A Amazônia e o genocídio indígena
* Roberto Bueno
Professor Associado da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutor em Filosofia do Direito (UFPR). Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC). Mestre em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM). Especialista em Direito Constitucional e Ciência Política (Centro de Estudios Políticos y Constitucionales / Madrid). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito (UnB) (2016-2019). Pós-Doutor em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM).
O ataque aos povos originários do Brasil é tema tão grave quanto enraizado e recorrente na história do país. Sua complexidade não permite análise, por perfunctória que seja, de modo dissociado da realidade da Amazônia, e ambos tampouco podem ser considerados à parte do ataque à soberania brasileira e final captura do Estado brasileiro por parte dos EUA tal como hoje presenciamos. Este é o objeto e a linha analítica deste artigo.
Corria o ano de 1756 quando o notável líder dos povos originários brasileiros, Sepé Tiaraju (1723-1756), foi morto durante encarniçada luta que durou três longos anos contra os invasores espanhóis e portugueses no sulista Estado do Rio Grande do Sul. A sabedoria dos povos originários desenvolveu ao em sua cultura a compreensão de que o medo é a mais letal dentre as muitas outras armas letais. Sepé Tiaraju dispôs da coragem para liderar a luta pela liberdade e a vida dos seus, e ela está uma vez mais sendo requerida em face da gravíssima ameaça de extermínio que paira não apenas sobre os povos originários, embora desta feita não ela proveniente de poderio armado estrangeiro, mas desde forças políticas internas mobilizadas para servir o grande império norte-americano.
A questão indígena no Brasil não pode ser entendida de forma desconexa dos interesses do império que historicamente coordena o ataque à soberania brasileira em associação e já profundamente enraizada com as forças oligárquicas que operam no plano da política interna, articulação configurada na banca, o empresariado, as forças políticas antidemocráticas e o capital financeiro transnacional. Aliadas, estas forças construíram cenário de devastação da soberania política com vistas a expropriar as riquezas do país que foram sendo paulatinamente mobilizadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) em seus 13 anos de governo (2003-2016) para servir aos trabalhadores(as) através de diversos projetos políticos.
A corrosão do projeto soberano e desenvolvimentista voltado ao melhoramento das condições de vida popular e horizontalmente expansivo para todas as minorias atingiu gravemente aos povos originários brasileiros, coletivo historicamente desprezado pelas políticas públicas ou bem pela falta delas. Um dos mais importantes órgãos de Estado voltados para o cuidado dos indígenas, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio), foi criada em 05.12.1967, em plena vigência da ditadura militar brasileira perpetrada em 1964 contra o Governo popular legitimamente eleito de João Goulart. A missão institucional da FUNAI é de proteger e promover os direitos dos povos indígenas, razão pela qual ordinariamente a instituição esteve dirigida por especialistas na matéria, o que não ocorre no atual Governo militar brasileiro instituído e operante para, como declarou o Presidente Jair Bolsonaro, destruir as instituições de Estado, algo que somente favorece os interesses geopolíticos e a balança comercial dos EUA.
O projeto expropriador das riquezas brasileiras conduzido em termos radicais por Governo de orientação neofascista abre as portas e coordena a exploração da Amazônia por grupos privados, sem que grande parte da sociedade civil brasileira tome perfeita ciência de tratar-se de território que requer proteção em face da ganância que motiva o insano avanço do interesse econômico que sequestra o poder político que representa a população e assim franqueia passagem para a ação do crime organizado. Este quadro apresenta motivos suficientes para que reconhecer quão indispensável é reverter a presente negação aos indígenas do direito à demarcação de suas terras, das mais importantes e eficazes medidas para a proteção dos povos originários, tanto do ponto de vista físico como cultural.
A ameaça a forma de vida dos povos originários deriva das ações dos invasores interessados na extração de riquezas a qualquer custo, devastação ambiental inclusive. Em desfavor à proteção dos povos originários opera a presidência da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) que no dia 22.04.2020 editou a Instrução Normativa (IN) 09/2020 cujo teor era a declaração de reconhecimento de limites, colocando em xeque 237 processos de demarcação de terras indígenas que aguardavam homologação. Esta IN indica a retomada de aspectos da política indigenista típica do regime militar ditatorial brasileiro derivado do golpe de Estado de 1964, segundo o qual o desenvolvimento econômico do país deveria sobrepor-se a todos os demais interesses ao lado da segurança nacional. A retomada desta política pode ser traduzida na assunção da posição de executor dos interesses dos grandes proprietários do capital, algo que contradita com os interesses da preservação da vida, da cultura indígena e dos interesses da própria humanidade em manter as riquezas da biodiversidade e o notável acervo de diferenciação cultural.
