EUA: o silencioso reset

Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation.

Começou o grande divórcio. EUA agora têm plano para expurgar as chinesas tech da internet norte-americana, criando o que o governo Trump chama de "Rede Limpa" (Clean Network). É imagem especular da iniciativa da Casa Branca já em andamento, "Via Limpa, sem 5G" (5G Clean Path) para remover todos os componentes chineses que haja em todos os sistemas, iniciativa que agora se estende a tudo que seja tech na 'rede'.

A China antevê que uma 'Cortina de Ferro' financeira talvez esteja prestes a descer - com expulsão total da esfera do dólar. De fato, já está nascendo o controle soft sobre o capital, com Bloomberg noticiando q os EUA estão exigindo que escolas e universidades desliguem-se de empresas chinesas, em carta distribuída essa semana, com aviso de que "medidas mais onerosas desabarão sobre quem mantiver empresas chinesas como acionistas".

Pelo que já se sabe, na reunião anual em agosto, no resort de Beidaihe, a alta liderança chinesa decidiu (recomendações a serem endossadas pelo Pleno do Comitê Central do PCC, em outubro) que a China deve preparar-se para a guerra; que deve construir reservas de alimento e de energia; que deve estabelecer o sistema econômico eurasiano continental; que deve repatriar seu ouro depositado no exterior; e ampliar o sistema de compensações da própria moeda (inclusive seu Yuan digital) - e preparar-se para o completo rompimento de relações com os EUA.

Contudo, enquanto a 'mídia' chama a atenção para os eventos desse divórcio no campo das tech e altas esferas, outro evento muito profundo - e bem afastado dali - já está modelando a ordem monetária global (e evento que praticamente nada tem a ver nem sugere qualquer 'exclusão' dos chineses). Esse outro 'evento' está-se formando para, no longo prazo, ser mais revolucionário - e contencioso - até, que o mais espetaculoso 'divórcio'. Nem por isso tem recebido muita atenção.

Contudo, conforme vai-se tornando cada vez mais evidente que não acontecerá - não, pelo menos, tão cedo - qualquer tipo de recuperação em 'V', e conforme a 'casa' nos EUA pega fogo com o coronavírus ao longo de outono e inverno, pressagiando paralisia ainda mais feroz da economia - são fortes as chances de que essa bomba, sim, será acionada. Mas, antes, um pouco de contexto.

No início desse mês, Zero Hedge publicou entrevista notável com dois economistas que por muitos anos foram altos funcionários do Fed - Simon Potter (ex-diretor da "Equipe 'Salva-vidas' Antiquebradeira", do Fed [ing. Fed's Plunge Protection Team], 'apelido' do Grupo de Trabalho sobre Mercados Financeiros do Fed) e Julia Coronado - ambos com impacto fortíssimo sobre o pensamento no Fed.

Os dois chamaram a atenção para o caráter de 'último recurso' da estratégia do Fed, de estímulo e resgate (no sentido de que a economia dos EUA será ainda mais gravemente paralisada pelo Coronavírus): trata-se de 'repassar' dinheiro digital por meio digital [ing. 'to wire' digital money] diretamente pelos aplicativos de finanças nos smartphones dos norte-americanos - deixando de lado, 'contornando' e excluindo completamente o sistema bancário. "Ambos propõem que se crie uma ferramenta monetária que chamam de 'seguro antirecessão' [ing. 'recession insurance bonds' (RIBs)], que repousa sobre alguns recursos novos para pagamentos digitais 'repassados' por meio digital' instantaneamente para os norte-americanos":

"Como Coronado explica em detalhes, o Congresso daria ao Federal Reserve uma ferramenta adicional para prover apoio - digamos, uma porcentagem do PIB (numa soma a ser dividida igualmente e distribuída) às famílias, em tempos de recessão. Esse "seguro antirrecessão" [zero-coupon securities] alcançaria ativo contingente dos lares e, basicamente seria deixado à espera. O gatilho poderia ser o limite inferior zero da taxa de juros, ou, como proposto pela economista Claudia Sahm, quando houver crescimento percentual de 0,5 na taxa de desemprego. O Fed então ativaria os papéis e depositaria os fundos digitalmente nos aplicativos das famílias.

E Potter elucida: "o Congresso demorou demais para fazer o dinheiro chegar ao povo, e é confuso demais. Carecemos de infraestrutura específica, separada. O Fed pode comprar rapidamente os papéis sem ir ao mercado privado. Dia 15 de março, digamos que a taxa de juros seja zero; ativamos quantia X daqueles papéis; e acompanhamos a taxa de desemprego - e se subir acima daquele nível, compraremos mais. Os papéis estarão na coluna dos ativos no balanço do Fed; os dólares digitais na conta das pessoas estarão na coluna dos riscos [ing. the digital dollars in people's accounts will be on the liability side]."

