Práticas usuais do capital internacional, amparadas no poder do Estado, ainda que os credores sejam entidades privadas, são didáticas. Em 1982, na insolvência, "pressionado pelo governo americano, o Brasil teve de se submeter a uma série de exigências", registra O Globo, na edição de 02.09.2012, Economia, pg. 25 - Histórias Secretas da Dívida - O mês em que o Brasil faliu.
por Francisco V. C. Junior
Nessa linha, a execução do Plano Real, apresentado como solução econômica com objetivos sociais, diante da escalada inflacionária no país, relaciona-se às exigências do FMI, na década de 1990, onde o Estado brasileiro deveria estabilizar da economia, como garantia de que o Brasil continuaria a pagar aos seus credores, sócios do FMI, os juros da irresponsável dívida externa, acumulada até 2002.
Muitos "esquecem" esses detalhes da História recente do Brasil, do período em que o país se ajoelhava diante do FMI, das missões do Fundo recebidas como convidados de honra, ainda que portando maletas repletas de exigências dos credores, uma verdadeira afronta à soberania nacional. Em que condições a dívida externa foi renegociada? Por que a auditoria foi recusada?
Entre as ordens a serem cumpridas, de forma submissa, pelo Estado brasileiro, o "Estado Mínimo", um conceito proposto pelos economistas neoliberais, onde a ponta-de-lança era a redução da participação do Estado na economia. Segundo eles, a presença do Estado na economia era excessiva, inibia a livre concorrência, um dos pilares do capitalismo moderno, dominado pelo sistema financeiro. O Estado era um obstáculo ao processo de expansão do capitalismo financeiro, portanto precisava ser afastado.
Sustentado pelo impacto do Plano Real, a administração FHC executou um processo de privatizações a toque de caixa. Esse processo, questionável, impõe algumas questões. Onde foi utilizado o dinheiro das privatizações das estatais? Por que a Vale foi vendida por um valor tão irrisório? Como se explica a espetacular valorização pouco mais de um ano após a privatização? Má gestão anterior apenas ou podemos suspeitar de subavaliação ou até mesmo não avaliação das gigantescas reservas de minério que possuía?
Vale lembrar que a maior parte dos recursos usados pelos compradores saiu dos cofres do BNDES, via financiamentos com juros subsidiados. A sociedade brasileira, que contribuiu com seus impostos para criar as estatais, acabou, sem possibilidade de contestação, obrigada a contribuir com seus impostos, origem dos recursos públicos, também com o processo de privatizações, cujos beneficiários eram, em bom número, empresas estrangeiras e/ou poderosos grupos/consórcios nacionais.
Hoje a Constituição é lembrada porque lá consta a previsão do impeachment, uma medida excepcional, uma garantia contra crimes de responsabilidade. O fantástico prejuízo financeiro causado ao país na década de 1990, nesse processo, valores de venda rebaixados, empréstimos subsidiados, recebimento de "moedas podres", não configura um crime de responsabilidade? Onde estão os juristas renomados, que se calaram diante disso? A Constituição foi promulgada em 1988...
A mídia empresarial orienta-nos a concordar com a violação do Estado de Direito, sob o argumento de que os meios justificam os fins, o combate à corrupção, secularmente tolerada, ocultada... Claro, necessário, obrigatório propor o seu fim. Mas será mesmo esse o único objetivo? A mesma mídia nos comprova que não, até porque não destacava sua existência antes. O combate à corrupção "sistêmica" é o "cavalo de Troia" para o objetivo maior, a reconciliação com o passado, o retorno à condição política colonial, aos limites econômicos determinados pelos países ricos. Cada um no seu quadrado...
Prisões preventivas para obter a delação, escutas continuadas e divulgadas, após decidido o seu fim, portanto ilegais, aceitas como provas. O julgamento e condenações impostos pela mídia empresarial. Fatos extremamente graves. A violação dos direitos individuais, garantidos na Constituição, é um precedente perigosíssimo. É notório que os investigados são escolhidos seletivamente. Por que não investigar TODOS? Amanhã, o que impedirá o uso dessa prática contra o cidadão comum, sob qualquer pretexto?
O que está sendo produzido no Brasil é o golpe "legal", o golpe "constitucional", a exemplo de Honduras, do Paraguai, baseado no julgamento político de um partido, sob algumas justificativas. A crise econômica resulta de uma combinação de fatores externos e internos. No entanto, o de maior peso refere-se à crise política criada para buscar a reversão do resultado das eleições, legais, democráticas, fora das urnas, mediante o impeachment. Isso configura uma agressão ao processo democrático, de forma irresponsável. O argumento da ilegalidade das pedaladas fiscais para fundamentar o crime de responsabilidade e deflagrar o impeachment é apenas uma formalidade, com embasamento jurídico discutível, para dar um caráter "legal" à derrubada do governo.
