Estado-nação, nacionalismo, instrumentos do capitalismo

Estado-nação, nacionalismo, instrumentos do capitalismo (1/3)

O capitalismo, para se consolidar criou o estado-nação, dotou-o de aparelhos estatais tentaculares e repressivos e de uma ideologia discriminatória quando não racista, o nacionalismo. Como processo, o capitalismo globalizou-se, sem perder o uso daqueles seus instrumentos de acumulação e gestão social; mesmo com a preponderância do sistema financeiro, como principal elemento de criação de capital (fictício), o capitalismo é o responsável pelas agressões ao clima. E não há solução para o planeta e para a Humanidade dentro do capitalismo e usando os seus instrumentos de sempre - estado-nação, Estado, nacionalismo, classes políticas.

1 - Como o capitalismo criou o estado-nação

A sedentarização dos seres humanos criou vários e encadeados grupos, com relações cada vez mais complexas. As famílias alargaram-se e os cruzamentos com outras famílias surgiram, no âmbito de encontros próprios de uma vida errante ou de conflitos que conduziam à integração dos derrotados; essa integração correspondia ao apreço implícito pelo capital humano, onde e quando a hostilidade do meio a isso obrigava. Por outro lado, evitou-se o encerramento numa mesma consanguinidade[1] e foi favorecido o surgimento de uma grande diversidade dos seres humanos espalhados pelo planeta. 

Em Roma, as gens eram conjuntos de famílias que se reviam num antepassado ilustre ou tomado como importante na vida daquelas, como elemento unificador e gerador implícito de identidade; o que é equiparável aos clãs existentes noutras sociedades do Norte da Europa, da Arábia, da China, do Japão, etc. Essas linhagens conduziram mais tarde aos conceitos de nobre e de nobreza, enquanto classe social nos quais a filiação numa mesma linhagem era essencial. É sabido que a linhagem só tinha verdadeiro significado quando havia posse sobre terras, engenhos e escravos, alavancas necessárias para o exercício de poder político; para quem não tivesse essa propriedade a questão da linhagem seria irrelevante, para além da transmissão de pais ou mães para filho(s) dos haveres, mesmo incluindo nestes pequenas porções de terreno agrícola ou oficinas de ferreiro, carpinteiro, etc.

Num plano mais alargado surgiu a tribo, um conceito também vindo dos romanos e que também se baseava remotamente na consanguinidade, selada pela veneração dos mesmos deuses, os lares. A incorporação de outros elementos, por fusão ou incorporação de grupos humanos distintos ou indivíduos, como era prática em nativos da América do Norte, raras vezes esteve afastada; a variedade de povos, tribos e línguas registadas na Antiguidade, entre o Mediterrâneo e a Mesopotâmia, não tem comparação com o mosaico existente atualmente.

  

O conceito de tribo, na Europa, deixou de se usar, à medida que se constituíam os territórios senhoriais, com uma clivagem social bem marcada entre senhores e servos; os servos passaram a enquadrar-se como súbditos do senhor (conde, duque, rei), num quadro de sedentariedade, de ligação à terra. A chegada de outras tribos, movimentando-se de Norte para Sul ou, provenientes das estepes asiáticas, como os lombardos na Itália; ou, a chegada dos godos e dos berberes à Península Ibérica, por exemplo, redundou numa total miscigenação. Na Baixa Idade Média, à medida que as relações comerciais se densificaram e a fuga para as cidades se vulgarizou, a referência de origem deixou de ser a da ligação a uma casa feudal para ser substituída pela região de proveniência, o gentílico, como referência de identificação, até que com a constituição dos estados-nação, este passou a ser a principal referência de identificação de origem; como hoje, continua a ser.

  

Essa identificação de origem, inicialmente era uma simples referência que traduzia hábitos, costumes e uma cultura, perante gente de outras proveniências. Se Colombo era genovês (o que não será pacífico), a sua ida para a Península Ibérica não arrastou direitos ou deveres face a Génova; o mesmo se passando com Magalhães, quando se dirigiu para Espanha depois de ver o seu projeto recusado pelo rei português. Naquela época, as pessoas circulavam, viajavam, sem prévio conhecimento por parte do seu "Estado" porque nas fronteiras não se exigiam passaportes, à saída ou à entrada; embora poucas pessoas viajassem, quedando-se toda a vida num pequeno círculo em volta da sua comunidade, agrícola e auto-suficiente.

