O cinismo é uma arma preciosa... e perigosa. Especialmente em nações miseráveis, fartamente desiguais e com população com nível político-cultural muito abaixo do que se espera como mínimo. Cumpre aos cínicos a tarefa de vestir a máscara do que imagina ser seu tempo e seu espaço, pretendendo romper o pragmatismo das fronteiras e princípios basilares à convivência nas sociedades contemporâneas.
HELDER CALDEIRA*
Escritor e Jornalista Político
www.heldercaldeira.com.br - helder@heldercaldeira.com.br
*Autor dos livros "ÁGUAS TURVAS" e "A 1ª PRESIDENTA".
Por óbvio, o duelo entre o cinismo e a legalidade é bastante conveniente aos nebulosos interesses de uma espécie bizarra: os ideólogos discursistas. Aquela raça tacanha, de apoucada responsabilidade, sempre pronta a fermentar supostos conceitos politicamente corretos, servidos à bandeja do caráter duvidoso e da má-fé. Eia, pois, a resumir a ópera dos malandros cínicos em argumento de palanque político brasileiro.
Neste início de 2014, o charlatanismo de bananeira é o "rolezinho". A garotada da geração "nem-nem" - nem trabalha, nem estuda, nem joga futebol, nem virou modelo, nem entrou no reality show - utiliza o democrático neodivã freudiano das redes sociais para agendar a reunião de milhares em espaços públicos e privados, preferencialmente algum shopping center, taxado de "templo do consumo capitalista", demonizado nas mal traçadas linhas e mal versados discursos construídos sob a égide do analfabetismo funcional crônico deste país, mas desejado pelo supremo instinto de quem quer ser "alguém" na flagelada terra verde-e-amarela de poucos, "quase ninguém".
"Os babaca tá noiado. Bora cola no shop sem arrasta só cata mulher, encoxa no banheiro, fumá maconha, bebe e tira foto :D vamo que vamo!" [sic], diz a chamada numa rede social para mais um "rolezinho", com mais de 10 mil convidados. Em seguida, um comentário pede adesão à petição pública contra o "apartheid urbano", enquanto uma ala medíocre dos veículos de comunicação alterna imagens de uma pequena trupe em cantoria inofensiva (audição exclusa ao adjetivo) na praça de alimentação e uma multidão desenfreada correndo, gritando, quebrando e, nalguns casos, saqueando lojas.
Tal como os vinte centavos de junho de 2013, a onda modista está ganhando o país, inclusive com "variações", digamos, pretensamente edificantes e solidárias: na biblioteca, no ensino médio e até no asilo. O cinismo está na alma do brasileiro feito a lendária Excalibur, encravada à pedra.
Imediatamente, entram em ação os cínicos institucionais e oportunistas, com políticos desprezíveis e agrupamentos de mamateiros da sociedade civil bradando contra o suposto "preconceito contra pobres e crioulos" que querem "se divertir" nos "ambientes da elite". "São jovens com alta demanda por cultura e lazer não atendida pelos governos", argumentou um representante da turma dos direitos humanos da Ordem dos Advogados do Brasil.
Em que planeta a "alta demanda por cultura e lazer" pode servir de combustível e justificativa à baderna, ao vandalismo, à bandalheira e ao descalabro? Estudar, trabalhar e se empenhar integra o desejo de poucos. O Estado brasileiro é tetado e tem dispensado tais esforços.
O que falta ao país das bananas e jabuticabas é ter coragem e dignidade. Entre outras coisas, para assumir que o "rolezinho" é uma vertente pueril do glamourizado crime organizado sob o abraço carinhoso e fraterno de nossas instituições falidas. Como muito bem disse o escritor e filósofo Luiz Felipe Pondé em seu artigo "Covardia chique", publicado na Folha de S.Paulo: "Logo, vamos exigir a abolição do trabalho como direito. Ganhar a vida com o suor do rosto será considerado contra os direitos humanos. [...] É a corrosão do caráter causada pelo enriquecimento das sociedades e suas demandas de supressão das condições reais da vida como dor, luta e trabalho".
Noutras palavras, são "rolezinhos" de cínicos, insatisfeitos com seus modelos de telefone celular, videogames, tênis e bonés, em busca de privilégios e facilidades. É claro, convenientemente travestidos em lutas de classes, preconceitos periféricos e pedestres bandeiras políticas em nome de pseudodireitos. Assustar, vandalizar, roubar, fotografar e postar, aguardando curtidas e compartilhamentos. Realmente, são muito cínicos!