Se é do risco de entrar em conflito com a ortodoxia das relações internacionais ocidentais que falamos, há que recordar que nem sempre Portugal seguiu essa ortodoxia de forma acrítica, Portugal tem posições próprias no que toca às sanções à Federação Russa, à República Islâmica do Irão e por exemplo em relação ao conflito Israelo-Palestiniano.
A política externa portuguesa tem uma história antiga e os seus sucessos mais recentes foram conseguidos exactamente quando Portugal se posicionou nos limites da ortodoxia da política internacional ocidental. O lugar de membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas no biénio de 2011/2012 e disputado com Alemanha e Canadá, países com maior peso político é disso demonstrativo, principalmente quando, pelo menos do lado do Canadá, existiram acusações de alinhamento com Estados fora da bolha que a diplomacia canadiana considerava aceitável. Note-se que uma das razões que levou a que esses apoios existissem foi o compromisso inequívoco para com a Solução de Dois Estados para o conflito Israelo-Palestiniano. Se esse compromisso é controverso para o pensamento hegemónico da diplomacia ocidental, o problema será da hegemonia e não da posição portuguesa. Ainda mais recentemente, no contexto da aquisição de material médico à China, a relação de Portugal com a China voltou a mostrar-se relevante, nomeadamente através de Macau, que é também um dos pontos pelo qual a Coreia do Norte continua a manter contacto com o exterior.
A Coreia Popular mantém relações diplomáticas e económicas com países de expressão portuguesa e um dos locais a partir do qual comunica com o resto do mundo é Macau. No caso do Brasil essas relações foram estabelecidas durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso e a actual administração Bolsonaro ainda não as colocou em causa. Se manter relações diplomáticas com este Estado implica uma adesão ao seu modelo de governação, há que rapidamente avisar Jair Messias Bolsonaro de que o Juche poderia não ser apropriado às condições materiais actuais da Républica Federal do Brasil.
Portugal ao normalizar as relações com este país colocar-se-ia como possível pivot na procura da solução para o impasse do paralelo 38, contribuição que poderia dar devido ao facto de estar integrado no Ocidente, ao mesmo tempo que, merecidamente ou não, mantém uma reputação de neutralidade fora dele. Essa participação daria a Portugal a oportunidade de ser um actor de pelo menos média dimensão numa zona do mundo cada vez mais importante. A hegemonia dos EUA não será eterna e Portugal deve acautelar as suas relações bilaterais para um cenário de ascensão de outras potências. Se a integração de Portugal na NATO e na UE, limitam seriamente a sua soberania a nível militar e económico, a diplomacia continua a ser um dos campos em que Portugal mantém margem de manobra enquanto estado soberano. A circulação de informação, pessoas e bens entre os dois países permitiria a todos nós ter finalmente uma visão clara sobre o modelo de governação de um país que dizemos ser isolado, mas cujo isolamento não é de maneira nenhuma uma fatalidade."
Foto: By Roman Bansen - Own work, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=26044641
Saúl Pereira