Então, dias depois, o presidente do Federal Reserve, Lael Brainard, sugeriu outra vez a iminência de uma revolução monetária: "Para ampliar a compreensão e o conhecimento sobre moedas digitais, o Federal Reserve Bank de Boston está colaborando com pesquisadores no MIT, num esforço já de vários anos para construir e testar uma hipotética moeda digital prevista para ser usada pelo banco central (...). É importante compreender como as provisões já existentes na Lei do Federal Reserve relativas à emissão de moeda aplicam-se a uma Moeda Digital do Banco Central [ing. Central Bank Digital Currency, CBDC], também chamada 'dinheiro digital fiat', e se uma CBDC teria status legal, dependendo de como for concebida".

Assim sendo, o que levaria o Fed a buscar "esse processo significativamente político"? Ora... Claro que está à procura de mais um ponto de apoio, prevendo novo salto na pandemia. O último resgate não foi só "confuso demais": também disparou ações e papéis rumo à estratosfera. E cortou qualquer laço entre os preços de ativos e alguma conexão com a métrica de valores, com fundamentos, e com qualquer análise (sem fazer grande coisa a favor dos norte-americanos comuns). O que temos agora, portanto, é um mercado focado só em narrativas, que deu as costas à realidade. E esse 'evento' também tem implicações.

É muito evidente, é óbvia, a possibilidade de o Fed 'imprimir' dólares digitais, a serem enviados online para aplicativos de receber moeda digital, como novo mecanismo de estímulo - repleto de sobretons de fórmula de um 'Davos Reset' para caminhar rumo a um modelo global digital de Renda Básica Universal. Também é muito evidente, é óbvia, a tentação, para 'políticos', de pagarem por quaisquer ideias que apareçam para 'projetos' que caminhem nessa direção.

Mas essa é só metade da 'Revolução' - dois outros componentes já estão 'prontos'. Dois pontos de ruptura já foram aprovados.

Primeiro, que as pessoas já sabem (com o direito garantido aos futuros aposentados, de gastar triliões), que o governo dos Estados Unidos não pode suportar o peso da dívida, sem que o banco central simplesmente 'imprima' mais dinheiro. Muitos em Wall Street verão nisso uma solução: pôr dinheiro digital diretamente em aplicações provocará inflação, acreditam eles. E a inflação pode derreter a carga da dívida americana, mediante a desvalorização da moeda.

Segundo, que em abril o Fed já modificou o Supplementary Leverage Ratios (SLR) para excluir os papéis do Tesouro dos EUA das exigências relativas à relação capital-ratio. Em inglês [português] simples, significa que os bancos comerciais podem comprar quaisquer quantidades de instrumentos da dívida do estado, sem ter de reservar capital em seus balanços para garantia daquelas compras. Para que possam (enquanto as taxas são positivas, ainda que só marginalmente) comprar e fazer renda nominal. Em junho, os bancos dos EUA aumentaram em 48% seus papéis do Tesouro. Efetivamente, o Fed facilita a criação de crédito; os bancos usam esse crédito para comprar papéis de Tesouro; e o governo então gasta o dinheiro.

Abracadabra. Como na festa do Chapeleiro Louco - coisas acontecem assim, do nada! Não apenas uma vez, mas duas: dado que o Fed também operou seu truque, ao multiplicar o valor do resgate pelo Tesouro - ao garantir crédito em base de 10:1 para o veículo de objetivo especial do Tesouro. (O Fed diz que não é gasto direto, que seria ilegal).

Então, organizemos tudo isso em alguma espécie de lógica:

Em primeiro lugar, os EUA já estão trilhando o caminho rumo a uma economia estatizada (nacionalizada, com gestão centralizada) - um pouco como a economia da China. O Tesouro e Blackrock Hedge Fund (que gerencia em nome do Tesouro a distribuição de resgates pelo Congresso) tomam agora as decisões de vida ou morte (econômica) pelos os empresários norte-americanos - dos maiores até os menores.

Aí está um 'grande reset'. E, como a maioria das medidas temporárias, o reset silencioso veio para ficar. O que desagradaria o presidente dos Estados Unidos?! Agora que o Tesouro e a Fed estão efetivamente fundidos, o presidente controla a emissão de "dinheiro"; assim, pode "conduzir" a economia dos EUA em qualquer direção que lhe pareça ser de "interesse nacional", na guerra tecnológica que se inicia, contra China (e Europa). Mercados livres? Neste momento, deixaram de existir, nos EUA.

Em segundo lugar, essa guerra financeira já está em curso. A China provavelmente usará seu próprio sistema de compensação financeira, e o Banco Central chinês já usa o yuan digital, para se distanciar do Sistema de Compensações internacional, SWIFT, e do EUA-dólar.

De diferente, que esse processo significará que outros serão pagos em moeda digital não fungível que só pode recircular de volta à China para pagar por mercadoria chinesa. Ou, talvez não? Como o mercado de futuros de petróleo de Xangai, China, os vendedores estrangeiros podem optar por reter os próprios ganhos nas vendas, seja em instrumentos chineses de dívida, seja saindo do Yuan através do mercado físico de ouro.

Mas, além de EUA e China, também Rússia, Itália, Irã e Reino Unido, dentre outros estados, já planejam a respectiva própria moeda digital do banco central [ing. Central Bank Digital Currency, CBDC]. Estaremos caminhando, nesse caso - em tempos de guerra financeira aprofundada - rumo a algum neonormal, com múltiplos meios de pagamento, digitalizados, quase fungíveis ou não fungíveis?

Em terceiro lugar, o mundo volta a precisar de ouro, em troca de EUA-dólares. E os corretores primários do Fed - alguns dos quais operam como bancos de metais preciosos (em barra ou em papel) [ing. bullion banks - parecem não ter como atender essa demanda. Fato é que, ante o 'evento' do Coronavírus, o sistema financeiro dos EUA está sendo obrigado a reduzir, até territórios negativos, as taxas de juro real - o que torna o ouro mais atraente que papéis do Tesouro dos EUA em processo de desvalorização.

Tradicionalmente, o Fed sempre controlou o mercado de ouro, para evitar que o ouro fizesse concorrência efetiva ao EUA-dólar - ou, mesmo, que o deslocasse como instrumento monetário primordial. Mas alguém, ou alguma entidade, em algum lugar, está disputando ativamente esse controle, contra o banco central dos EUA. Resumindo: o processo de manipulação, tradição do Fed, está falhando. E a menos que o Fed consiga segurar o preço do ouro - e recuperar o controle -, é muito provável que o mundo assista a uma espiral descendente acelerada do valor do dólar frente ao ouro.

Aqui finalmente chegamos ao xis do problema. Ao delinear a 'revolução' monetária em curso nos EUA, vê-se que há aí muita coisa que agrada ao contingente 'Davos' de Wall Street: a passagem do dinheiro tradicional, para o dinheiro digital; Bancos Centrais que emitem dinheiro digital (embora a gangue 'Davos' preferisse que a emissão fosse obra de autoridade global); o fim do papel-moeda; e o sistema de transparência e controle que a digitalização pode permitir. Com o Coronavírus, alguns desses fatores - como a instrumentalização política de aplicativos para smartphone - ganharam impulso considerável.

Mas o establishment norte-americano está profundamente dividido. Sim, há um poderoso elemento globalista, de Wall Street, que apoia Davos; mas outros no "Estado Permanente",[1] inclusive alguns entre os neoconservadores, sob as pressões indubitáveis da atual recessão econômica, preferem morrer num lixão, a perder a hegemonia do EUA-dólar. Esses tendem a apoiar a reeleição de Trump.

Chegamos assim ao ponto em que se encaixam as últimas peças: os mercados norte-americanos de ativos estão nesse momento desligados de todos os fundamentos; são hoje regidos por alguma energia de tipo "não resista contra a narrativa", e pelo medo existencial, de estarem "perdendo sua hora e sua vez".

Em outras palavras: as altas do mercado de ações, completamente à deriva - às quais se agarram as esperanças de Trump para a reeleição - são altamente vulneráveis. Os humores podem mudar num beliscão de qualquer emoção beligerante movida a adrenalina; e tudo pode desmanchar-se no ar. Para que aconteça, basta surgir outra narrativa.

E que narrativa seria essa? Ora, o 'Oráculo' de Omaha, Warren Buffet, apareceu essa semana com narrativa das mais inesperadas. Apesar de não ser conhecido como 'mosca do ouro', foi visto derrubando ações e comprando ouro e mineradoras de ouro. O que falta para disparar a venda em outubro, se o dólar continuar ladeira abaixo, e as taxas de juros, ladeira acima?
Mr. Soros sorriu?*******


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[1] Ing. Deep State, frequentemente traduzido ao português do Brasil como "Estado Profundo". Optamos pela tradução mais politizada, "Estado Permanente", porque, afinal de contas, o tal "Estado" não é ruim por ser 'profundo': é ruim por ser permanente - eterno, inalcançável por eleições e quaisquer outras instituições democráticas (NTs, com informações de Brian Mier, em 247, Globalistas).


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey