Acirramento da competição interestatal engole Governo Bolsonaro
Por Fabio Reis Vianna, analista geopolítico.
Quando, no dia 2 de dezembro, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou a taxação do aço brasileiro e argentino, restabelecendo a vigência imediata das "tarifas de todo aço e alumínio enviados aos Estados Unidos por esses países", os amadores integrantes do Governo Bolsonaro não conseguiram esconder a incredulidade em suas faces de decepção.
Mesmo com a realidade caindo sobre suas cabeças, a cegueira do alto escalão do governo a respeito do momento geopolítico atual é tamanha, que o único personagem que talvez tenha dado alguma pista de compreensão foi o vice-presidente general Hamilton Mourão, ao fazer um paralelo entre o ocorrido e o que, segundo suas palavras, diria respeito a uma "característica dessa tensão geopolítica que nós estamos vivendo, que gera protecionismo (e) é um movimento anticíclico em relação à globalização".
Mesmo que suas palavras façam sentido, o que parece fugir a compreensão do vice-presidente da República e dos membros do atual governo como um todo é a realidade mais profunda do mundo multipolar que vem se descortinando gradualmente desde o início do novo século e que, segundo o professor da UFRJ José Luís Fiori, se intensificou entre os anos de 2012 e 2013 com a eleição de Vladimir Putin e a chegada ao poder de Xi Jinping.
Ou se afastam dos adversários dos EUA e se
alinham caninamente, ou sofrerão consequências
Cabe ressaltar, porém, que este mundo multipolar mal compreendido pelos estrategistas do atual governo brasileiro (se é que eles existem...), de forma alguma é aceito pela potência hegemônica atual.
A confortável hegemonia em um mundo unipolar, conquistada pelos Estados Unidos desde a derrocada da União Soviética, agora se vê desafiada por novos atores que, por consequência, tensionam e intensificam a competição interestatal.
Demonstrando o total descompasso do atual governo brasileiro com a realidade do sistema internacional deste início de século XXI, é sintomática a reação de integrantes da equipe do ministro da economia, Paulo Guedes, às palavras de Trump.
Nas palavras de um dos auxiliares de Guedes, "Trump sempre foi claro ao dizer que o Brasil é muito fechado. Você precisa (de) algo como: 'O Brasil apresentou um plano melhor para as companhias americanas, então eu vou voltar atrás da decisão de elevar as tarifas'".
Na lógica, no mínimo, ingênua da equipe do Sr. Guedes, bastaria, portanto, apresentar às autoridades norte-americanas um plano bem elaborado de abertura comercial, e então Trump recuaria.
O fato concreto é que o governo brasileiro parece perdido e sem compreender a nova configuração da ordem mundial multipolar, não se dando conta da profundidade do acirramento da competição interestatal entre, o que nas palavras do professor Fiori, seriam "as três grandes potências que lutam pelo poder global neste início de século XXI".
O último encontro do Brics, realizado em Brasília no mês de novembro, foi sintomático quanto ao grau de (des)preparo das autoridades brasileiras em lidar com o atual cenário de disputa global.
Sintomático e preocupante, porque os acontecimentos que permearam aquela cúpula e a reação (ou não reação) dos presidentes convidados Xi Jinping e Vladimir Putin a esses acontecimentos demonstraram a sutileza e o cuidado com que Rússia e China buscaram se colocar neste "campo minado" que é a América do Sul atualmente. Um território tão complexo e essencial aos seus interesses expansionistas.
China e Rússia, na Cúpula do Brics, mostraram
saber que diplomacia e paciência convivem
Apenas três dias antes do início do encontro do Brics, no dia 10 de novembro, um golpe de Estado se desenrolara na Bolívia, um dos poucos países da região que ainda mantinham uma relação estratégica com o eixo eurasiático, e em especial a Rússia, que projetara junto ao ex-presidente deposto Evo Morales a construção de uma sofisticada central nuclear no altiplano boliviano, bem como planos para a exploração de lítio e o desenvolvimento da agricultura local. Os documentos referentes aos ambiciosos projetos haviam sido assinados em julho, quando Morales fez uma visita diplomática à Moscou.