Para a plena execução desta tarefa de exploração sem limites o capital privado encontra forte entrave na presença dos povos originários indígenas e de sua cultura e sua relação de proteção com o meio ambiente e, portanto, o seu extermínio vem a calhar para os propósitos de exploração radical, o que concretiza a preocupação com a circunstância de alta ameaça de extermínio de cerca de 110 povos indígenas que vivem na região entre aqueles identificados e livres e os isolados. É preciso considerar que a Amazônia é uma área territorial que transpõe as fronteiras brasileiras, e neste sentido é possível projetar que a sua exploração supõe algum impacto na soberania de outros países, e também as políticas aplicadas pelos demais países da região causam efeitos nos demais, do que foi exemplo o aumento dos focos de incêndio no Brasil e na Bolívia em agosto de 2019, criador de espaços para a exploração territorial e de pressão sobre a estabilidade ambiental da floresta Amazônica.
A Presidência da República sob Jair Bolsonaro publicou a Medida Provisória (MP) 910/20 beneficiando os invasores e desmatadores de terras públicas na Amazônia, pois premia com a titularidade de terras aos invasores e responsáveis por crimes no longo período compreendido entre os anos de 2011 e 2018, opção política com potencial para estimular o aumento de milhares de quilômetros quadrados em face do avanço da expansão agropecuária. Tendo perdido a validade por decurso de prazo para exame por parte do Poder Legislativo federal brasileiro, a MP foi substituída pelo Projeto de Lei 2.633/20, mantendo o objetivo de regularização fundiária de ocupações de terras da União em termos similares aos propostos pela referida MP. Esta é política de nefastas consequências ancorada nos preceitos da MP 910/19, que legalmente faculta a abertura do território aos interesses do capital econômico transnacional encarnado em desmatadores e exploradores de riquezas minerais, tal como ocorre nas terras públicas do Pará pela Chapleau Exploração Mineral, empresa multinacional de mineração de ouro cujas atividades geram importantes impactos negativos ao meio ambiente.
Medidas legais como estas visam facilitar a entrega da concessão de títulos de propriedade rural aos transgressores da lei, invasores de terras públicas, gente que dispõe de recursos econômicos para contratar pessoal e comprar armamento para dar apoio físico e violento às ações de tomada de posse de extensas áreas públicas. Este é o coletivo de atores que atos administrativos da Presidência da República beneficiam ao privatizar a coisa pública por título de outorga que reconhece a força e a expropriação como base legítima para a aquisição da propriedade, contraditoriamente a casos urbanos em que massa humana de deserdados realiza processo de apropriação de bens básicos à vida e são rigorosamente punidos pelo Poder Judiciário. A política do Poder Executivo legaliza o crime e premia-os com a propriedade de terras. A mensagem do Estado não poderia ser pior ao beneficiar aqueles que detêm mais meios econômicos e força e os empregam para apropriar-se pela força de bens públicos, e ao fazê-lo o Estado não exerce a função de árbitro de conflitos e mediação da distribuição de riquezas.
Os povos indígenas também foram atingidos pelo Governo neofascista brasileiro através do Projeto de Lei (PL) 191/2020 assinado pelo Presidente Jair Bolsonaro. O seu objeto é regulamentar a realização de pesquisa, exploração de minérios (ouro e minério de ferro, e de hidrocarbonetos, como petróleo e gás natural), de recursos hídricos (incluindo a construção de hidrelétricas) e orgânicos em terras indígenas, orientando a legalização da ocupação econômica das terras de propriedade indígena. O PL 191/2020 encarna projeto de liquidação dos povos originários ao franquear a invasão de seus territórios, ao desterritorializá-los, comprometendo suas mais elementares condições de existência e violando os seus direitos constitucionalmente previstos.
Estas políticas foram precedidas por vários discursos de Bolsonaro desde o período da campanha eleitoral de 2018, repetindo a exaustão que uma de suas prioridades era a exploração econômica das terras indígenas sob o argumento da subexploração de riquezas, a exemplo do que supostamente ocorria nas terras de um único Estado, Roraima, sob as quais existiriam R$3 trilhões em riquezas sob a terra, enquanto os indígenas sobre ela viveriam na pobreza, e que eles "têm o direito de explorá-lo de forma racional". De forma persuasiva ao alcance de amplos setores populares o então candidato afirmava que "O índio não pode continuar sendo pobre em cima de terra rica", conseguindo, inclusive, mobilizar e trazer à público consigo alguns indígenas já aculturados e aclimatados às ganâncias que o capitalismo pode oferecer.
O atual projeto político neofascista é exposto em sua substância pela avaliação da líder indígena coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas (APIB) e também política de expressão nacional, Sônia Guajajara, de que o Presidente da República tem como "sonho" e meta maior a eliminação e "fim dos povos indígenas", ou seja, que "Ele (Bolsonaro) ainda disse no seu discurso que isso é um sonho e que nós indígenas somos tão brasileiros quanto eles, os não indígenas. O seu sonho, senhor presidente, é o nosso pesadelo. É o nosso extermínio! Pois o garimpo provoca mortes, doenças, misérias e acaba com o futuro de toda uma geração. Nós sabemos que o seu sonho é realmente o genocídio institucionalizado. Mas não vamos aceitar a mineração e as hidrelétricas em nossos territórios". Tal ideologia expressa o núcleo do neofascismo contemporâneo, que reconhece na maximização de interesses econômicos a sua única prioridade, inclusive sobre a vida humana.
O Presidente Bolsonaro é devedor de pensamento que compreende os povos indígenas como "inferiores", percepção compartilhada por vastos setores militares que hoje são a sustentação do Governo, chegando a pronunciar que os indígenas devem realizar movimentos de aproximação "a nós", sendo deflagrador deste processo a sua declaração de janeiro de 2020 de que "O índio mudou, está evoluindo, cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós. Então fazer com que o índio cada vez mais se integre à sociedade e seja realmente dono da sua terra indígena, é isso que nós queremos". Não transcorreu um mês quando no dia 05.02.2020 declarava o Presidente Bolsonaro que "índio é humano como a gente, tem coração", algo que finalmente lhe valeu mais um processo judicial por racismo. Subjaz a estas manifestações uma política indigenista etnocida.
Uma das vertentes que orienta a política de expropriação econômica concebida pelo grande capital neofascista transnacional que instrumentalizou o Governo brasileiro sob o real controle das Forças Armadas é a concepção anti-indigenista. A ideologia e os interesses econômicos de fundo desenham o apoio à política integracionista reiteradamente repelida pelas instâncias representativas dos indígenas como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), política expressa no dia 06.02.2020 pela Presidência da FUNAI ao nomear ex-missionário evangélico, Ricardo Lopes Dias, para desempenhar as funções de Coordenador-Geral e protetor de indígenas isolados ou daqueles recentemente contatados.
A crítica ao desempenho dos missionários foi articulada por vários dentre os indigenistas, dentre os quais o célebre antropólogo Darcy Ribeiro, ao alertar para que os missionários representam evidente risco, dado que a aplicação de eventual "[...] zelo sagrado se converta em fúria de intolerância fanática contra a cultura tribal, sobretudo em seus aspectos tidos como mais claramente heréticos". Sob esta perspectiva a nomeação do ex-missionário evangélico Dias ganhou relevância e extrema resistência até mesmo por parte da relatora da ONU para o direito dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, posto que Dias é militante da organização Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) cujos propósitos incluem a evangelização de indígenas. Isto produz o colapso da cultura indígena, pois subverte o sistema de referências socioculturais e de suas crenças, razão suficiente para sofrer condenação por indigenistas e antropólogos que reconhecem o potencial genocida das populações indígenas.
O modelo político integracionista alimentado pelo Governo brasileiro consome a cultura indígena e revela seu anti-indigenismo militante, provocando resultado de extermínio e dizimação de povos inteiros, tanto dos já contatados como daqueles que o foram violentamente. O esforço das autoridades públicas para implementar a integração dos indígenas é descrito por Darcy Ribeiro quanto às suas consequências, e aponta para que a política indigenista federal impõe "[...] imensos danos às tribos despojadas de suas terras, perseguidas pela intolerância de funcionários boçais e abandonadas a seus perseguidores e exploradores seculares".
A persecução aos povos originários não cessou desde o primitivo encontro entre a cultura autóctone e os europeus em função de suas descobertas marítimas perpassadas por pretensões de colonização e expropriação das riquezas dos novos continentes. Consigo trouxeram enfermidades com potencial de vitimar multidões de indivíduos, mas não menos letal foi o perfil de sua cultura determinada pelo eurocentrismo e profunda convicção de sua superioridade cultural e, no limite, do compartilhamento de vastos setores "civilizados" de que os indígenas eram "não-humanos", o que franqueava caminho para a sua escravização para desenvolver atividades produtivas assim como a ilimitada expropriação de suas riquezas.
