Os movimentos observados no Brasil em junho de 2013 representaram uma explosão repentina e momentânea da indignação generalizada a qual não se distinguiu por apresentar-se organicamente respaldada não tendo, portanto, garantida sua continuidade.
Iraci del Nero da Costa *
Para Nina, amiga e companheira
NO MEADO DE SETEMBRO
Os movimentos observados no Brasil em junho de 2013 representaram uma explosão repentina e momentânea da indignação generalizada a qual não se distinguiu por apresentar-se organicamente respaldada não tendo, portanto, garantida sua continuidade.
Ademais, tais mobilizações viram-se infiltradas por elementos que vão desde grupos de jovens aventureiros em busca de mera baderna até marginais comuns interessados em depredar e roubar casas de comércio; enfim, por pessoas cujo objetivo é o de aproveitarem-se das situações propiciadas pelos protestos para exercerem ações de puro vandalismo contra bens públicos e particulares.
De outra parte, as grandes manifestações de caráter geral cederam lugar a mobilizações de menor porte e centradas em questões específicas; mobilizações essas as quais, por vezes, nem sequer identificam corretamente os poderes ou os agentes públicos ou privados contra os quais se dão.1
Evidentemente, tais afirmações não implicam negar a possibilidade de ocorrerem movimentos futuros similares aos verificadas em junho.2 Não obstante, a falta de uma organização ordenadora de ações e de um projeto de busca sistemática de objetivos inter-relacionados tira a força de tais manifestações de descontentamento as quais, antes de expressarem uma sistemática luta política, exprimem, tão só, o fato de estarmos em face de uma fase histórica na qual inexiste uma oposição atuante e organizada voltada contra os ocupantes do poder político e capaz de coordenar os reclamos de distintas parcelas populacionais que não veem atendidos pelos poderes constituídos muitos de seus anseios e de suas reivindicações básicas.
Tal espaço político deixado vazio viu-se constituído pelo abandono por parte do PT de suas bandeiras reformistas de largo fôlego e pela omissão e inépcia de uma oposição cujo perfil sempre esteve à direita das aludidas bandeiras.
Como tenho afirmado, a ação dos petistas que alcançaram o poder central da nação corporificou-se num verdadeiro Coronelismo de Estado cujo objetivo maior foi o de garantir o apoio de parcelas substantivas das camadas populacionais mais desprivilegiadas,3 as quais, como evidenciado pelas vitórias eleitorais dos candidatos petistas, não respaldaram os políticos que se postaram à esquerda do "novo" PT ocupando a antiga postura reformista própria do "velho" PT.
Vai descrito acima o quadro vivenciado até a primeira quinzena de setembro de 2013.
EM FINS DE SETEMBRO
Como aventado acima, ao movimento contemplado nesta crônica parece ter faltado substrato político e ideológico bem definidos assim como uma organização minimamente hierarquizada; como apontado, nos defrontamos com uma mobilização espontânea que rapidamente ganhou um grande número de aderentes. É esta a impressão que nos toma neste final de setembro de 2013.
Vivenciamos, em junho, um movimento dos mais salutares, mas a falta dos elementos referidos impossibilitou sua continuidade em termos de articulação política apta a dar sustentação a uma busca politicamente consistente de objetivos e metas concatenadas de sorte a compor um todo organicamente articulado e persistente no tempo. Faltou-lhe, pois, a complexa tessitura própria de um partido político comprometido com um programa coerente de profundas transformações sociais e econômicas cuja necessidade é de todos conhecida e que ficou patenteada amplamente pelo própria mobilização então observada.
Os partidos existentes, por seu turno, são absolutamente incapazes de acolher essas vontades indômitas de uma sadia juventude rebelde a qual viu-se acompanhada por uma expressiva parcela de nossa população adulta. A nosso ver, as pessoas que se deixarem levar pelas agremiações políticas viciadas hoje existentes reproduzirão a figura, ora caricata, do promissor líder estudantil que veio a se degradar definindo-se nos dias correntes como mero apêndice grotesco do PT.
Pessoalmente, desejo que os integrantes das novas gerações, que tão robustamente expuseram sua indignação - excluídos aqui, obviamente, os baderneiros e os criminosos infiltrados -, consigam orientar-se saudável e sabiamente criando seus próprios aparelhos políticos ou aderindo a algum dos já existentes emprestando-lhe moldes novos, vale dizer, formas de ser que fujam dos estereótipos viciados os quais têm conspurcado secularmente nossa vida política.
Por outro lado, as atitudes assumidas pelos poderes da República corroboram, a nosso ver, os elementos comportamentais delineados acima. Assim, nenhuma resolução de maior profundidade e alcance foi implementada, a resposta dos três poderes restringiu-se, tão somente, a algumas ações tópicas, meramente parciais, postas em prática num primeiro momento em que todos foram surpreendidos pelo âmbito amplo das primeiras manifestações; tais atitudes, é forçoso reconhecer, não decorreram de uma análise mais detida dos acontecimentos mas foram assumidas com o intuito de abafar os reclamos populares e determinadas, como anotado acima, pela inesperada amplitude da manifestação, a qual se viu enormemente estreitada passados, apenas, uns poucos dias.
Destarte, nossos dirigentes rapidamente acomodaram-se e voltaram às velhas práticas, indicando que para eles a marolinha foi a verdadeira expressão do pressuposto tsunami.
Por ora, o que acusam as pesquisas de intenções de voto para presidente em 2014 é a recuperação da atual governante Dilma Rousseff: tinha ela, na última pesquisa realizada antes das manifestações de junho, 58% das aludidas intenções, caiu para 30% em 18 de julho e aos 27 de setembro alcançou 38%; paralelamente, todos seus adversários mais imediatos conheceram quedas. Já a pesquisa efetuada aos 11 de outubro indica, em todos os casos considerados, a hegemonia eleitoral da atual presidente. Enfim, com respeito à candidata do PT ao poder central, a bonança parece predominar sobre a intempérie.
OUTUBRO: PRIMEIRA QUINZENA
Outubro já vai avançado e é visível que o número de protestos reivindicativos dos mais variados tipos aumentou substantivamente quando comparado com o prevalecente antes de junho do ano corrente.
Não obstante tal mudança quantitativa, as mobilizações atuais4 guardam duas características comuns: o número de pessoas reunidas em cada uma delas é sempre muito modesto, cerca de algumas dezenas ou centenas de participantes que, raramente, chegam a mais de um milhar; por outro lado, as solicitações apresentadas denotam, sempre, um caráter concreto imediato e referem-se a questões específicas do grupo mobilizado.
Na cidade de São Paulo, e aqui só vão dois exemplos, cerca de cem pessoas, para bloquear uma via, derrubaram caçambas de entulho e atearam fogo em um automóvel e em outros objetos reivindicando melhores condições de moradia e o pagamento do auxílio-aluguel que estaria atrasado há dois meses; já outras, cujo protesto devia-se a um corte muito prolongado no abastecimento de água em sua região afirmaram que, aproveitando-se da ocasião, um grupo de vândalos queimou três ônibus e saqueou um mercado. Algumas vezes ônibus são queimados por residentes em áreas periféricas sob a alegação de vingança contra assassinatos de moradores locais, prática esta que, em São Paulo, é anterior à mobilização de junho.
Na período ora em foco alguns outros movimentos de maior consistência deram-se em São Paulo cabendo realce a uns poucos promovidos por alunos universitários que, além de reivindicarem a prejudicial participação igualitária de alunos, funcionários e professores nas eleições para a escolha do reitor da Universidade de São Paulo visaram o governador do Estado e a caótica administração do prefeito da capital. Ademais, alguns alunos de universidades e professores do ensino secundário mobilizaram-se em apoio à greve que se desenvolvia na cidade do Rio de Janeiro; assim, só podemos computar este último evento em favor dos educadores do município fluminense como uma ação que transcendeu a vida paulistana nesta primeira quinzena de outubro.
Já no Rio de Janeiro, como largamente noticiado, deu-se a manifestação de professores contra o plano de cargos e salários proposto pela prefeitura; muito embora tal movimento tenha mobilizado milhares de pessoas - inclusive não docentes integrantes de sindicatos e de partidos políticos -, cingiu-se ele às reivindicações de um particular conjunto de professores municipais; ademais, a deplorável presença de adeptos da forma de agir denominada "black bloc", acompanhada que foi de vandalismo e de depredações, nada acrescenta em termos políticos à manifestação dos aludidos educadores.5
Se tiver continuidade, a intervenção desses depredadores - verdadeiros criminosos -, presente tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, terá de ser analisada à parte, pois sua existência atua, de fato - como já reconhecido por algumas lideranças de entidades promotoras de protestos -, contra os movimentos reivindicativos e, praticamente, conhece o repúdio de toda a população. Ademais, tudo indica que tal vandalismo está a merecer reações mais decididas e eficazes tanto da polícia como do poder judiciário; cabendo ao poder executivo disciplinar minimamente uma polícia absolutamente despreparada que carrega em seu seio um sem-número de indivíduos perniciosos e mal-intencionados.
Mesmo tendo-se presente que os protestos não se dão somente nas duas grandes metrópoles assinaladas acima, prevalece a constatação de que não ocorreram casos nos quais o objetivo visado tivesse um perfil mais global ou que dissessem respeito a parcelas amplas e diversificadas da população. Neste sentido pode-se afirmar que nada se passou neste mês que pudesse lembrar os eventos de junho.
Ao que parece, pois, os aludidos protestos de junho mostram-se como fenômeno próprio daquele momento; assim, embora possam sobrevir a algum acontecimento futuro, restam, por enquanto, temporalmente delimitados.
