Especialização Inteligente: por que é que não estamos a falar deste tema?

Especialização Inteligente: por que é que não estamos a falar deste tema?

Imagine uma sociedade onde nuns gabinetes algures em Bruxelas, a pretexto de uma coisa chamada "especialização inteligente", uns burocratas de gravata dividiam a Europa em sectores a régua e esquadro, e com base em critérios feitos à medida para satisfazer primeiro e antes de mais a burguesia, e dentro da burguesia primeiro e antes de mais a alemã, repartiam por esses sectores as actividades económicas que cada um devia ter. Imagine que no sector chamado "Portugal" colocavam como actividade económica a desenvolver o turismo, os serviços de restauração e de baixo valor acrescentado como call centers e supermercados. Imagine que em consequência dessa decisão os burocratas determinavam o abate de barcos de pesca, o arranque de árvores de fruto, o derrame de milhares de litros de leite no mar quando se excedem as quotas de produção, o desmantelamento da Lisnave, da Siderurgia Nacional, dos ENVC, da Sorefame. Imagine que, à margem da lei ou interpretando-a a martelo, se degradava à inutilização os direitos dos trabalhadores deixando-os numa situação extrema de precariedade. Imagine que, para fazer hostels e alojamentos locais que garantissem a instalação dos turistas que vêm, se desenvolvia uma política premeditada, concertada, com uma lei dos despejos feitas a dedo, com uma lei de bases de habitação que continua o mesmo propósito, com a conivência de poderes camarários de todos os partidos do costume, uma verdadeira limpeza social dos centros históricos dos seus moradores pobres, com ordens de despejo consecutivas em ruas inteiras. Consegue imaginar? Não precisa. É a história de Portugal desde os anos 80.

O estatuto verdadeiramente colonizado em que a UE nos colocou foi este: decisões sobre a nossa vida colectiva são tomadas lá longe, sem que nos tenham perguntado nada, e redundam no nosso desemprego, no nosso trabalho precário, na nossa expulsão da casa onde vivemos, na nossa condição de serviçais ao dispor da burguesia alemã. Essa condição pode ser proveitosa para os accionistas da Sonae, da Douro Azul, da Jerónimo Martins e do Grupo Pestana, que se enchem de dinheiro como sócios menores do imperialismo. Pode ser altamente lucrativa para os partidos de direita, que de caminho metem, por bons serviços prestados, os seus Durões Barrosos e os seus Antónios Guterres em tachos bem pagos. Mas esta situação é a todos os títulos intolerável para o povo que é explorado como precário nos hotéis do colono, que é desalojado de onde sempre viveu para bem dos investimentos do colono, que paga a factura de uma dívida gigante feita para perpetuar a presença do colono. 

A presença de Portugal na UE representa a entrada nos cofres públicos e das empresas de muitos milhões de euros, é certo. Ocorre que aquilo que se perde a troco desses milhões de euros não é contabilizável em dinheiro: não existe um preço para a transformação das votações de orçamentos de Estado nos parlamentos numa mera coreografia, dado que a decisão final sobre as contas públicas será feita pela Comissão Europeia. Não existe um preço para a criação de condições de perpetuação da dependência e da degradação das conquistas sociais. Não existe um preço para a liquidação da independência, da soberania, e do poder de decisão de um povo. A liberdade de decidir o destino colectivo não se compra com fundos comunitários, e Governo nenhum está legitimado para a vender.

É portanto estranho que numa eleição europeia estejamos, de novo, a alimentar a mistificação da Europa de leite e de mel, do dinheiro a troco de nada, das decisões que são sempre boas, das alternativas que são todas o caos. O discurso sobre o cárcere em que a UE se tornou não pode continuar a não se fazer ouvir, ou a limitar-se a uns sussurros amedrontados com a possibilidade de indispor a imprensa que manda e os poderes materiais. Temos de falar clara e seriamente sobre a necessidade de romper com a UE para edificar uma sociedade onde possamos viver a única liberdade que vale a pena viver, que é a liberdade do socialismo. Como dizia Brecht, porque as coisas são como são, as coisas deixarão de ser como são.

 João Vilela


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Timothy Bancroft-Hinchey