O fato político mais importante da semana não foi a eleição de Marchezan para a Prefeitura de Porto Alegre, que isso significa apenas mais um passo atrás numa cidade que já pretendeu estar na vanguarda nacional, mas sim a divulgação do manifesto do PT do Rio Grande do Sul em favor de uma reformulação do partido, numa assembleia da qual participaram todos os seus principais nomes no Estado.
Diz o manifesto: "Estamos submetidos e no auge de uma poderosa operação de cerco e tentativa do aniquilamento do PT. Operação que impôs o impeachment, a maior derrota eleitoral da nossa história e - se não a detivermos - buscará prender Lula e destruir o Partido".
Mais adiante, o manifesto aponta para as causas dessa situação: "O golpe decorre, em alguma medida, de nossos erros e/ou do atraso em tomarmos determinadas decisões, da ausência de uma estratégia adequada ao período, de uma política de alianças superada, do que fizemos ou deixamos de fazer na política econômica e nas chamadas reformas estruturais, no atrasou ou na ausência de reação à altura da ofensiva inimiga".
O manifesto termina por propor o que considera o fundamental para mudar a situação: a escolha de uma nova direção nacional do PT e a realização imediata de um congresso nacional do partido.
"Neste contexto, o Partido precisa debater o que fazer e escolher uma nova direção. Precisamos realizar imediatamente um congresso partidário. Um congresso que tenha início nas bases, no encontro de nossa militância consigo mesma. Um congresso que discuta como recuperar o apoio do PT na classe trabalhadora brasileira, razão de nossa existência como organização e partido político".
Se estas medidas serão suficientes para inverter a tendência que aponta para o esvaziamento do partido e mais, se elas terão guarida junto as demais secções estaduais do PT, que sempre estiveram mais à direita do que a gaúcha, são questões em aberto.
O que pretendemos aqui é propor mais alguns pontos à uma discussão, que não deveria ser exclusiva do PT, mas de todos os representantes da esquerda brasileira e principalmente de todos nossos intelectuais progressistas.
As duas maiores lideranças do partido no Estado, falaram sobre o passado e o futuro do partido.
Olívio Dutra: ""O PT nasceu de um processo de lutas do povo brasileiro no final da década de 1970 que não tinha por objetivo apenas enfrentar a ditadura, mas também as políticas da elite brasileira. Uma ferramenta política com essa história não se esgota assim. O teto da casa caiu, mas não o seu alicerce e os seus fundamentos".
Tarso Genro: "Somos um partido em crise porque reduzimos nosso eleitorado, porque perdemos referenciais éticos e políticos e também porque perdemos centralidade programática. Precisamos de um congresso profundo que não rejeite enfrentar nenhum tema. Autocrítica não é autoflagelação nem transformar o partido em delegacia de polícia, ma s sim verificar que condições trouxeram o partido para o ponto em que está".
Esta é a primeira e grande questão.
O partido não pode aceitar discutir uma pauta imposta pela mídia. Não é uma questão ética ou moral que deve ser objeto de discussão, mas sim, uma questão política.
Como Tarso disse com precisão, não se pode transformar o partido em delegacia de polícia, nem seus membros devem partir para uma autoflagelação. O PT tem regras de comportamento para seus membros e quem não tiver agido com correção, deve ser punido, da advertência à expulsão.
Tudo muito simples.
O que precisa ser discutido é quais são as propostas do PT para o futuro e para se olhar o futuro, não se pode esquecer o passado, para que não se use em relação a ele aquela célebre frase de Marx sobre o 18 Brumário de Louis Bonaparte de que " a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda, como farsa.
Quando Tarso fala e ele há muito fala nisso, em se refundar o PT, precisa ficar claro como seria esse novo partido.
Em 1989, quando enfrentou Fernando Collor no segundo turno das eleições, Lula, a partir do apoio de Leonel Brizola, uniu toda a esquerda na mais importante campanha política do Brasil republicano.
Naquela ocasião, os dois campos estavam claramente definidos.
Era a esquerda contra a direita, sem quaisquer nuances.
De um lado, Lula, um líder sindical, até então, não só aceito pelo establishment, mas promovido como uma alternativa mais palatável do que o brizolismo, visto como o grande inimigo e que agora se unia à esquerda mais radical.
Do outro, Collor, um aventureiro político, representante das oligarquias nordestinas, vestido como uma capa de moralidade administrativa (o caçador de marajás) e que se encaminharia, no decorrer da disputa eleitoral, para um autoritarismo quase fascista.
Lula chegou àquela final embalado numa proposta socializante que, se vencedora, teria força suficiente para mudar radicalmente o Brasil.
O esforço desesperado do empresariado e da grande mídia, representada claramente pela ação deletéria da Rede Globo na manipulação do debate final entre Lula e Collor, mostra como as elites brasileiras se mobilizaram para derrotar a esquerda.
A derrota naquela ocasião abalou quase tanto a unidade das esquerdas como foi a do golpe militar de 1964.
Nas eleições seguintes, contra Fernando Henrique, o PT jamais conseguiu uma mobilização semelhante à disputa contra Collor e foi facilmente derrotado.
Já a eleição de Lula em 2002 teve dois novos componentes bastante claros: o descalabro do último governo de Fernando Henrique, que praticamente quebrou o País e desarticulou as forças partidárias que o sustentaram e as políticas de aliança do PT com partidos de centro, num movimento que o levaria cada vez mais em direção à direita.
A questão que se coloca hoje para os que defendem a refundação do PT, é qual partido que eles querem de volta: o de 1989, que enfrentou Collor ou o de 2002, que derrotou Serra?
A resposta a esta pergunta é que vai determinar o seu futuro.
Quando surgiu, o PT foi visto com simpatia até mesmo por segmentos mais à direita da sociedade e apontado pela mídia, inclusive pela Veja, como uma novidade positiva, principalmente pela sua preocupação em desvincular o sindicalismo brasileiro do apoio governamental.
Brizola, na sua história de amor e ódio ao PT, disse que ele era a esquerda que a direita gostava e tinha um pouco de razão no que afirmava.
Os inimigos então, eram Brizola, os comunistas e os sindicatos dominados pelos "pelegos".
O PT era como os pequenos times de futebol, sempre simpáticos, até crescerem o bastante para se tornarem inimigos.
Hoje o PT é o inimigo principal a ser batido, como foram Brizola e os comunistas no passado.
A outra importante questão é de que forma ele pretende interagir com os demais segmentos da esquerda brasileira no futuro.
Se com aquela soberba de quem se sente o único portador da verdade, como foi sua marca, muitas vezes, no passado ou como mais uma força - talvez ainda a principal - num grande movimento que lute por avanços fundamentais para a nossa sociedade?
Essa é a questão crucial para o partido e para o Brasil.
O que ele pretende ser dentro de uma nova frente de esquerda?
Um partido com viés sindicalista interessado mais em conquistas pontuais para favorecer a classe trabalhadora, como foi no seu início ou partido socialista, que compreende e aceita a existência da luta de classes e age dentro dela sem concessões à burguesia?
Se o caminho for o segundo, o PT poderá ser a principal força dirigente de um grande movimento que, se ainda não coloca como meta a erradicação do capitalismo, não olha para este objetivo apenas como uma utopia distante.
Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS