Para o professor doutor Ladislau Dowbor, a pandemia do novo coronavírus tornou mais evidentes as contradições da economia latino-americana. "A desigualdade profunda impossibilita a democracia", diz na entrevista a seguir o economista brasileiro.
Apontando governos neoliberais, o doutor Dowbor observa que a região é "sistemicamente disfuncional", o que causou a crise econômica mais grave do mundo desde que a pandemia chegou à região, em fevereiro de 2020.
A América Latina, historicamente região mais desigual do planeta, foi declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como epicentro da pandemia de COVID-19 em maio de 2020.
“Os governos conservadores da região têm estado intimamente ligados aos interesses americanos”, conta o autor de vários livros sobre economia, publicados em vários idiomas que o especialista fala. “Isso vai muito além dos impactos da pandemia”, diz o economista nesta entrevista de singular capacidade analítica, e riqueza de dados.
Discutindo possíveis saídas para a crise, o professor titular da cátedra de Economia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo aponta seis pilares devem ser considerados pelos governos latino-americanos: renda básica, políticas sociais , programas de emprego público, reforma tributária, regulação do crédito e gestão descentralizada do dinheiro público.
“Frequentemente chamadas de salário indireto, essas políticas públicas de acesso universal e gratuito são essenciais, e mais eficientes quando universais e gratuitas”, afirma o doutor Dowbor.
Autor de co-autor de cerca de 40 livros, e de numerosos artigos, Ladislau Dowbor, formado em economia política pela Universidade de Lausanne, Suiça; Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia (1976). Atualmente, é professor titular no departamento de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nas áreas de economia e administração. Continua com o trabalho de consultoria para diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema “S” (Sebrae e outros). Atua como Conselheiro no Instituto Polis, IDEC, Instituto Paulo Freire, Conselho da Cidade de São Paulo e outras instituições.
O professor Dowbor foi consultor do Secretário Geral da ONU, na área de Assuntos Políticos Especiais (1980-81). Dirigiu vários projetos de organização de sistemas de gestão econômica, na qualidade de Assessor Técnico Principal de projetos das Nações Unidas, em particular na Guiné Equatorial e na Nicarágua. É consultor de vários governos, particularmente para a organização de sistemas descentralizados de gestão econômica e social (Costa Rica, Equador, África do Sul).
Seu mais recente livro é Resgatar a Função Social da Economia: Uma Questão de Dignidade Humana (Ed.Elefante, 2022).
Nas linhas a seguir, a entrevista completa com um dos economistas mais renomados do mundo: Ladislau Dowbor, de sua residência na cidade de São Paulo.
Edu Montesanti: Como a América Latina chegou a esta trágica situação econômica sob a pandemia do novo coronavírus, a crise mais grave do mundo durante a pandemia? Muitos consideram a desigualdade o principal fator. Temos também a amarga realidade do baixo investimento da região em saúde e no Estado de Previdência em geral. O que o senhor tem a dizer?
Ladislau Dowbor: A América Latina é a região mais desigual do mundo, e isso tem impacto estrutural em praticamente todos os aspectos da sociedade. Tivemos várias tentativas de redução da desigualdade em diferentes países, com resultados particularmente importantes durante os governos Lula e Dilma no Brasil, e a exceção cubana, mas no geral as elites tradicionais, aliadas aos interesses corporativos internacionais, reproduziram a divisão social.
Agora temos educação para ricos e educação para pobres, e o mesmo distanciamento pode ser encontrado nos serviços de saúde, no acesso à infraestrutura, na divisão territorial urbana entre ricos e pobres e, claro, durante a pandemia: como manter distância, parar de trabalhar quando você não tem meios de sobrevivência, e mora em favelas lotadas?
Como a pandemia mudou ou agravou este quadro na região?
A pandemia tornou as contradições mais óbvias. Estamos enfrentando uma convergência de tendências críticas com aceleração da desigualdade, desastres ecológicos, caos financeiro e democracias frágeis. A temperatura política também está mudando.
As novas gerações que frequentaram a escola, uma população com acesso aos meios de comunicação de massa e a urbanização geral tornaram as pessoas muito mais conscientes de que são indigentes, que seus filhos não encontrarão espaço para prosperar, e isso os levou a votar em demagogos que proclamam ser “contra o sistema”.
