Um pintassilva alçou voo do seu ninho na copa de uma caatingueira com o propósito de emigrar do Nordeste do Reino Unido do Pau-Brasilis, em busca de farinha, xerém ou, com muita sorte, alpiste e água fresca, produtos que andavam escassos, devido à seca que castigava a região.
por Fernando Soares Campos
Surfando numa corrente de ar, o pintassilva deixou-se levar por entre brancas nuvens em céu de brigadeiro, mas também, em momentos menos aprazíveis, enfrentou tempestades de poeira, até que numa manhã cinzenta sentiu vontade de tossir, seguida de ânsia de vômito. Tossiu e golfou o que lhe restava no estômago. Logo percebeu que estava mergulhado numa atmosfera extremamente poluída.
Lá de cima avistou gigantesco formigueiro entrecortado por inúmeras trilhas por onde incontáveis formigas trafegavam. "Onde tem tanta formiga, tem abundância de comida", pensou com a sapiência dos mais experientes passarinhos de sua espécie.
O pintassilva resolveu pousar para fazer o reconhecimento da região; porém, na medida em que ia se aproximando do solo, mudava de opinião sobre o que inicialmente parecia ter avistado, e aquilo que em maior altitude imaginou ser um formigueiro, agora, ainda que um tanto distante, já se delineava como gigantescas manadas de gado bovino... Mais alguns metros abaixo, dissipou qualquer ilusão de ótica, só aí divisou as imensas filas de máquinas andantes (ou rolantes) do tipo que às vezes passava em alta velocidade levantando poeira pelas estradas sertanejas.
A vegetação era escassa, mas as poucas árvores que ele enxergava eram, em geral, frondosas; algumas, além da densa folhagem, exibiam flores de cores diversas. Em meio àquele mundaréu de casas, edifícios, torres, chaminés, pontes e viadutos, havia uma grande moita verdejante ocupando uma área quadrada. O pintassilva mergulhou direto para lá e pousou na copa de uma figueira centenária. Logo ouviu os trinados de uma revoada de pardais. Em rápida observação, notou que a passarinhada que ali vivia se adaptara aos costumes da vida urbana e assim conseguia sobreviver empregando artifícios pouco convencionais aos de suas espécies nos habitats naturais.
No princípio o pintassilva de arribação decidiu se comportar como os pardais urbanos, fazendo malabarismo nos faróis de trânsito, capturando insetos e catando migalhas de pão que escapavam das vistas e bicos dos espertos pardais.
Certo dia ele pegou carona numa corrente de ar poluído e foi parar numa cidade portuária no litoral daquele mesmo Estado. Foi lá que, passeando pela orla marítima, sobrevoou uma mesa de restaurante especializado em frutos do mar, e um prato com sobras de iscas de polvo chamou sua atenção. O habilidoso pintassilva, em voo rasante, e se apoderou de uma generosa isca e degustou-a em pleno voo.
Sabe-se lá por que cargas d'água, o alimento provocou uma reação em seu organismo gerando fenômeno nunca antes detectado pela ciência. Deu-se, então, um processo metamórfico, e o raquítico pintassilva retirante da seca se transformou numa águia.
Alguns anos depois...
O pintassilva, agora transmutado em águia, voltou para a metrópole principal, tornou-se líder de revoadas de espécies diversas. Pardais, bem-ti-vis, sabiás, rolinhas, canários, pombos, até gaviões e aves marinhas apoiavam o movimento revolucionário por ele encabeçado.
Naquela época, o Reino Unido do Pau-Brasilis vivia sob o governo de um urubu-atucanado travestido de condor. A turba depôs o urubu-atucanado que nada tinha de condor, mas, sim, condottiere, e o pintassilva-aquilino assumiu os destinos do reino.
