Em junho de 2005, enquanto ainda sentíamos o calor das fogueiras das festas juninas, e as vestais acendiam as fogueiras da Inquisição, escrevi uma paródia-satírica baseada nos noticiários e crônicas da mídia empresarial, intitulada "Os deuses de Absurdil", que foi publicada inicialmente no diário ibero-americano La Insignia, editado em Madri, e que contava com a colaboração de jornalistas, escritores e intelectuais de diversos países. A peça literária pretende relatar a ação dos personagens que armaram e deflagraram o golpe do mensalão.
Fernando Soares Campos
Uma semana depois de publicada a paródia-satírica, recebi e-mail de um membro da Criminal Justice Policy Foundation (CJPF), uma instituição com sede em Silver Spring, Maryland, EUA.
Apresentação da CJPF em seu site na internet:
"Um sistema de justiça criminal que é honesto, justo e eficaz é uma das instituições mais importantes da América. O Criminal Justice Policy Foundation é uma organização educacional privada, sem fins lucrativos que promove soluções para os problemas enfrentados pelo sistema de justiça criminal. Saiba mais sobre CJPF"
O e-mail que recebi veiculava documento relatando suposta estratégia do governo Lula para golpear as forças democráticas e se perpetuar no poder, a partir do chamando escândalo do mensalão.
Baseado na mensagem do membro da CJPF, escrevi um esquete intitulado "Tá Dominado - Primeiro Ato", o qual reproduz, de forma paródica-satírica, as informações veiculadas na mensagem recebida. Dando sequência, criei o "segundo ato", que denominei "Segundo Atoleiro", um diálogo entre os marechais Piro e Pirando Garboso, os quais correspondem aos personagens PhC e PhHC, em "Os deuses de Absurdil".
Em "Tá Dominado - Segundo Atoleiro", O Marechal Piro (PhC) discute com o Marechal Pirando Garboso (PhHC) sobre a eficácia das estratégias e as consequências do golpe do mensalão.
Em julho deste ano, republicamos o conjunto ("Tá Dominado: primeiro ato e segundo atoleiro) sob o título "O rapé branco de Leoné contra Brancaleone".
Agora, depois de decretada e executada a prisão dos chamados mensaleiros, escrevi o "Terceiro Atololeiro".
Aí estão as três partes da peça que vou escrevendo a cada etapa do maior escândalo midiático da História de Absurdil.
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Fernando Soares Campos
La Insignia. Brasil, julho de 2005.
Ontem recebi um estranho "script" (cópia abaixo) na minha caixa de correspondência eletrônica. O remetente, seja lá por que razão, não se identifica, fiquei conhecendo apenas o seu e-mail: cjpf@superig.com.br
Não creio que o "cjpf" tenha alguma relação com a sigla da Criminal Justice Policy Foundation (CJPF), uma instituição com sede em Silver Spring, Maryland, EUA. Em todo caso, a "peça" que o meu semi-anônimo correspondente me enviou tem tudo a ver com "criminal", "justice" e "policy" - desde que esse último refira-se a "orientação política", ou, mais precisamente, a um "programa de ação", com muita "sagacidade", "astúcia". Porém, apesar de se revelar uma "bad policy", não me parece que se trate de uma ação oriunda da "domestic policy" isoladamente, tem cheiro de "foreign policy". Não de maneira aleatória; porque, nas últimas semanas, aqui no Brasil incrementou-se uma onda de somente "to do s.th from motives of policy". Contudo sem observar que "honesty is the best policy".
Entretanto, voltemos ao princípio.
A obra inacabada que me enviaram intitula-se "Tá dominado", uma suposta sátira às atitudes políticas e administrativas do governo Lula da Silva.
O(s) autor(es), infelizmente, só me mandaram o que chamam de "Primeiro Ato". E isso não se faz com nenhum escritor que se preze. Portanto resolvi dar continuidade à peça. Escrevi o "Segundo Atoleiro"
Vejam como ficou:
Tá dominado
Primeiro Ato - autor(es) anônimo(s)
Entre goles de destilados finos ouviu-se o grito de guerra do marechal no Planalto. Seu júbilo era compartilhado apenas pelos dois generais de sua absoluta confiança:
O braço esquerdo: General DIRTeu, figura forte, seu passado congelava o sangue dos adversários. A sua especialidade é a infantaria em combate corpo a corpo. DIRTeu acompanhava o Marechal nos destilados mas a cada rodada esvaziava discretamente o copo nos vasos próximos.
O braço direito: General Dudu Galo, sibilino, especialista em guerra adversa, insidioso, aparentemente inofensivo, mas mortífero a médio e longo prazo. Muito fino Dudu degustava um tinto francês de estirpe.
Embriagado pela vitória que parecia sorrir-lhe em mais uma batalha, o marechal repassava em voz alta o plano de combate passo a passo:
1 - Dudu Galo avança pelo planalto com vastas verbas publicitárias, já começamos a amaciar o inimigo com as inserções de publicidade da ECT em toda a mídia escrita, falada e televisada e uns pitacos na internet. O forte do ataque será meu discurso, vai ser artilharia pesada. Na primeira salva, pesada, vamos invadir o íntimo emocional das massas, depois prosseguiremos com granadas (peças já previamente destacadas do primeiro ataque) e reforçaremos o estímulo. Segundo os manuais da Pavlov e estudos posteriores de psicologia de massa a eficácia será de 50%.
2 - DIRTeu ataca pela planície. O ataque será retardado para dar tempo à artilharia do General DUDU. Enquanto a artilharia martela, General DIRTeu comandará escaramuças para minar as forças do inimigo, um apedrejamento aqui, um achincalhamento ali, uma ocupação acolá, um linchamento ocasional e, importante!, patrulhamento e alerta. Na segunda fase deste, faremos, se necessária, uma carga de infantaria capitaneadas pelos batalhões MST e CUT com baionetas caladas.
3 - Ataque ao QG inimigo. O centro de comando inimigo deve ser paralisado, se não for possível deve ser bastante amortecido. Os fantasmas do passado devem ser agigantados. Uma CPI para investigar a grande mamata das capitanias hereditárias deve ser priorizada, em seguida o mensalão da proclamação da república deve ser lançado, não ficará pedra sobre pedra, tudo deve ser passado a limpo.
4 - Guerra Adversa: Conforme aprendemos com nossos inimigos durante a ditadura, quer dizer, conforme ouvimos dizer, a consciência é o principal alvo do inimigo e, portanto, também o nosso. Como sabemos, nem o planalto nem a planície sabem direito o que se passa. No planalto ninguém quer muita marola, pois um gole deste mar é indigesto, melhor ficar todo mundo quieto. Na planície a galera já está na chibata do cotidiano, na derrama, basta então relativizar, e a artilharia mole aqui é muito eficiente. Então, esta será nossa arma principal nesta frente. Trabalho insidioso, munição mole de todos os órgãos da administração direta e indireta. Inserções na mídia como as páginas inteiras dos correios (ECT) garantindo à população que o "pequeno" incidente já foi apurado e devidamente punido, a empresa é clara e transparente, na mosca. Isso funciona em termos de massa. A maior parte não sabe o que aconteceu, mas sabe que não é novidade, ouve a explicação como uma satisfação inócua e vai à luta, senão, perde o trem. Esta munição é abundante, e o inimigo não tem arma igual. Essa frente é importantíssima, mas, da retaguarda, um trabalho perfeito para o General Kuniken. Ele é tão discreto pra essas tarefas que nem está aqui!
5 - Ataque de Cooptação. Mais do mesmo. Isso mesmo, quem disse que o mensalão não é uma boa arma? O problema com o Bob Jéferson foi apenas de mira e calibre. Se usada adequadamente esta arma é insuperável, portanto este ataque colocará na mira o PMDB. O tiro deve ser muito maior, será "dote", ministério de porteira fechada ou que eles quiserem "por fora".
Enquanto o marechal confiante repassava os planos de ataque, General DIRTeu meio ressabiado tentava reagir: "- Mas marechal, eu na planície, no meu governo, eu na planície? O Sr. não acha melhor pegar o Aerolula e ir dar um volta na Europa enquanto eu resolvo este probleminha, afinal é só um probleminha... As exportações geradas pela infraestrutura montada pelo FH estão de vento em popa, a política "neo-liberal" está se mostrando de muita eficiência, porque vamos dar corda neste golpe branco? Deixe comigo, a grande imprensa é nossa, chamo o MST, a CUT, os notáveis e o "resto" do movimento social e empalamos o Roberto Jéferson em praça pública!
E o marechal meio em dúvida retruca - Você acha que o problema é o Bob? Mas e o cheque em branco que dei a ele? Ele é um dos nossos, está apenas contrariado. O problema são esses golpistas, são de oposição, esses são mortíferos.
Fim do primeiro ato
Segundo Atoleiro
-por Fernando Soares Campos-
Enquanto o general Jeff Sonso recebe os primeiros socorros devido a uma coronhada que tomou no olho esquerdo, do outro lado do front dois marechais disputam os louros da estupenda vitória que conquistaram naquela desleal batalha contra o que eles mesmos denominaram Exército de Brancaleone.
O marechal Piro [PhC, em "Os deuses de Absurdil"], cujo nome vem de pirar depois de cafungar, reclamava, culpando o marechal-de-ferro-velho Pirando Garboso [PhHC] pelas inúmeras baixas que sofrera em sua Divisão de Infantilaria.