Se a economia estivesse como em 2010, 2011, 2012, 2013, a pleno vapor, as elites e a classe média torrando bilhões de dólares no exterior (US$ 15 bi em 2010, US$ 20 bi em 2011, US$ 22 bi em 2012, US$ 25 bi em 2013, US$ 25 bi em 2014, segundo o Banco Central), em bugigangas, em ostentação, comprando enxovais de bebê em Nova Iorque... elas não se manifestariam contra a condução da política econômica do governo, que na ocasião lhes era amplamente favorável.
Oculta-se, de outro lado, o crescimento das reservas internacionais do Brasil, em dólares, que saltaram de apenas US$ 37 bi em janeiro de 2003 para US$ 368 bi em janeiro de 2016, ou seja, as reservas cresceram cerca de 10 vezes em apenas 13 anos. Ora bolas, dirão os "técnicos", precisamos fazer a correspondência com o tamanho da economia. Não muda. Será proporcional. Basta lembrar que o "milagre econômico" dos anos 70, a estratégia de crescimento do governo militar era dependente de financiamento externo. Nesse contexto, a Petrobras, o carro chefe do nosso desenvolvimento econômico, tecnológico, incomoda muito os gringos, não é?
Afinal, onde está o erro do PT?
O maior erro do PT, pelo qual paga caro agora, politicamente, foi ter feito concessões a setores da economia que sempre buscaram no colo quentinho e cheiroso do Estado o apoio aos seus interesses, afastando-se da sua base popular, para tentar conciliar trabalho e capital. Deu no que deu. O governo estimulou a demanda, reduziu, por decreto os juros dos bancos oficiais para pressionar os bancos privados, abriu mão de receitas, como o IPI, que hoje fazem falta (as montadoras, por exemplo, lucraram como nunca, pois não abriram mão de um centavo de lucro), deixou de financiar a pesquisa, a inovação, por falta dos recursos dos quais abriu mão, redirecionando-o para alguns setores, atuando diretamente, portanto, na ampliação do mercado consumidor interno, um erro, pois isso não é papel do Estado.
Mas, é claro, o capital quer distância dos riscos, isso deve ser jogado para o Estado. A velha tática de socializar os prejuízos e privatizar os lucros, não é? A viúva não reclama... Assim foi com o processo das privatizações. Privatizaram os lucros, beneficiando um pequeno grupo e socializaram o preju para milhões pagarem o pato. Essa é a tática do sistema capitalista! Inteligente, não? O Estado submetido pelo capital.
Aliás, quem sempre pagou e vai continuar pagando o pato sem partido, é a sociedade, uma vez que não devemos ser ingênuos a ponto de imaginar o pessoal da Fiesp pagando impostos! Quem paga imposto é o consumidor final. Eles apenas recolhem ao caixa dos governos, municipal, estadual e federal o que cobram antes dos consumidores, já que repassam aos preços de seus produtos os impostos que lhes são cobrados.
Caso o golpe "constitucional" se concretize, as elites econômicas (indústrias, bancos, o agronegócio, os especuladores, etc.) vão concordar em reduzir suas margens de lucro para baixar a inflação, por exemplo, passar a investir na modernização do parque industrial, para aumentar a competitividade da indústria nacional?
Qualquer acordo que se pensar com o capital é apenas uma troca, um toma lá dá cá, assim como na política. Como diz Mészaros, in "Para Além do Capital", o que se imagina como conquistas sobre o capital, são meras concessões dele. Sua estrutura fundante é intocável.
Discutimos muito sobre este ou aquele sistema de governo, partidos políticos e esquecemos que somos esmagados pela ditadura econômica. O pior é constatar que sindicatos de trabalhadores assalariados, de forma equivocada se posicionam favoravelmente a ela. Trabalhe sem reclamar e agradeça por isso!
A reinterpretação da utilização do instrumento do impeachment como declaração de recusa aos resultado das urnas, implica na banalização desse instrumento legal, que deveria ser utilizado de forma responsável. Na prática significa a possibilidade da retirada do poder do voto, com a consequente transferência dessa decisão aos próprios interessados, beneficiários do processo. Finalmente vale lembrar sempre que, em hipótese alguma podemos concordar com práticas criminosas ou violações do aparato legal, o que significa dizer que a lei deve valer para T-O-D-O-S, sempre.
Francisco V. C. Junior - Professor de Geografia