O aventureiro urubu-atucanado havia deixado a nação no mais lamentável estado de penúria, um miserê nunca antes experimentado pelos reino-unidenses, também conhecidos por paus-brasileiros. Durante o reinado do urubu-atucanado, o Reino Unido do Pau-Brasilis tornara-se submisso aos ditames da Fauna Mamífera Internacional (FMI) e empobrecido pela pilhagem a que os autóctones comparsas do monarca entreguista se aventuraram durante muitos anos, saqueando os cofres públicos e vendendo quase todo o patrimônio do Reino a preço de banana na hora da xepa.
Em quase uma década de reinado, o pintassilva-aquilino havia conseguido resgatar grande parte dos pardais, rolinhas, bem-ti-vis, sabiás e tantas outras espécies que, durante séculos, de geração a geração, viviam em extrema pobreza, verdadeiramente escravizados. Toda a fauna miúda, que nunca antes na História havia tido a atenção dos governantes, agora frequentava universidades, escolas técnicas, tirava férias e já nem precisava se desgastar batendo asas para percorrer longos percursos, pois passou a viajar confortavelmente de avião, comprava em shopping e dormia sob ar condicionado.
O pintassilva-aquilino, depois de colocar a economia do Reino em dia e implementar os mais necessários programas sociais, decidiu transmitir o poder a uma andorinha-rainha.
O instinto materno fez com que a nova governante, além de dedicar esforços pela educação da passarada, empreendesse a construção de milhões de novos e decentes ninhos, onde todos pudessem se reproduzir e criar seus filhotes com dignidade, protegendo-se da sanha predadora de gaviões e tantas outras aves de rapina, como o tucano, que tem o mau hábito de alimentar-se de ovos e filhotes de outras aves.
O golpe
O invejoso urubu-atucanado vivia no ostracismo a que os governantes corruptos devem ser relegados (sem prejuízo das ações penais às quais a lei possa submetê-los). Porém... eis que o empalhado tucano, à maneira de múmias reanimadas, sai do seu esconderijo, de onde, em conluio com antigos comparsas e com a ajuda de um bando de urubus malandros, firmando pacto até mesmo com famintas ratazanas e se utilizando de multidões de patos e marrecos úteis e inúteis, investe em revoada contra o governo democrático da andorinha-rainha.
Golpeado o governo da andorinha-rainha, o urubu-atucanado e sua gangue decidiu que, a partir de então, o Reino Unido de Pau-Brasilis seria governado não por aves, mas, sim, pelas ratazanas e rastejantes serpentes, com as quais firmara pacto para, juntos, executar os planos golpistas.
Os predadores receberam o apoio das corujas pseudo-sábias-justiceiras, inconformadas com a andorinha-rainha, visto que esta lhes negou aumento de ração, pois elas queriam que lhes fosse concedido o direito à rapinagem noturna muito acima de suas necessidades.
No princípio, tudo parecia correr bem, as aves de rapina, os traiçoeiros roedores e víboras peçonhentas pareciam felizes, faziam de tudo para que a população acreditasse que o golpe teria sido um sucesso em benefício de todos, espalhavam pelos quatro cantos da floresta, até além dos limites do Reino Unido do Pau-Brasilis, que os incêndios criminosos que eles mesmos haviam produzido teriam sido provocados pelos seguidores da andorinha-rainha e do pintassilva-aquilino, este passou a ser perseguido como um criminoso, foi declarado inimigo número um da plumada nação.
Contudo, logo a passarada descobriu que fora enganada e, apesar da difamação contra os ex-governantes, por onde os urubus, os roedores e as víboras peçonhentas passavam, chefiados pelo urubu-atucanado, toda a fauna se manifestava em retumbante protesto:
- Pipipipipi... Piratas! - piavam os pardais.
- Corru... corru... corru... Corruptos! - arrulhavam os pombos.
- Kem?! Kem?! Kem?! - grasnavam os ingênuos patinhos amarelinhos.
Moral da história nunca antes moralizada: patos que pensam que raposa só come frango acabam fritos nas panelas que bateram.