Zé da Ponte: Um grande Português!

Pretendo nestas poucas linhas prestar homenagem ao Humanismo do Zé da Ponte, escrever algo que não figura nas colunas na Imprensa, entendendo que Zé da Ponte merece muito mais do que umas linhas de ocasião, pois era e é, e será, um ícone da cultura portuguesa. Explico porquê.

José João dos Santos Águas Pontes, conhecido em Portugal por Zé da Ponte, faleceu ontem dia 29 de Janeiro de 2015. Não nos deixou. Poucos sabem mas passam agora a saber: poderia ter sido astro em qualquer parte do mundo, mas escolheu Portugal e lutou desde sempre para dignificar o seu país.

Quando conheci Zé Da Ponte no início dos anos 80, ele, com 25 anos, era já conhecido e eu tinha vinte e dois anos, desconhecido, começando minha vida profissional. O grupo Salada de Frutas tinha terminado e um novo projecto, Salada, efémero, começara e terminou e Zé estava a procurar uma internacionalização para sua música. Conhecemo-nos, e ele disse "Seu espírito é de poeta. Escreve poesias?" Eu disse que sim mas para mim só, e para mais ninguém. "E se eu dissesse para escrever a letra duma canção?" "Não acho que não, nunca fiz isso e acho que não é para mim". "Já tentou?"

Tipicamente, desde jovem, o dom de incentivar os outros a chegar a patamares que nem eles sabiam que tinham capacidade de alcançar.

Zé da Ponte introduziu-me ao mundo da música, introduziu-me aos seus conhecidos, na altura pessoas de renome no mundo do futebol, no mundo artística, dando dicas, ora elogiando, ora criticando minhas letras, e sempre ficou ao meu lado, durante duas décadas, em numerosos trabalhos, mesmo quando minhas letras eram o elo fraco do projecto.

Formou-se o grupo Zoom, autores Zé da Ponte e Guilherme Inês (música), eu próprio (letras), e da parte artística, figurou além do Zé e Guilherme, Formiga (vocalista feminina).  Seguiram dois álbuns, o primeiro "single" português a entrar nos Top 100 da Inglaterra na altura. A música era composta por Zé e Guilherme e as letras eram minhas, todas em inglês. Não havia versão portuguesa.

O que não se lê nas colunas que apareceram hoje, colunas escritas por amigos e conhecidos, o denominador comum sendo um grande respeito pelo trabalho e pela pessoa, é a dimensão ao que chegou Zé da Ponte na altura (Guilherme Inês também). A dimensão era estúdios de gravação do topo em Londres, a dimensão era almoços com músicos conhecidos, por exemplo Pete Townshend dos The Who.

Numa de muitas visitas a Londres com o Zé, estivemos num estúdio de gravação na zona ocidental da capital britânica, e entrou Pete Townshend. "Quem são eles?" "São de Portugal, eles trouxeram um álbum para a gente ouvir". Resposta: "BOoooooooooriiiiiiinggggggggg!"

Eu, indignado: "Quem é que esse tipo acho que é, lá por ele ser conhecido e nós não?" O Zé: "Calma, rapaz. O gajo já viu tudo mas ainda não viu a música portuguesa".

No dia seguinte, ao pequeno-almoço já no estúdio, a reverência do Townshend perante Zé da Ponte era notável. Tinha ouvido o álbum. Seguiu-se um almoço. Depois outros. A imprensa portuguesa na altura começava a interessar-se. Na altura, a dimensão do trabalho não foi correspondida por aqueles na área comercial que tinham a obrigação de colocar a música (não falo das letras) do Zoom ao nível que merecia, pois não era inferior a nada que estava sendo feito na altura. Até hoje, as músicas são válidas.

Passaram muitos anos, Zé da Ponte sempre envolvido na música, não só ao nível da Eurovisão, projectos em que interveio várias vezes como autor ou produtor, com numerosos artistas como Dora, Dulce Pontes e Tó Cruz, por exemplo, entre muitos outros, mas também na descoberta de novos talentos. Por exemplo Dulce Pontes. E tantos mais.