Mal. Piro: - Garboso, Vossa ex-Excelência se excedeu na dose (sniff). O agente laranja que a Força Aérea descarregou sobre as tropas inimigas atingiu as nossas fileiras e fez muitas vítimas entre nós mesmos. Desfolhou as nossas próprias arvores verdinhas. Com isso a soldadesca de Brancaleone pôde enxergar a nossa linha de frente e atacou pela direita atingindo o olho esquerdo do nosso general Jeff Sonso (sniff).
Mal. Pirando: - Vossa expurgada Excelência sabe muito bem que os fins justificam os meios. Além disso, o general Jeff Sonso nos deve a cabeça, tronco e membros da Fundação Policial de Justiça Criminosa, os enviados de God, muitos tombados nessa guerra suja.
Mal. Piro: - Mas poderíamos ter usado, no lugar do Agente Laranja (sniff), o nosso rapé branco, adquirido na boca do Leoné. Assim, nosso plano seria perfeito (sniff).
Mal. Pirando: - Pode explicar melhor, expurgada Excelência?
Mal. Piro: - Ora! Marechal Garboso, foi V. ex-Excelência mesmo, com esse vosso espírito-de-porco-sarcástico, quem denominou o inimigo, apropriadamente, Exército de Brancaleone (sniff).
Mal. Pirando: - Sim, e daí? Onde Vossa expurgada Excelência quer chegar com todo esse nhenhenhém?
Mal. Piro: - E daí?! (sniff) E daí que, se tivéssemos despejado algumas toneladas do nosso rapé branco, fornecido pela boca do Leoné, eles seriam obrigados a cafungar e mais facilmente seriam identificados como iguais a nós, o Exército do Rapé Branco de Leoné. (sniff). Vai uma carreira? - Mal. Piro ofereceu o espelhinho pulverizado ao Mal. Pirando.
Mal. Pirando: - Não, obrigado. Prefiro vodka neolibertal. Isso não funciona mais. Eles não estão respeitando nem o filho do Rei. Tão encanando todo mundo. E esse é o nosso problema. Vamos ficar sem caixa para a batalha de 2006. Se tiver batalha! Porque, antes disso, precisamos derrotar de uma vez por todas o Brancaleone Tupiniquim. Nossa esperança ainda é a traidora Dulcinéia Karinho.
Mal. Piro (cantando desvairado): - "Mujer, si puedes tu con God hablar, pregúntale si yo alguna vez te he dejado de adorar..."
Caem no segundo atoleiro...
Terceiro Atoleiro
-por Fernando Soares Campos- em 18 de novembro de 2013
Eight years later...
O suntuoso apartamento do marechal-de-ferro-velho Pirando Garboso está em festa, entre goles de destilados finos, vinho francês de estirpe, cafungadas em espelhinhos pulverizados e baforadas de charutos jamaicanos, seus subordinados comemoram suposta vitória de uma batalha na mais suja guerra pelo poder em Absurdil: perfídia, prevaricação, chicana, corrupção, chantagem... tudo com frequência e intensidade aparentemente nunca antes registradas na história.
Enquanto seus oficiais subalternos se esbaldam no salão de festa, o Marechal Garboso, recolhido aos seus aposentos, sentado em estilosa poltrona Luis XV, respira fundo, olhos marejando, emocionado ao som de Liebestraum, de Franz Liszt.
O celular na estante ao lado chama insistente, mas ele parece distraído, fascinado pela música, que funciona como leitmotiv de suas memórias: o dia da posse como presidente da República, o primeiro encontro com os Clinton, a campanha para a reeleição, a felicidade que proporcionou aos amigos com as privatizações do patrimônio público... Sem se dar conta do aparafusamento de sua imaginação, lembrou-se do seu guru e protetor Henry Kissinger, Nobel da Paz em 1973, época em que ele era apenas Garbosinho, subagente de monitoramento da CIA no Chile de Allende.
O aparelho celular continuou chamando, até que, num trecho molto pianíssimo de Liebestraum, Garboso despertou de seu momentâneo delírio, fez um seco muxoxo e atendeu a chamada:
- Alô!
- Garboso, é o Piro!
- Piro, onde você está?! Por que não aceitou o convite para a nossa festa em comemoração da vitória na Batalha do Allowanceloo?
- Porque essa vitória não é minha. O laurel ao laureado!
- Modéstia sua, você também é responsável pela derrota dos comensaleiros.
- Bondade sua! Mas não seria tão benevolente se conhecesse alguns detalhes de minha participação nessa guerra.
- O que você quer dizer com isso?!
- Pegue essa caixinha de rapé que você mantém aí na estante, tire uma pitadinha, cafungue e...
- Peralá! Como é que você sabe que tenho uma caixinha de rapé na estante?!
- Lembra-se do agente Di Maisnada, da Espia?