Isso poderia ser mera coincidência, se a libertação do ex-presidente Lula não tivesse ocorrido apenas dois dias antes, no dia 8 de novembro.
Além de maior adversário do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, Lula é responsável direto pela criação e sucesso do Brics e pelo estreitamento das relações entre as nações da América do Sul.
Em suma, o ex-presidente Lula, para além de se manter muito popular entre as classes menos favorecidas no Brasil, o que o transforma automaticamente em uma ameaça, foi o responsável direto por alçar o país à condição de player global para além de sua região e ao mesmo tempo por articular, a partir do Brics, uma entrada mais consistente das potências eurasiáticas no cenário sul-americano.
No dia 13 de novembro, ocorreria a abertura oficial da cúpula do Brics, com a presença de Vladimir Putin, Xi Jinping, Narendra Modi e Cyril Ramaphosa, que seriam recebidos no Palácio Itamaraty pelo presidente Bolsonaro.
Na manhã daquele mesmo dia 13 de novembro a embaixada venezuelana em Brasília seria invadida por um grupo ligado ao autoproclamado presidente Juan Guaidó. O que viria, de certa maneira, a ofuscar o início da cúpula do Brics.
No Brasil, alguns analistas mais apressados chegaram a sugerir que aquela invasão teria os tentáculos de setores fundamentalistas do Governo Bolsonaro instalados na chancelaria brasileira, chefiada pelo inacreditável ministro Ernesto Araújo.
No entanto, ao ligar os pontos, poderíamos supor que haveria alguma conexão entre os acontecimentos ocorridos ao longo daquele agitado mês de novembro, mesmo que esta conexão não siga, necessariamente, uma lógica linear ou que a ausência de um dos acontecimentos anulasse a ocorrência de outro.
Pelo prisma da disputa pelo poder global entre Estados competidores - o que muitas vezes se descola, inclusive, da própria lógica econômica - os acontecimentos de novembro fariam sentido se olhados de maneira sistêmica.
A nova estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos - anunciada no dia 18 de dezembro de 2017 - viria oficializar o que, na prática, já vinha ocorrendo desde quando os emergentes Rússia, China, Índia e até mesmo o Brasil de Lula começaram as investidas expansionistas na África e na América Latina, e se intensificou quando a Rússia, em demonstração de força sem precedente, decidiu em 2015 intervir na Síria, definindo os rumos da guerra. Para os Estados Unidos era preciso colocar um freio naquilo. Custe o que custar.
Sendo assim, tanto o golpe militar ao estilo "clássico" e sem disfarces na Bolívia, quanto a invasão à embaixada venezuelana e até mesmo o anúncio da taxação do aço feita por Trump através do Twitter seriam um recado e teriam a mesma mensagem subliminar: ou vocês se afastam de nossos adversários e se alinham à nossa estratégia, caninamente, ou sofrerão as consequências.
O Brasil se vê neste momento em uma autêntica, e sem meias palavras, "sinuca de bico" histórica. Uma das questões mais delicadas do cenário atual é a guerra tecnológica (disfarçada de guerra comercial) envolvendo a gigante chinesa Huawei.
Representação mais visível do avanço da competição no processo que poderia ser nomeado como a Quarta Revolução Industrial, a disputa em torno da tecnologia 5G se tornou uma das pontas de lança das forças expansivas que se chocam a medida que se intensificam as disputas por poder e influência no sistema mundial.
Depois de já ter perdido a oportunidade de participar de mercados importantes como os da Austrália, Nova Zelândia, Japão e Taiwan, que fecharam suas portas devido a restrições impostas pelos norte-americanos, o leilão para a introdução da tecnologia 5G no Brasil, originalmente marcado para o ano de 2020, seria uma oportunidade de ouro para que os chineses pudessem colocar em prática, e em um grande e importante mercado, todo o seu know how para a construção de uma vasta rede de quinta geração de internet móvel.