ALGUMAS ESPERANÇAS E REFLEXÕES
Não é descabido afirmar-se que as mobilizações de junho atuaram no sentido de fazer recorrentes e de aumentar o número de manifestações de grupos relativamente pequenos em busca de reivindicações específicas e imediatamente vinculadas a seus interesses ou necessidades mais imediatas; no entanto, aquelas amplas movimentações não tiveram o condão de despertar a grande massa da população para a luta contínua visando ao atendimento de reivindicações de caráter geral. Assim, ao invés de um "levante popular global", talvez tenhamos presenciado em junho a somatória de uma grande quantidade de movimentos parciais que, além de problemas bem determinados, também tiveram suas atenções despertadas para questões de larga abrangência nacional.6
Esperemos que tal experiência não venha a se perder e se repita com grande intensidade de modo a obrigar os mandatários da nação a cumprirem seus deveres possibilitando a concretização de um futuro mais ditoso, justo e igualitário.
Como se pode depreender das palavras acima postas, a perplexidade que a todos envolveu conduziu este cronista a raciocínios diversos, por vezes desconexos. A tentativa de compreensão chega a mesclar-se com desejos e esperanças. A busca de explicações perde-se, em algumas oportunidades, em especulações às quais faltam fundamentos sólidos. Enfim, da mesma maneira que nos deparamos com uma mobilização aparentemente insólita podemos ser levados a falsas percepções sobre suas causas últimas.
Ouso postular que as inconsistências aqui apontadas não derivam tão somente das insuficiências do analista, mas decorrem, em grande parte, da própria complexidade e proximidade dos fenômenos contemplados. Destarte, somente o tempo permitir-nos-á aclarar com maior precisão os eventos vividos nos últimos meses e cujo ponto de máxima ebulição deu-se em junho passado.
Independentemente das limitações e ressalvas arroladas nesta crônica, cometerá grave erro quem, sobretudo para as metrópoles do Rio de Janeiro e de São Paulo, pretender transformar em mera marolinha o tsunami que muitos viram prenunciado em junho passado; isso porque tais manifestações atuaram como um elemento potencializador em alto grau de protestos os quais viram-se largamente multiplicados e repetem-se continuadamente.
Nem tsunami, nem marolinha, mas, sim, um vigoroso acicate que despertou uma grande faixa populacional para lutar nas ruas por seus interesses e reivindicações. Embora ainda não seja possível avaliar qual será a extensão da projeção política de fundo dessas mobilizações centradas em interesses específicos, ela certamente ocorrerá e afetará em maior ou menor grau a vida política de toda a Nação.
NOTAS
1. Tenha-se presente que neste texto não fazemos referência a todos os protestos havidos no período aqui contemplado; os eventos relatados o foram, tão só, para tipificar o que ocorreu no aludido período e para ilustrar o desenvolvimento de nossos raciocínios.
2. Como sabido, pouquíssimas reivindicações foram atendidas.
3. O próprio programa que promoveu a vinda de médicos do exterior enquadra-se em tal perspectiva e peca em vários sentidos, refletindo o reles oportunismo amplamente abraçado pelos petistas que galgaram a presidência da República. Não se exigiu dos médicos adventícios os mesmos procedimentos impostos aos médicos não integrados ao programa. Com respeito aos médicos cubanos, cujo deslocamento para o Brasil já estava a ser contratado vários meses antes de junho, foram feridos muitos preceitos, inclusive constitucionais; assim, 60% de seus salários serão entregues diretamente ao governo de Cuba, os médicos cubanos não poderão locomover-se livremente no território brasileiro e só poderão atender pacientes nos municípios para os quais forem designados, por fim, ficam eles impedidos de pedir asilo político enquanto aqui estiverem.
4. Não são considerados aqui os raríssimos casos de encapuzados que, sem levantarem quaisquer questões ou reivindicações concretas, apenas repetem palavras de ordem aleatórias sem conexão orgânica cingindo-se, tão somente, a perturbar o trânsito de veículos motorizados. Também excluímos a recorrente infiltração de seguidores do método "black bloc" - cujo único objetivo é o vandalismo e a depredação - em movimentos pacíficos com reivindicações concretas. Por via de regra, a chegada desses elementos perturbadores faz com que se encerre o protesto pacífico e tem início uma verdadeira "guerra" entre vândalos e policiais.
5. O município e o Estado do Rio de Janeiro representam, a nosso ver, um caso à parte, pois a população local incompatibilizou-se em grau elevadíssimo tanto com o prefeito dos cariocas como com o governador fluminense.
6. Embora tenha escrito esta afirmação antes de ler o artigo de Maria C. Carlotto, entendo que ambos mantemos opiniões muito semelhantes, diz a autora: "O conjunto de manifestações que passou a ser nomeado, abstratamente, de 'protestos nacionais' esconde, na verdade, uma enorme diversidade de causas, formas e sentidos (...) devemos procurar reconhecer as diversas realidades políticas que se dissolvem sob uma mesma denominação: 'os protestos nacionais'. Diferenciar essas diferentes manifestações é um primeiro passo - fundamental - no caminho de compreendê-las." (Cf. CARLOTTO, Maria Caramez. Decifra-me ou devoro-te. O enigma de junho. Revista Fevereiro, n. 6, setembro de 2013, disponível em:
http://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=06&t=14
* Professor Livre-docente aposentado da Universidade de São Paulo.