- Sim, claro! Ainda hoje ele me ligou da Itália parabenizando pela nossa vitória...
- Foi ele quem me informou sobre a sua caixinha de rapé e tantos outros detalhes da sua casa e do seu estilo de vida. Sinto lhe dizer, mas o cara era agente duplo no âmbito das intrigas domésticas.
- Agente duplo?! Intrigas domésticas?! Você poderia trocar isso em miúdos?
Silêncio. Garboso ouvia apenas um intermitente sniff! sniff! Impacientou-se:
- Piro! Piro! Você ainda está na linha?!
- Sim, Pirando, fique frio, eu vou lhe contar a parada com os detalhes sórdidos.
- Pare com esse nhenhenhém e desembuche logo, homem!
- Lembra-se da fase em que disputamos a fidelidade do Jeff Sonso? Se não se lembra, releia Os deuses de Absurdil, aquela peça satírica de um desconhecido escritor aqui das Alagoas, publicada no diário espanhol La Insignia, dias depois de deflagrada a Guerra do Mensalão. Você ganhou a disputa, Bob Jeff decidiu trabalhar pra você. Eu só queria usá-lo para dar um sacode nos petistas, coisa do tipo revelação de que "somos todos iguais", nada muito comprometedor. Digamos, uma brincadeira de mau gosto. Mas o Bob Jeff sempre foi muito ambicioso e, na sua mão, controlado pelos dossiês que o Renan lhe forneceu no período em que foi seu ministro, teve que se render às suas ordens.
- Quem lhe contou essas histórias sem pé nem cabeça?
- O Di Maisnada, que atualmente não passa de truão do Mossad.
- Tá bem, confesso que me sinto traído pelo Di Maisnada. Mas o Bob Jeff foi muito útil e será sempre fiel!
- Ledo Ivo engano, meu caro.
- Como assim?!
- O problema é que ele já não confia em você, está inseguro. Falou para o seu advogado que, se for preso, vai soltar o verbo, entregar todo mundo, vai contar toda a trama e inocentar os supostos mensaleiros. Por falar nisso, por onde anda Maurício Marinho, aquele das três merrecas dos Correios?
- Você está blefando! Aliás, delirando, Piro!
- E você agora está, literalmente, pirando, Garboso! Bob Jeff está com medo de ser vítima de queima de arquivo. E ele conhece você muito bem, sabe do que vocês são capazes. Ele sabe que, se falar, receberá o perdão definitivo dos petistas; mas, se permanecer calado, na cadeia, corre o perigo de ser assassinado pela sua mafiosa tropa de choque, golpistas de carteirinha.
- Piro, expurgada excelência, sei que você está apenas querendo se vingar do pessoal da Espia, que, junto com a turma das Organizações Cubo, trabalhou pela sua eleição para presidente da República e, em seguida, insuflou a população contra você, culminando com o seu impeachment. Mentiram muito sobre o caso PC Farias. Um golpe de Estado, reconheço. Mas você não me assusta...
Silêncio na linha, interrompido por pigarros de um lado e sniffes do outro. Piro retoma a conversa:
- Mas eu não estou lhe falando essas coisas pra lhe assustar. Quero lhe dar um conselho.
- Conselho?! Que conselho?! Você, que não foi capaz de se defender do golpe, vai querer me dar conselhos?! Isso é piada!
- Sim, parece piada, mas, uma trágica piada. O problema é que, agora, para se defender das ameaças do Bob Jeff, você só pode contar com a trolha branca do diretor de jornalismo das Organizações Cubo e a trolha negra da Justiça. Entretanto, napoleônico como você é, sabe que pode fazer quase tudo com uma espada, menos se sentar nela. E aí, um garanhão como você não vai se sentar nas trolhas, vai?
- Ora, seu depravado, você não passa de um sátiro, como o Lula. Vocês se merecem! Danem-se! - desligou, nem ouviu a gargalhada sinistra do Marechal Piro.
O marechal-de-ferro-velho Pirando Garboso levantou-se, pegou um charuto jamaicano na estante, voltou a sentar-se na sua Luis XV, acendeu o baseadão e baforou longamente: Fuuuuu...
Porções de fumaça revolviam-se no ar formando estranhas figuras. Garboso assustou-se:
- Zumbis! - empalideceu.
Um nó na garganta sufocou o Marechal Garboso, impedindo a explosão de um grito de pavor, quando ele avistou a holográfica imagem de Lúcifer entre os apavorantes fantasmas.
No sistema de som já se havia encerrado a execução de Liebestraum, a sinfonia de Liszt, agora tocava Ruínas de Atenas, de Beethoven, o trecho Dança dos Dervishes.
Garboso arriou-se nos braços de Morfina, sua heroína, e apagou.
Caem no terceiro atoleiro.