Na verdade, a profunda desigualdade torna a democracia impossível: a democracia política exige democracia econômica básica. Na América Latina não apenas enfrentamos situações críticas, mas ainda perdemos em grande medida a capacidade de governança para enfrentá-las.
Somos sistemicamente disfuncionais. Os governos conservadores da região vivem intimamente ligados aos interesses americanos, e mesmo os sucessivos regimes ditatoriais foram expostdos como diante de uma necessidade de ser “amigável ao mercado”, pois isso atrairia capital estrangeiro, investimentos e promoveria o desenvolvimento.
Salários baixos, classe trabalhadora submissa, livre movimentação de capitais, regulação leve, setor público reduzido, impostos baixos – todo esse ambiente institucional foi feito para atrair o desenvolvimento de fora, não para promover capacidades nacionais endógenas.
Isso levou a atitudes de corrida ao fundo em diferentes países, gerando políticas subservientes que simplesmente não funcionam: o capital estrangeiro está investindo menos e drenando mais.
Os fluxos de Investimento Estrangeiro Direto (IED) para a América Latina caiu 45 por cento em 2020, para 88 bilhões de dólares de acordo com o Relatório Mundial de Investimentos 2021 da UNCTAD, publicado em 21 de junho.
“A região sofreu o declínio mais acentuado do IDE nos países em desenvolvimento. As economias latino-americanas enfrentaram um colapso na demanda de exportação, queda nos preços das commodities e o desaparecimento do turismo, levando a uma das piores contrações da atividade econômica em todo o mundo”, disse James Zhan, diretor de investimentos e empreendimentos da UNCTAD.
O relatório constatou que “o IED para a América do Sul caiu pela metade para 52 bilhões de dólares, com os fluxos para o Brasil e o Peru atingindo seu nível mais baixo em duas décadas. No Brasil, os influxos caíram 62%, para US$ 25 bilhões, drenados pelo desaparecimento dos investimentos em extração de petróleo e gás, fornecimento de energia e serviços financeiros.
No Peru, os fluxos caíram para 1 bilhão de dólares, influenciados por uma das piores quedas econômicas do mundo combinada com instabilidade política. No resto da América do Sul, os fluxos foram arrastados pela queda do preço do petróleo na primeira parte do ano.
Na América Central, os fluxos de IED caíram 24 por cento, para 33 bilhões de dólares, parcialmente sustentados por lucros reinvestidos no México, onde caíram apenas 15%, para US$ 29 bilhões. Na Costa Rica, uma interrupção repentina do investimento em zonas econômicas especiais foi responsável pela maior parte do declínio nos fluxos de IDE para 1,7 bilhão de dólares. Os fluxos para o Panamá encolheram 86 por cento, para menos de 1 bilhão de dólares.
”Atrair capital é apenas um beco sem saída: só pode ser viável como complemento de boas iniciativas de desenvolvimento interno. A China pode ter sido declarada inimiga pelos EUA, mas o IDE para a China cresceu 6% enquanto caiu em outras regiões. Uma organização econômica interna sólida é muito mais atraente do que políticas subservientes.
Isso vai muito além dos impactos da pandemia. As políticas econômicas da maioria dos governos conservadores na América Latina, e particularmente no Brasil com o golpe conservador, representaram a agenda neoliberal clássica, mas aumentaram a desigualdade, o que por sua vez levou a um mercado interno muito fraco.
Negócios produtivos precisam de forte demanda para prosperar. Como os direitos dos trabalhadores foram reduzidos no Brasil a partir de 2014, com a indústria trabalhando em torno de 70 por cento de sua capacidade, um empresário escreveu no jornal O Estado de São Paulo: “É mais barato gerar emprego, mas por que eu deveria empregar se eu não tem para quem vender?”.
Como a região pode sair dessa situação?
Não há mistério sobre o que funciona para os produtores: eles precisam de pessoas com capacidade de compra para vender produtos, e crédito barato e abundante para financiar investimentos. No Brasil, eles não têm nenhum. A mudança da empresa Ford do país foi um choque, mas apenas a parte mais visível.
Outra dimensão do fracasso das políticas conservadoras é que a mão de obra barata não é mais um argumento decisivo. Com a tecnologia moderna, ter funcionários altamente treinados é mais importante, e a América Latina, ficando para trás em termos de educação geral e treinamento especializado, simplesmente não é mais um ambiente econômico atraente.