  

Com a desintegração do Império Romano as habituais redes de comércio deixaram de funcionar e a população urbana decresceu, como se evidencia, por exemplo, no abandono de Conimbriga, com os mais ricos a deslocarem-se para o campo, para as suas villae, desenvolvendo uma economia muito localizada e tendencialmente autossustentada. Assim, em toda a Idade Média predominou uma economia agrária, autónoma, com uma gama de conhecimentos que passava de pais para filhos, todos iletrados (excepto o padre que dava a missa... em latim), com um baixo volume de trocas com o exterior. As referências da população fixavam-se no local, com esparsas idas a centros urbanos; uma sociedade autocentrada, fechada, autossuficiente quanto a alimentos (desde que não houvesse guerras ou más colheitas) e, autónoma quanto a conhecimentos para tratar dos campos e dos animais domésticos. O conhecimento erudito ancorava-se na Bíblia e cingia-se aos mosteiros e às universidades, cujos professores eram clérigos.

  

A dialética entre os camponeses e os senhores feudais tinha como centro, o tributo a pagar ao nobre para este garantir a segurança do povo, sem o arruinar; em épocas de más colheitas isso era uma questão vital. Assim, o pêndulo oscilava entre a tolerância das comunidades rurais e a cupidez dos senhores; e, dos abusos destes, resultaram grandes e sangrentos levantamentos de camponeses como a revolta dos remensas, na Catalunha, na segunda metade do século XV, de Walt Tyler e John Ball na Inglaterra dos finais do século XIV ou, a Jacquerie em França, poucas décadas antes, no seguimento de muitas outras, contra os abusos dos senhores, desde o século X. Na Alemanha, os camponeses tentaram aproveitar as movimentações decorrentes da secessão luterana para se libertarem dos senhores mas, Lutero preferiu ajudar a nobreza alemã no seu propósito de abandono da suserania papal. Nestas lutas, os revoltosos não se dirigiam contra um longínquo rei, a quem pedissem intervenção mas, contra os senhores, seus opressores diretos.

  

Nas sociedades agrárias típicas da Idade Média europeia a ideia de estado-nação era desconhecida porque as solidariedades manifestavam-se entre classes sociais - os camponeses, entre si contra os senhores; e, entre estes últimos, o alargamento de domínios concretizava-se pela guerra, onde não fosse possível obtê-los através de cruzamentos familiares. 

  

No topo da hierarquia senhorial numa dada área, estava um rei que muitas vezes tinha igual ou menos relevância do que algumas casas senhoriais e, por outro lado, as lealdades entre a nobreza eram muito volúveis[2] como sempre acontece, em todas as épocas, quando há riquezas em disputa. 

  

O vértice da pirâmide do poder no cenário da Europa cristã era o Papa, "vigário de Cristo" a quem todos deviam obediência e herdeiro das responsabilidades atribuídas à Igreja, embora durante a passagem do século XIV para o XV tivesse havido uma concorrência inter-papal, com um em Roma, outro em Avinhão e durante alguns anos um terceiro, em Pisa. Durante séculos houve sérias disputas da primazia entre o poder clerical e os poderes senhoriais - todos com o domínio sobre vastos territórios e servos; a partir dos cismas, luterano e calvinista, nos estados protestantes, o rei passou a ser o chefe da igreja local, acrescentando com isso mais um elemento para a integração do território respetivo, no processo de criação de um estado-nação. Na sequência da Revolução Francesa e da formação dos EUA, vincou-se o princípio da liberdade religiosa. Hoje, observam-se situações mais rigorosas de religião estatal, por exemplo na Arábia Saudita, com o monopólio do Islão wahabita ou, no Irão, xiita, onde no entanto, existem templos de outros cultos e o ateísmo não é punido.

  

Ninguém se lembraria, nos finais da Idade Média de falar de pátria, nação e menos ainda de Estado. Vejamos, como exemplo, a génese de Portugal. 

  

O primeiro rei português era vassalo do seu primo, de Castela e Leão, imperador das Espanhas; e, para se livrar dessa dependência manteve negociações com o Papa durante décadas, sobre o número de onças de ouro a pagar, para passar apenas a dever obediência a Roma. Quem vivia naquelas terras, do que veio a ser Portugal, eram vassalos do rei, fossem cristãos de obediência ao Papa (o povo do Norte), muçulmanos, moçárabes ou judeus (o povo do Sul), sem que houvesse qualquer sentimento de nação, ou sequer uma cultura comum, mesmo que os nacionalistas atuais tenham celebrado os 840 anos de Portugal, contados a partir da compra em ouro, do fim da obediência do rei português ao primo de Castela e Leão. Só muito mais tarde, no século XVI, com a expulsão ou conversão forçada de muçulmanos e judeus, os reis ibéricos procuraram a homogeneidade cultural; o que no caso de Espanha, se mantém ausente, como é notório, passados 500 anos.

  

As repúblicas italianas, mormente Génova e Veneza, tinham uma estrutura de poder de cariz oligárquico com uma diplomacia madura, adequada à sua lógica mercantil e financeira, com possessões territoriais circunscritas ao Mediterrâneo, através da guerra ou do saque; e com pouco em comum com os austeros reinos europeus, aos quais emprestavam dinheiro. A sua decadência iniciou-se com a expansão otomana e o desvio da coluna vertebral do comércio, do Mediterrâneo para o Atlântico, numa primeira fase através de Espanha e Portugal. Para mais as repúblicas italianas para concorrerem no espaço exterior ao Mediterrâneo teriam de usar novas tecnologias de construção naval e de armamento, de bases logísticas de apoio ao comércio e aumentar o volume de gastos militares para concorrer com os países ibéricos já instalados nas rotas do Oriente e das Américas.

  

Nas repúblicas italianas, a dinâmica económica focada em relações com o exterior, ancorava-se numa casta de comerciantes e banqueiros, unidos pelo negócio, sem pretensões a um nível mais elevado de integração, mormente nacional. A extensa Liga Hanseática que unia dezenas de cidades do Báltico e do Mar do Norte constituía uma aliança para o comércio e transporte naquela região, com a minimização de ataques piratas. Nestes dois casos, o ordenamento económico e político nada tinha em comum com os territórios feudais baseados na constituição de rendas extraídas a camponeses por parte de poderes senhoriais ou na guerra; e nada tinha em comum com os estados-nação que começavam a despontar.

  

A passagem da Idade Média para a Idade Moderna estrutura-se sob vários eixos. Os prestamistas existentes nos principais núcleos urbanos financiaram os monarcas para que estes promovessem a exploração ou conquista dos seus territórios coloniais, concessionados a pequenos nobres como Cortez, Pizarro, Almagro ou aos donatários de capitanias portuguesas no Brasil[3].

  

A abundância de ouro e prata nas colónias americanas de Espanha, verificadas as fragilidades dos nativos, com o seu modo de vida destruído pelos colonizadores e acrescido pelas doenças ofertadas pelos últimos, originou o tráfico de escravos negros até ao século XIX, distribuídos pelo sul do que são hoje os EUA, as Caraíbas, as minas e os engenhos de açúcar do Brasil, durante três séculos.

  

O ouro e a prata entravam em Sevilha duas vezes por ano em grandes frotas protegidas por navios de guerra; e, como senhores feudais, os reis ibéricos usavam o ouro para pagar a guerra, a contratação de exércitos com muitos mercenários e o fausto, sem qualquer propósito de fomento económico ou lógicas de redistribuição de rendimentos, como hoje se diria. Agiam como verdadeiros senhores feudais, donos de muitas terras e presos ideologicamente ao boullionismo, a avidez pela posse de ouro e prata para a criação de moeda. 

  

As cidades espanholas continuavam a ser pardieiros insalubres onde acorriam fidalgos sem dinheiro (que tinham um escudeiro a pedir esmola por eles) mas candidatos a rendas e cargos junto do rei, da alta nobreza e do clero; também rufiões, à espera de contrato para o uso da espada na defesa de um senhor que pagasse o serviço; muitos comerciantes de várias origens, para a venda das suas mercadorias; rurais sem trabalho, dado o abandono das terras pelos nobres; e muitos mendigos e pequenos ladrões à espera de comida à porta dos conventos. O importante era ter ouro ou prata nas mãos. 

  

No século XVI, em Espanha ou Portugal, continuava a não haver nem nação, nem Estado[4] porque a ascensão do capitalismo era ainda incipiente. O poder estava em monarcas, marcados pelo espírito de cruzada, imbuídos de uma mentalidade feudal, no âmbito da qual o território era seu; e, onde não frutificava uma burguesia comercial semelhante à observada nas repúblicas italianas ou nas cidades hanseáticas. A sua incapacidade de perceber a nova dinâmica económica foi aproveitada por comerciantes estrangeiros que chegavam a Sevilha para vender aquilo que em Espanha não se produzia, sendo pagos em ouro. Em Portugal, onde o cenário era semelhante, à ruina económica somou-se, em 1578, a desastrada aventura militar do rei em Marrocos, que conduziu à união dinástica dos dois países ibéricos, perante a indiferença do povo perante o facto de o novo rei ser espanhol. 