Este modelo é compatível com a sua classificação como "neocolonialista e etnocida", endereçado a interditar o processo civilizatório enquanto pautado pela diversidade e diferença cultural. Esta é a típica visão de mundo motivadora das políticas do Governo brasileiro concebidas para aplicação a coletivos que sejam classificados como empecilho para os objetivos do regime e seus associados, que colocam os benefícios econômicos sobre todos os demais bens da vida e da própria existência humana. Uma das nefastas dimensões desta peculiar política etnocida encontra manifestação na indiferença das autoridades federais brasileiras para conceber estratégias e providenciar recursos para que os indígenas pudessem fazer frente ao avanço do Covid-19.
Enquanto a expansão do Covid-19 era alvo de sucessivas notificações, as mortes entre os povos originários do Brasil iam avançando à sorrelfa. Em meados de junho foram vitimadas pelo Covid-19 significativas lideranças como Paulinho Kayapó e Dionito Makuxi, que expressam a vulnerabilidade dos povos originários às doenças imunes e respiratórias. Até o momento foram consolidadas notícias que permitem avaliar a situação como calamitosa, enquanto a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) confirmava que até o dia 16.03.2020 o total de casos atingia 3.079 e o de óbitos já contabilizava 103. Dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) indicavam no dia 14.06.2020 que a situação já era bem pior, com um total de infectados contabilizados na ordem de 5.361 e o total de óbitos correndo ao redor de 281.
A variação destes números descreve a situação de descontrole e falta de determinação de política sanitária específica e efetiva por parte das autoridades do Governo Federal brasileiro para o combate à Covid-19. A gravíssima situação da expansão do vírus entre os indígenas foi denunciada pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) paralelamente ao ignominioso silêncio das autoridades públicas, omissão a prestação de auxílio médico e da disponibilização de benefícios emergenciais, a exemplo do ocorrido com os povos Guarani Kaiowá, cujas cestas básicas foram cortadas pelo Governo Federal.
A tragédia entre os indígenas foi minimizada em alguma medida tão somente em face de suas próprias ações, por exemplo, tentando fechar os seus territórios logo nos primeiros momentos da pandemia. A tragédia imposta pelo Covid-19 aos indígenas foi potencializada pela altíssima exposição sanitária dos indígenas, fato agravado pela dificuldade de efetivar o bloqueio de suas terras, dadas as sucessivas invasões de que são alvo por garimpeiros, grileiros de terras e madeireiros altamente motivados e que não mantém resguardo sequer em tempos de pandemia, atores que encontram apoio implícito ou explícito das autoridades, que compreendem as mensagens do Governo Federal orientadas a proteção de seus interesses econômicos a qualquer custo, inclusive das vidas dos povos originários.
Sob os auspícios de Governo de matiz neofascista comprometido com a negação das previsões constitucionais mais elementares, o Estado brasileiro põe em prática a negação de apoios que já Darcy Ribeiro anunciava ser dever estatal, a saber, "[...] ajudar o grupo indígena a curar-se das pestes da civilização que apodreceram seus corpos [...]" e, especificamente no presente e crítico caso, de uma peste flagrantemente gestada no mundo "civilizado". Esta omissão é qualificável como criminosa em face da extensão de sua letalidade para os indígenas, algo que recebeu poderosa síntese na voz da liderança indígena e política, Sônia Guajajara, ao proferir em 06.02.2020 que "O seu sonho, senhor presidente, é o nosso pesadelo. É o nosso extermínio".
Sob as espessas nuvens de um momento tormentoso concebido pelo neofascismo norte-americano que desenha horizonte de destruição e proliferação das mortes podemos divisar esperanças ao retomar o espírito próprio dos povos originários encarnados na coragem de Sepé Tiaraju, traduzido e atualizado pela capacidade reativa dos povos originários, pois como dava notícia recentemente em fevereiro de 2020 o Arcebispo de Porto Velho, Dom Roque Paloschi, "Uma liderança indígena daqui de Rondônia, diante das tantas ameaças e retiradas de direitos, levantou a voz e disse: 'são 520 anos de resistência, não é esse presidente que vai meter medo na gente'. Eles continuarão lutando contra toda ameaça a sua integridade física, cultural e territorial". A disposição para a luta tão típica dos povos originários hoje ameaçados desativa a raiz da paralisia imposta pelo medo que pavimenta o caminho para o extermínio de massas ambicionado pelo moderno neofascismo.
Foto: Por Fonte, Conteúdo restrito, https://pt.wikipedia.org/w/index.php?curid=6059157