A América Latina está perdendo o trem econômico, com políticas ultrapassadas. O ministro da economia do Brasil formado em Chicago, Paulo Guedes, é um exemplo dessa visão retrógrada do desenvolvimento.
Um olhar sóbrio sobre as tendências atuais torna óbvio que precisamos de outro Bretton Woods, ou um Global Green New Deal. E isso significa que precisamos de uma nova abordagem para o desenvolvimento na América Latina.
Temos soluções a nível nacional e subcontinental. Trabalhei em vários países africanos como consultor de planejamento econômico e social da ONU, onde a falta geral de recursos era a questão-chave. Não é assim na América Latina. Se considerarmos o PIB brasileiro, 1,8 trilhão de dólares, o que produzimos em bens e serviços equivale a 2.800 dólares por mês por uma família de quatro membros. Com variações nos diferentes países, o argumento essencial é que nossos problemas não são econômicos, no sentido de falta de recursos, mas de organização social e política.
E não há mistério sobre o que funciona. O Banco Mundial chamou a experiência brasileira de desenvolvimento inclusivo de 2003 a 2013 “a década de ouro” do país. Mais dinheiro na base da pirâmide social, com Bolsa Família, aumento do salário mínimo e acesso à energia elétrica para tantas regiões isoladas – 149 programas no total – gerou inclusão econômica e social, mas também estimulou a demanda , que gerou mais crescimento e emprego, num ciclo virtual de desenvolvimento.
O crescimento dinâmico nesse período, de 3,8 por cento ao ano em média, também gerou os impostos correspondentes, equilibrando o orçamento. Isso foi derrubado não porque não funcionou, mas por causa de interesses políticos locais e internacionais.
A partir de 2014, a política inclusiva é derrubada, sendo substituída pela política de austeridade que paralisou a economia. Em 2021, o Brasil enfrenta o oitavo ano de estagnação econômica.
A questão central é reorientar nossas economias para o bem-estar econômico e social da maioria da população. Os caminhos a seguir são bem conhecidos:
Renda básica: o dinheiro entregue diretamente às famílias foi radicalmente simplificado com moeda virtual, temos várias experiências internacionais e, com as transferências emergenciais durante a pandemia, os procedimentos ficaram claros.
Igualmente importante, foi visto que as transferências não são um custo: elas estimulam a economia por meio da melhoria da demanda. O preconceito idiota de que as pessoas deixarão de trabalhar se tiverem dinheiro também foi reduzido: as pessoas encaram as transferências como um “piso” que abre oportunidades e estimula atividades.
Políticas sociais: dinheiro no bolso é essencial, permite pagar o básico, mas pelo menos um terço do bem-estar familiar depende do acesso ao consumo coletivo: você precisa de segurança, mas não compra polícia, e isso vale para educação, saúde, meio ambiente preservado e afins. Frequentemente chamadas de salário indireto, essas políticas públicas de acesso universal e gratuito são essenciais, e mais eficientes quando universais e gratuitas.
O investimento em infraestrutura faz parte dos bens coletivos, melhorando tanto a qualidade de vida das famílias (infraestrutura de transporte, alternativas energéticas, infraestrutura de acesso digital eficiente etc.) quanto a produtividade dos negócios. Esses investimentos criam “economias externas”, tornando a economia mais eficiente.
Programas de emprego público: Com a impressionante subutilização da força de trabalho na América Latina, esperar que “os mercados” resolvam gerar empregos produtivos, principalmente com novas tecnologias penetrando em todos os setores, não é realista.
Com tantas coisas a serem feitas e soluções tão limitadas no setor estritamente privado, garantir que as pessoas possam usar suas capacidades produtivas, particularmente em nível local (manutenção das cidades, cinturões agrícolas verdes ao redor das cidades etc.) região, gerar renda e equilibrar os orçamentos locais.
Essas iniciativas exigem uma reorganização de como o dinheiro é usado. A questão geral não é se temos ou não o dinheiro, ou de onde ele vem, mas para que usos ele é aplicado. No geral, devemos reduzir a desigualdade e a destruição ambiental. Três grupos de iniciativas são essenciais:
Reforma tributária: as elites latino-americanas têm se servido bem. No Brasil, por exemplo, lucros distribuídos e dividendos são isentos. Proporcionalmente, os pobres pagam mais impostos do que os ricos. A evasão fiscal é enorme, mas não por parte dos pobres, com impostos sobre os salários e sobre o consumo. É uma questão de mérito e justiça, por um lado. Mas, por outro lado, tributar o capital financeiro ocioso deve estimular os afortunados a fazer algo útil com seu dinheiro. Tributar terras ociosas, por exemplo, estimularia os especuladores imobiliários a produzir ou vender aos produtores.