Como bem disse o embaixador chinês no Brasil, Yang Wanming, em novembro passado: "Estou confiante no sentido de cooperação entre China e Brasil na tecnologia 5G. O Brasil vai levar em conta o interesse no desenvolvimento do país."
A racionalidade chinesa expressada nas palavras do embaixador Wanming caberia perfeitamente se estivéssemos vivendo um período de normalidade nas relações internacionais; ocorre que não estamos, e a guerra tecnológica que tem como pano de fundo a corrida pela proeminência do 5G esconde o desafiador momento de transição entre ciclos longos da política internacional. Momento este em que a potência mundial, não mais plenamente capaz para o exercício de liderança do sistema político mundial, se vê desafiada por uma ou mais potências emergentes.
Vem sendo assim desde quando, por volta de 1560, a potência hegemônica da época, Portugal, se viu desafiada pela Espanha, que então assumiu a liderança do recém-nascido sistema mundial, para então ser desafiada pela Holanda e assim sucessivamente até os dias atuais.
Acuado em meio ao cabo de guerra travado entre chineses e norte-americanos, não caberá ao Brasil outra alternativa senão inventar uma boa desculpa técnica e adiar o leilão do 5G para, provavelmente, 2021. A Anatel já vem ensaiando o adiamento ao alegar que a rede 5G interferiria no sinal da TV aberta das zonas rurais, pois a transmissão é feita por antena parabólica.
No final das contas, a pressão que o governo brasileiro provavelmente esteja sofrendo nos bastidores por parte da administração Trump nos faz intuir que o anúncio da taxação do aço brasileiro via Twitter teria sim um viés retaliatório no que diz respeito especificamente à questão do 5G. Esta possibilidade é admitida, inclusive, pelo insuspeito economista ligado ao mercado financeiro André Perfeito.
O fato é que o encontro do Brics revelou um Bolsonaro bem mais dócil e receptivo à presença das potências eurasiáticas do que se poderia imaginar. Enfrentando uma grave recessão, ao governo brasileiro não restava outra saída senão aproveitar aquele momento para buscar investimentos junto aos parceiros de Brics.
Como velhos e experientes jogadores do tabuleiro global, Vladimir Putin e Xi Jinping souberam posicionar seus peões de maneira estratégica desde a chegada em Brasília até o último minuto em solo brasileiro.
Mesmo com a nada amigável invasão da embaixada venezuelana (aliada estratégica de Rússia e China) bem no dia em que seriam recebidos por Bolsonaro no Palácio Itamaraty, os nada ingênuos chefes de Estado eurasianos, astutamente, não passaram recibo e procuraram conciliar, ao longo de toda a cúpula, as posições convergentes entre todos os sócios.
A clara tentativa de sabotagem do encontro, no final das contas, apenas serviu para ressaltar o extremo cuidado com que Xi e Putin costuraram as tratativas, buscando evitar desagradar Bolsonaro em questões delicadas como a questão venezuelana - o que fez até que aceitassem que não ocorresse o tradicional encontro paralelo com países da região.
Essa postura vai ao encontro ao que disse o professor da UFRJ Alexander Zhebit sobre uma característica fundamental do Brics desde a sua criação. Segundo Zhebit, os elementos de concordância seriam essenciais para a manutenção da harmonia interna do grupo. Sendo assim, as divergências seriam amenizadas pela permanente negociação de pontos em comum.
Não por acaso, na declaração final do encontro, além da questão venezuelana não ter sido tocada, evitou-se até qualquer menção de apoio ao Irã (também aliado estratégico sino-russo no contexto eurasiático).
China e Rússia têm plena noção do papel de subserviência aos Estados Unidos que cumpre o Governo Bolsonaro e, como bons e velhos jogadores, têm a sabedoria de compreender a relação com o Brasil como uma relação de longo prazo.
Velhos países sabem que diplomacia e paciência convivem juntas, e de certa forma - como bem disse o pesquisador Oliver Stuenkel - Xi e Putin, estrategicamente, sabem que quanto mais isolado o Brasil estiver no cenário internacional maior será a importância deles.