Justiça à memória

Moscou, 9 de maio de 2015. É princípio de tarde e eu estou no Parque Górki à espera de uma amiga russa. Apesar do frio que surpreende a primavera, a mocidade com os seus dezoito, vinte anos dança alegremente ao som que vem do enorme palco azul. Em coro, cantam Katyusha, velha canção soviética de guerra.

Justiça à memória *

Moscou, 9 de maio de 2015. É princípio de tarde e eu estou no Parque Górki à espera de uma amiga russa. Apesar do frio que surpreende a primavera, a mocidade com os seus dezoito, vinte anos dança alegremente ao som que vem do enorme palco azul. Em coro, cantam Katyusha, velha canção soviética de guerra. Não há idade para a alegria: jovens e veteranos comemoram juntos com sorriso no rosto os setenta anos de vitória da Segunda Guerra. Fascinado, assisto ao espetáculo pensando na célebre frase de Ivan Lessa sobre a curta memória de meu país: "A cada 15 anos, o Brasil esquece o que aconteceu nos últimos 15 anos".

Muitos brasileiros tentam mudar esta realidade. Antes mesmo da redemocratização, artistas e intelectuais denunciavam a ditadura militar valendo-se das mais diversas linguagens: do teatro em "Liberdade, Liberdade", de Millôr Fernandes, até "Zero", romance de Ignácio de Loyola Brandão, ou talvez, o cinema de Olney São Paulo com o filme "Manhã Cinzenta". Ainda hoje os crimes cometidos naquele período são escancarados. Contar a história como ela ocorreu, por mais duro que seja, é trabalhar pela manutenção da democracia. A compreensão da História e a conscientização que dela se produz devem livrar o futuro dos erros já cometidos.

É nesse contexto que surge o filme "Avanti Popolo", de Michael Wahrmann. Abordando as lacunas que se alimentaram da ausência nos anos que decorreram, o longa-metragem  mostra as consequências psicológicas e sentimentais desenvolvidas em uma família a partir da perda de um ente durante a ditadura. Os passos do filho desaparecido estão registrados em uma série de películas 8mm que são exibidas ao longo do filme. Os diálogos entre André (André Gatti) e seu pai (Carlos Reichenbach) se desencontram, estão separados pelo vazio frio de um passado que não chegou ao presente. Avanti Popolo é um ensaio sobre a perda e sobre o nada, é a construção cinematográfica da partida de que Roberto Bolaño falava em seus romances.

Algumas vozes suspeitas se levantam contra esse tipo de produção, acusando-as de revanchistas e vingativas. A vingança é selvagem e desacredita a lei, escreveu o filósofo inglês Francis Bacon. Quando a arte é combativa ao crime e à violão de direitos, ela presta serviço à justiça. É o óbvio, mas amiúde o que é evidente precisa ser dito.

É indispensável que esse tipo de trabalho continue surgindo. Possivelmente um dia o ditado de Ivan Lessa não será mais verdade e poderemos assistir ao calor alegre de nosso povo sorridente comemorando o fim de um dos períodos mais brutais de nossa história moderna, setenta anos depois. Uma comemoração tão bela quanto a que assisti na Rússia.

Assista ao trailer de Avanti Popolo.

* André Rosa é jornalista.

 


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Timothy Bancroft-Hinchey