O que não se lê nas homenagens são as centenas, ou milhares, de projectos em que o Zé da Ponte se envolveu, ajudando músicos portugueses a aparecerem no palco português ou no mundo, sem qualquer pagamento em retorno, tocando o instrumento pelo qual era mais conhecido (baixo), mas também era cantor e também era um bom teclista. Tinha uma fenomenal capacidade de trabalho, escrevendo canção atrás de canção, às vezes duas ou três seguidas sentado ao seu piano, gravando a voz que eu depois desenvolvia em letras durante duas décadas nos anos 80 e 90.

Volto a dizer que a música do Zé da Ponte, e do Guilherme Inês, não era inferior a nada que estava a ser escrito na altura a nível mundial, nos anos 80. Zé da Ponte poderia ter tido sucesso em qualquer canto do mundo mas escolheu ficar em Portugal. Isso, a escolha de um visionário.

Em 1983, numa de várias visitas a Londres, entrámos num café em Queensway. "Olhe duas bicas," disse ele. Eu: "Mas é preciso dizer two expressos, Zé". "Deixe isso, fala-se português em qualquer parte do mundo!" E vieram os dois cafés à mesa. Durante a conversa sobre a evolução da música: "O Rap é que vai aparecer e ficar na cena internacional". Eu: "O quê é o Rap?" Zé da Ponte explicou, em 1983, o que era e o que seria. Repito: Mil novecentos e oitenta e três.

Deixo-vos com estas linhas, espero eu que deram uma dica sobre a pessoa que é Zé da Ponte. Suas músicas são muitas mais do que a maior parte das pessoas imaginam, sua presença como produtor ou mentor na cena musical portuguesa ao longo das últimas três décadas é, e será sempre, incólume. Sei que todos os que o conheceram estão a pensar a mesma coisa: "Não aceito". Mas lá estará o Zé da Ponte do outro lado a dizer que nem é preciso ele estar aqui, porque a gente sabe que está, e nem é preciso ele estar aqui para ajudar seus familiares e amigos porque eles sentem que ele está.  Os que sofrem hoje por causa disso sentem isso. Ao longo dos anos, ele iria mais pela gestão na Sociedade Portuguesa dos Autores, eu trocando o rigor das letras pela liberdade do jornalismo.

Tive a imensa honra de ter conhecido Zé da Ponte ao longo de três décadas, camarada e companheiro em muitas viagens, estúdios de gravação, estádios de futebol, mas também palestras sobre história (sim, ele era historiador também), restaurantes, grandes refeições. Tive a honra de estar com o Zé nos pontos altos e baixos da minha vida. Quando estávamos lá por cima, ele era humilde. Quando eu estava lá por baixo, ele levantou-me. Tive a honra de conhecer a família íntima do Zé, tive a honra de partilhar muitas horas de riso com ele e com eles em restaurantes, bares, miradouros, tertúlias, sentados ao longo das décadas em vários modelos de carros a ver o céu e o mar. A palavra do dia: Humor.

Sempre confiou em mim, sempre confiou em todos que tinham fé nele e sempre tentou ajudar os outros a encontrar aquela faísca na alma deles. Doente durante a maior parte da vida dele "Ó Zé, lamento ouvir isso". Resposta: "Mas eu diria que viver com isso é fiche!"

Zé da Ponte. Uma pessoa singular, um grande defensor da cultura portuguesa, um visionário, o pai da cultura musical portuguesa moderna, um humanista, um amigo, um companheiro, um irmão.

Humor. Amor. Zé da Ponte. Portugal.

Timothy Bancroft-Hinchey

Pravda.Ru

(timothy.hinchey@gmail.com)

 

Foto: Silves, onde nasceu e onde foi sepultado hoje.


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Timothy Bancroft-Hinchey