Regulação do crédito: os bancos atualmente drenam nossas economias em vez de estimulá-las. A China tem um sistema de regulação eficiente através do CBIRC (China Banking and Insurance Regulatory Commission), a Alemanha tem um financiamento de proximidade muito eficiente com o Sparkassen e Landesbanken, a Polónia com as cooperativas financeiras tradicionais, a França com os sistemas Placements Ethiques e afins. Os bancos devem tornar o dinheiro produtivo, não usá-lo como extração financeira de renda para os acionistas.
Gestão descentralizada do dinheiro público: a América Latina está atualmente em grande parte urbanizada, e os diferentes municípios com suas necessidades diversificadas podem responder aos desafios de uma gestão eficiente do dinheiro muito melhor do que no nível central, onde as pressões corporativas e políticas – nacionais e internacionais – tendem a predominar.
Esta visão geral dos desafios e possíveis soluções deve nos ajudar a identificar as diversas iniciativas em diferentes países e regiões. Precisamos garantir que nossas sociedades sejam economicamente viáveis, mas também socialmente justas e ambientalmente sustentáveis.
Isso, por sua vez, demanda um novo acordo, um novo equilíbrio entre os setores público e privado, bem como com as organizações da sociedade civil. Pois é para uma sociedade que isso tem que funcionar, não apenas para os acionistas. E a pandemia mostrou o quão profundas são as nossas deformações.
O senhor é forte crítico da financeirização da economia. Por favor, comente sobre seu papel na crise atual.
A financeirização também contribuiu para a mudança no ambiente econômico. Enquanto as pequenas empresas enfrentam dificuldades tanto por causa da fraca demanda quanto do crédito caro, muito dinheiro passou do investimento produtivo para a especulação financeira, que, como Thomas Piketty mostrou em escala global, paga muito mais com menor risco.
Estudos sobre fluxos financeiros, e particularmente sobre fortunas em paraísos fiscais, mostram o divórcio entre muito dinheiro e produção. Apresentei essa transformação em detalhes no livro A Era do Capital Improdutivo.
O único setor que está prosperando é o negócio de exportação de commodities. Estados Unidos, China e Europa estão menos interessados em investimentos produtivos na América Latina, pois precisam de minério de ferro, cobre, soja, carne, madeiras preciosas da região amazônica e afins.
Isso levou ao que foi chamado de "reprimarização" de nossas economias, uma reprodução tecnologicamente avançada da antiga dependência colonial. Gera pouquíssimos empregos, quase não paga impostos e tem um impacto ambiental dramático. nossos países não promove o desenvolvimento.
Um olhar mais atento à estrutura da força de trabalho do Brasil, a economia dominante da região, dá uma ideia das falhas estruturais. O país tem 212 milhões de habitantes, dos quais 148 milhões. A força de trabalho oficial é de 105 milhões, dos quais apenas 33 milhões têm empregos formais no setor privado. Se somarmos os 11 milhões do setor público, temos 44 milhões de empregados com carteira assinada. A subutilização de nossa força de trabalho é dramática.
O setor informal, no qual a renda é metade da dos trabalhadores com carteira assinada, é estimado em 38 milhões pelas estatísticas oficiais do IBGE. Adicione 15 milhões de desempregados e 7 milhões que simplesmente pararam de tentar, e temos 60 milhões de pessoas subutilizadas na força de trabalho.
Esta situação pode ser diferente no Uruguai ou na Costa Rica, mas, em geral, na América Latina, temos esperado que o investimento estrangeiro nos ache atraente, que a chamada burguesia nacional invista e, em geral, que “os mercados” promovam desenvolvimento.
O inverso está acontecendo, com a saída da indústria da região, as atividades produtivas migrando para a especulação financeira e os recursos naturais sendo drenados com maior intensidade. A pandemia não é só Covid-19, é também outro vírus que Jessé Souza chamou de elite do atraso, o atraso das elites.