  

Os países ibéricos, não se desenvolveram como potências capitalistas, mantiveram-se dirigidos por monarcas com uma visão expansionista marcada por preocupações de evangelização nos novos territórios das Américas e do Oriente. E, no caso de Espanha, com um caro e desgastante envolvimento nas guerras políticas e religiosas que marcavam o Sacro Império. Daí surgiu o seu declínio e a cedência do poder marítimo a holandeses, franceses e ingleses. 

  

A Holanda[5] (Países Baixos do Norte) tinha nos séculos XVI e XVII caraterísticas muito diferentes das monarquias ibéricas; tinha criado um regime republicano depois de se libertar, após uma longa guerra, do domínio espanhol, que continuou a exercer-se nos Países Baixos do Sul, a Bélgica. Produziu grandes trabalhos na construção de diques e canais, modernizou a agricultura com a introdução da rotação de culturas e aumentando a criação de gado; e, na manufatura, começou a gerar-se a especialização dos trabalhadores no âmbito da indústria, produzindo-se navios maiores, mais rápidos e mais rentáveis no âmbito do comércio colonial. 

  

O seu regime político, republicano, correspondia ao domínio de uma burguesia empreendedora e rica, o que favorecia a imigração, mormente de artistas, filósofos e cientistas; por outro lado, a tolerância religiosa atraia judeus ricos ou cultos, expulsos de Espanha, de Portugal[6] e da Bélgica onde os espanhóis procuravam manter a unicidade religiosa.

  

O papel desempenhado no desenvolvimento do comércio mundial gerou grandes movimentos de capitais e originou a bolsa de Amesterdão, o Banco de Amesterdão, o surgimento das sociedades por ações que vieram a originar as Companhias das Índias Orientais e Ocidentais, às quais o Estado deu o monopólio dos produtos coloniais, aumentando assim, as margens de lucro dos seus detentores. Quase em simultâneo surgiram Companhias homólogas inglesas, o Banco de Inglaterra e a Carta de Direitos que limitava os poderes reais e firmava os direitos de propriedade.

  

Amesterdão veio a substituir Lisboa e Sevilha como centro do comércio global. A Holanda aproveitou e cimentou a deslocação do comércio europeu do Mediterrâneo para o Atlântico, tornando-se o polo das ligações marítimas e terrestres desenvolvidas com toda a Europa do Norte ou do Sul, substituindo, por exemplo, as decadentes repúblicas italianas no comércio com Marrocos. 

  

O comércio colonial complementava-se com as transações, no cenário europeu, de alimentos e matérias-primas. O ecletismo religioso permitiu o monopólio do comércio com o Japão, depois de expulsos dali os portugueses, sempre interessados no comércio mas, ligado à evangelização, naturalmente tomada como ofensiva para os cultos japoneses.

  

Esta rede de interesses entre comerciantes, transportadores e banqueiros, funcionando numa base mundial e a ausência de um poder central despótico e impositivo, bem como a liberdade religiosa, foram elementos que alargaram muito o capitalismo comercial e financeiro desenhado nas repúblicas italianas, num quadro essencialmente mediterrânico. Essa rede, agregava também os vários estratos sociais dependentes, interessados na prosperidade vigente e na sua continuidade. A densidade das relações sociais e económicas, para mais num espaço territorial pequeno, unificou os seus habitantes numa cultura comum e interessados num Estado que desse cobertura à iniciativa privada. Como havia a concorrência de outras regiões - Inglaterra, França, Espanha, Portugal e países escandinavos - convinha erigir uma delimitação de fronteiras, a existência de um exército e, sobretudo, uma poderosa marinha de guerra - a cargo de um aparelho de Estado, financeiramente ancorado em impostos alfandegários, sisas, dízimas. 

  

Esse projeto global em desenvolvimento que envolveu os holandeses, para mais como povo homogéneo do ponto de vista cultural e linguístico (uma nação) e avesso ao domínio de uma monarquia estrangeira (Espanha), designa-se por capitalismo. Para garantir a paz social internamente e defender-se da concorrência, esse projeto político criou uma etiqueta nacional[7] (Holanda) que unificasse a população em torno de certos desígnios económicos e políticos no quadro global e, europeu em particular - esse projeto materializou-se num estado-nação. Na mesma época e na medida em que se foi processando o desenvolvimento económico europeu, num quadro global de competição e guerra, era essencial para os capitalistas dos vários países, a criação de estados-nação, com território e uma população afeta, mormente daquela sua parcela mobilizada para o trabalho e para a guerra.

Ler na íntegra

https://grazia-tanta.blogspot.com/2019/12/estado-nacao-nacionalismo-instrumentos.html

 


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey